A vida da fé: ela é encontro com Deus

    “O homem: olhando para o íntimo de nós mesmos, nos damos conta de que possuímos uma sede de infinito que nos impede a avançar sempre mais na direção de Deus, o único capaz de nos saciar. A vida da fé: ela é encontro com Deus que nos fala, intervém na história e nos transforma”, (Papa Bento XVI, Audiência Geral, 14/11/2012).
    Em diversas entrevistas, Joseph Ratzinger descreveu a si mesmo como um “agostiniano convicto” e “até certo ponto, um platônico”. Quanto à primeira afirmação, é seguidor da máxima agostiniana credo ut intelligam, de acordo com a qual a crença é um pré-requisito necessário para a busca do entendimento; “assim como a criação procede da razão e é razoável, a fé é, por assim dizer, a consumação da criação, e, por conseguinte, a prova para o entendimento.” Quanto à segunda afirmação, relativa à influência platônica, como escreveu Ratzinger, ele acredita que “há no homem, como que gravada, uma espécie de memória, de recordação de Deus, que é necessário despertar”.
    Na sua alocução do Angelus, na festividade de Santo Tomás de Aquino do ano de 2007, Bento XVI disse que Santo Tomás, com seu carisma como filósofo e teólogo, ofereceu um “eficaz modelo de harmonia entre fé e razão”, e depois concluiu que “a fé pressupõe a razão e a aperfeiçoa, e a razão, iluminada pela fé, encontra a força para se elevar até o conhecimento de Deus e das realidades espirituais”, Para Ratzinger, fé e razão, teologia e filosofia, estão relacionadas simbioticamente e não extrinsecamente. A fé sem a razão termina em fideísmo, mas a razão sem a fé acaba em niilismo.
    Escreve o cardeal George Pell, arcebispo de Sydney: “Nenhum Papa em toda a história tem publicado teologia de tão alta qualidade, sobre tal variedade de temas, como o Papa Bento XVI.” Bento XVI é um homem de profunda espiritualidade, genuína virtude e grande erudição, desenvolvimento ao longo de toda uma vida dedicada ao estudo e à pesquisa. “Um teólogo dos teólogos” (1).

    O Cristianismo e uma Revelação
    “A grande dificuldade da aventura do cristianismo é o que a faz bela”.
    Papa Bento XVI

