Alma e coração peregrinos

    Há dias em que o coração da gente anseia pela quietude de um sono reparador. Há dias em que a alma suspira pelo silêncio do coração. Assim, desejando harmonizar-se entre o murmurinho da vida e a paz da consciência serena, coração e alma se tornam um, no desejo de experimentar um pouco da plenitude, da serenidade, do silêncio, da harmonia, da paz interior que qualquer filho de Deus busca para si próprio. Esse é o anseio da alma sedenta, do coração cansado. Esse é o desejo dos fortes.

    Diz a vida que nenhum vivente passa por ela sem luta, sem garra, sem a fibra dos vencedores. Nasceu, tem que lutar. Tomo como exemplo aquele jovem viajante que caminhava obcecado em direção à sua meta de viagem. Vinha com fome, sede, câimbras e dores da exaustiva caminhada, mas vinha determinado a chegar. Passando ao largo de um casebre, observou em seu interior um homem de idade à mesa, saboreando um delicioso e suculento prato de sopas. Seu primeiro impulso foi chegar-se até sua porta e lhe suplicar um pouco daquela refeição. Mas preferiu, por primeiro, afastar-se daquilo que lhe parecia uma tentação humilhante: invejar a felicidade do outro.

    Ali estava um senhor também cansado da luta diária, que fazia jus ao merecido troféu diário, sua bem saborosa refeição vespertina. Era aquele o troféu justo e merecido de quem, como ele, soubera buscar na luta pela sobrevivência o seu pão diário e repousar logo mais o corpo cansado no leito santo do seu lar, doce lar. Também ele haveria de alcançar e merecer aquele momento diáfano, pois para tanto se esforçava. Pensou então em acelerar seus passos, seguindo adiante.

    Mas o homem do interior da casa logo percebeu a proximidade do viajante ao largo. Da janela, gritou, convidando-o a chegar-se mais. Mas, resoluto que estava em atingir logo seu objetivo, hesitou. O outro insistiu no convite, oferecendo-lhe senão da própria refeição, ao menos um café, um copo de água que fosse. Bem, um mínimo com gentileza, um gesto cordial, um sorriso, um descanso solidário nunca se rejeita. Assim, o obstinado viajante penetrou naquele aparente oásis. E, surpresa, era uma casa de leprosos.

    Sua primeira reação foi de arrependimento. Mas logo a gentileza e tranquilidade daquela família afastou para longe seus temores e preconceitos. Tanto que aceitou das mãos carcomidas do velho morfético uma xícara de chá e bolachas. Deixando de lado a tardia preocupação com a doença do outro, passou a analisar seu semblante cansado, porém feliz, satisfeito com mais um dia de muitas tarefas realizadas. Nada mais prazeroso que partilhar um pouco de suas conquistas com alguém ao lado, outro transeunte, mas que também labutava naquela jornada pela sobrevivência. Não tinha as marcas terríveis da doença que consumia sua carne, mas por certo tinha também grandes e incômodas cicatrizes a corroer sua alma, seu coração condoído pela morosidade dos sonhos a alcançar. Juntos, o velho e o jovem, acabaram por descobrir que a luta de ambos era a mesma. Talvez o velho estivesse um pouco mais à frente naquela jornada, mas a aventura do jovem, saudável, repleto de sonhos e projetos ambiciosos, era merecedora de idênticas esperanças. Ao menos o prazer de dividir um pouco de sua pobreza era agora o grande motivo da alegria estampada no rosto daquele velho e inesperado anfitrião. Marcas e cicatrizes eram seus maiores troféus.

    Então, do fundo daquele casebre eis que surge uma jovem bela e sorridente. Minha neta, – diz o velho – minha mais preciosa e perfeita riqueza! Não demorou muito para o jovem viajante se deixar seduzir por aqueles olhos serenos, cheios de luz e encantamento pela vida. A tal ponto que logo concluiu ser ali o ponto de chegada da primeira grande meta de seu conturbado coração peregrino. Sua alma encontrara um oásis. E nenhuma lepra do mundo o impediria de continuar lutando, sonhando.

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