A procissão dos famintos

    No Êxodo – caminhada do povo de Deus em busca da liberdade – o processo de libertação foi uma longa jornada de purificação. Durou quarenta anos. A travessia do deserto tornou-se assim uma prova dos nove para a fé e a esperança daquele povo. Muitos sucumbiram nessa prova. Outros nasceram em plena caminhada. Só os mais jovens e destemidos alcançaram a meta final. A grande maioria não chegou ao destino, nem sequer contemplou a nova pátria. Moisés chegou perto e a viu do alto do monte onde foi sepultado. O sonho de liberdade foi conquista dos mais fortes. Mesmo assim, como sobreviveram a tantas intempéries para chegar aonde chegaram? Qual realmente foi a motivação dessa longa jornada, dessa procissão tão misteriosa e histórica?
    Deus os alimentou. Tanto física quanto espiritualmente. Assim como sempre alimenta os sonhos e as esperanças do seu povo. O estranho maná – pão misterioso que caia dos céus durante a noite e alimentava o povo faminto – lhes deu as energias necessárias para prosseguirem deserto adiante. Esse alimento, que nutria não só a debilidade física, possibilitou àquele povo a conquista de Canaã. Venceram o deserto de suas tribulações e ganharam a preciosa liberdade em terras onde “corria leite e mel”. Esse maná era a mais perfeita prefiguração do alimento eucarístico que hoje temos.
    Também atravessamos um deserto. Também caminhamos em busca da pátria definitiva, a Jerusalém dos céus. É essa a imagem poética, mas real, daquilo que Jesus nos deixou como o alimento da vida eterna, seu corpo e sangue. Quando buscamos na Eucaristia as forças necessárias para vencer os desafios da nossa caminhada terrena, fazemos uso dos nutrientes para perseverar diante dos desafios contrários à nossa fé. “Eu garanto a vocês: se vocês não comem a carne do Filho do Homem e não bebem o seu sangue, não terão a vida em vocês. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna” (Jo 6,53-54).
    Para a linguagem estritamente materialista e até obscena daqueles que desconhecem esse mistério, tais palavras soam a uma aberração, uma blasfêmia que possui nuances de demência. Quem come carne humana pratica a antropofagia. Quem bebe sangue é vampiro. Seriam os seguidores de Cristo uma tribo de selvagens sanguinários? Onde reside o bom senso dos que fazem dum ritual religioso um banquete tão tétrico e desumano? Para o mundo sem uma imersão nos mistérios divinos, essa linguagem é realmente impenetrável. Mas para seus seguidores, um verso adiante, o mistério se desfaz: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, vive em mim eu vivo nele”. Unidade, imersão, seriam as palavras mais adequadas. A eucaristia nos possibilita um renascer em Cristo, uma imersão de corpo e alma nos mistérios de sua vida, de seus ensinamentos. Uma reciprocidade de corpo e alma, capaz de somar nossa existência e unir nosso espírito à vida de Cristo, ainda vivo e atuante em nossa história. “Esse modo de falar é duro de mais. Quem pode continuar ouvindo isso” (Jo 6, 60) – foi o comentário de seus ouvintes. Poderia ser o comentário de algum leitor, neste momento. Porque a vida eucarística, mais que mistério, é experiência pessoal.
    Não arrisque comentários em matérias que desconhece. Antes, faça sua própria experiência. Pois o maior remédio para dúvidas e incertezas é tentar solucioná-las, buscar respostas que nos aliviem destas. No caso, não entre na fila dos famélicos – aqueles que morrem no deserto sem a visão do oásis que só a fé aponta. Nessa procissão de famintos estão os desalentados, os desesperançados que não acreditam numa nova Terra de Promissão.

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