    Em uma carta escrita para o Papa Paulo VI em 1965, Romano Guardini, que foi uma das influências seminais na formação intelectual de Ratzinger, ao aconselhar o Pontífice disse que, na sua opinião, “o que pode convencer as pessoas modernas não é um cristianismo histórico ou psicológico, ou em permanente modernização, mas somente a mensagem sem restrições e não interrompida da Revelação”. Este é um resumo sucinto e correto do posicionamento de Ratzinger. Em sua obra Cooperadores da Verdade, publicada em 1992, Ratzinger escreveu:
    “O cristianismo não é uma especulação filosófica; não é uma construção do intelecto. O cristianismo não é uma obra ‘nossa’, é uma Revelação, uma mensagem que nos foi dada, e não temos nenhum direito de reconstruí-la ao nosso gosto”. Este ponto foi retirado nos primeiros parágrafos da encíclica Deus caritas est, nos quais Ratzinger afirmou que o cristianismo não é um sistema moral, mas um encontro com a Pessoa de Cristo, certamente com toda a Trindade. Ele concluiu que “é necessária uma afirmação intelectual pela qual a pessoa compreende a beleza e a estrutura orgânica da fé”.
    “A fé, que toma consciência do amor de Deus revelado no coração trespassado de Jesus na Cruz, suscita por sua vez o amor, Aquele amor divino é a luz fundamentalmente, a única que ilumina incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir”, (Deus Caritas Est, nº 39).
    “Como se Deus Existisse” (*)
    Mas ao chegar nesse ponto, gostaria na minha qualidade de crente, de fazer uma proposta aos laicistas. Na época do iluminismo se tentou entender e definir as normas morais essenciais dizendo-se que elas seriam válidas “etsi Deus non daretur”, mesmo no caso de Deus não existir. Na contraposição das confissões religiosas e na iminente crise da imagem de Deus, tentou-se manter os valores essenciais da moral por cima das contradições e buscar uma evidência que os tornasse independentes das múltiplas divisões e incertezas das diferentes filosofias e confissões. Deste modo, se pretendia assegurar os fundamentos da convivência e, de uma forma mais geral, os fundamentos da humanidade. Naquele momento da história, pareceu que isso era possível, porque as grandes convicções de fundo surgidas no cristianismo em grande parte resistiam e pareciam inegáveis. Mas agora já não é assim.    
    A busca de tal certeza tranquilizadora, que pudesse permanecer incontestada independentemente de todas as diferenças, falhou. Nem sequer o esforço, realmente grandioso, de Kant foi capaz de criar a necessária certeza compartilhada por todos. Kant havia negado que Deus possa ser conhecido no âmbito da razão pura, mas ao mesmo tempo, colocou Deus, a liberdade e a imortalidade como postulados da razão prática, sem a qual, coerentemente, para ele não era possível a ação moral.
    A situação atual do mundo não nos leva talvez a pensar de novo que ele possa ter razão? Digo-o com outras palavras: a tentativa, levada ao extremo, de plasmar as coisas humanas menosprezando Deus completamente nos leva cada vez mais ao abismo, ao isolamento total do homem. Deveríamos, então, voltar ao axioma dos iluministas e dizer: mesmo quem não consiga encontrar o caminho da aceitação de Deus deveria buscar viver e dirigir sua vida “Veluti si Deus daretur”, como se Deus existisse. Este é o conselho que dava Pascal a seus amigos não crentes; é o conselho que queríamos também dar a nossos amigos que não creem. Deste modo, ninguém fica limitado em sua liberdade, mas todas as nossas preocupações encontram um sustentáculo e um critério cuja necessidade é urgente.
    O que mais necessitamos nesse momento da história são homens que, através de uma fé iluminada e vivida, façam que Deus seja crível neste mundo. O testemunho negativo de cristãos que falavam de Deus, e viviam de costas para ele, obscureceu a imagem de Deus e abriu a porta á incredulidade. Necessitamos de homens que tenham o olhar fixo em Deus, aprendendo d’Ele a verdadeira humanidade. Necessitamos de homens cujo intelecto seja iluminado pela luz de Deus e a quem Deus abra o coração, de maneira que seu intelecto possa falar ao intelecto dos demais e seu coração possa abrir o coração dos demais.
    Somente através de homens que tenham sido tocados por Deus é que Deus pode retornar para perto dos homens. Necessitamos de homens como Bento de Nursia, que em um tempo de dissipação e decadência penetrou na solidão mais profunda e, depois de todas as purificações que deveria padecer, conseguiu se erguer até a luz, regressar e fundar Monte Cassino, a cidade sobre o monte que, com tantas ruínas, reuniu as forças das quais se formou um mundo novo.
    Deste modo, como Abraão, Bento tornou-se pai de muitos povos. As recomendações a seus monges apresentadas no final de sua “Regra” são indicações que nos mostram o caminho que conduz para o alto, além da crise e das ruínas.
    “Assim como há um mau zelo de amargura que separa de Deus e leva ao inferno, há também um zelo bom que separa dos vícios e conduz a Deus e á vida eterna. Pratiquem, pois, os monges este zelo com a mais ardente caridade, isto é, adiantando-se para honrar uns aos outros; tolerem com suma paciência suas debilidades, tanto corporais como morais (…) pratiquem a caridade fraterna castamente; temam a Deus com amor; (…) e absolutamente nada anteponham a Cristo, que nos poderá conduzir todos juntos á vida eterna” (capítulo 72).
    (*) O Discurso de Subiaco. Proferido pelo Cardeal Ratzinger em 1 de abril de 2005,no Mosteiro de Santa Escolástica, em Subiaco.
    A Igreja
    “A Igreja não existe para nos manter ocupados, como uma instituição mundana, nem para se conservar, ela existe, para ser em todos nós abertura e passagem para a vida eterna”, Papa Bento XVI (2).
    Finalmente, o Papa Bento XVI é alguém apaixonado pela Igreja, que para ele é realmente a esposa mística de Cristo. Ele considera que todos os modelos da Igreja derivados do mundo das grandes companhias de negócios são completamente defeituosos, e pensa que é absurda qualquer sugestão no sentido de que os ensinamentos da Igreja poderiam ser estabelecidos por comissões eleitas pelo voto. Sem duvida, ele está perfeitamente consciente, por uma questão de lógica, de que se a hierarquia católica não foi instituída por Cristo para transmitir e defender o depósito da fé até o fim do mundo, então os protestantes estariam certos ao criticar a hierarquia católica. O congregacionalismo tem sua própria lógica interna, como também a tem o catolicismo, mas um catolicismo congregacionalista é absurdo. O texto que segue abaixo é um dos seus trechos favoritos da literatura, extraído da obra intitulada A Marcha Radetzky, de Joseph Roth, uma versão elegíaca da vida no império austro-húngaro no crepúsculo da glória da dinastia dos Habsburgos. Atinge da forma mais certeira o coração daquilo que anima a teologia do Papa Bento XVI:
    “Neste mundo decadente, a Igreja Romana é a única coisa que resta para dar forma à vida, para ajudar a vida a conservar a sua forma. Sim, nós poderíamos ainda dizer que ela dispensa a forma… Ao identificar o pecado, ela já o está perdoando. Ela não admite a existência de seres humanos sem culpas: isto é o realmente humano na Igreja… Deste modo, a Igreja Romana demonstra sua característica mais eminente, a de ser clemente e perdoar”.
    A doutrina da santíssima fé de Bento XVI capacita entender o mistério abissalmente: crer em Deus, no ser humano, na Igreja Corpo Místico de Cristo e no amor derramado em nossos corações pelo Divino Espírito Santo. Bento XVI é o teólogo refinado como um Doutor da Igreja que defendeu a dogmática como ínclito combatente pela dignidade da fé. Bento XVI passará à História como o papa da fé, da fé como fundamento da intima comunhão com Deus e em diálogo com a razão e com a cultura.
    Pe. Inácio José do Vale
    Professor de História da Igreja
    Instituto Teológico Bento XVI
    Sociólogo em Ciência da Religião
    Doutor em História do Cristianismo
    E-mail: pe.inacio.jose@gmail.com

    Notas
    (1)    Rowland, Tracey. A Fé de Ratzinger. A teologia do Papa Bento XVI. Campinas, SP: Ecclesiae, 2013, pp. 15, 17, 200 e 210.
    (2)    Ratzinger. Cardeal Joseph. Compreender a Igreja hoje. Vocação para a comunhão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006, p. 82.