Gustavo Adolfo P. D. Santos, PhD em Teoria Política (Catholic University of America), gerente de programas na Oficina Municipal.
Na democracia fundada no Estado de direito, a proteção da liberdade de consciência e a tolerância das diferenças são princípios centrais para o ordenamento das relações entre indivíduos e grupos. A luta contra os vários tipos de discriminação, que se traduzem numa negação do acesso de determinados indivíduos a certos direitos e condições que em princípio deveriam ser universalmente disponíveis, é uma expressão da defesa desses valores.
O desenvolvimento do indivíduo na liberdade e na autoafirmação, no entanto, não se dá num vácuo. Como ser essencialmente social, a pessoa existe e se realiza no contexto de relações, normas e tradições compartilhadas. O sociólogo americano Robert Nisbet (1913-1996) alertou sobre a progressiva ênfase posta sobre a relação entre o indivíduo portador de direitos e o Estado garantidor dos mesmos, que destitui os agrupamentos intermediários de suas funções e de sua autoridade social.
A vida concreta não acontece, porém, num espaço abstrato de disputa por direitos individuais, mas em famílias, comunidades de crença, associações. A verdade que eu busco, encontro e vivo nunca é totalmente minha propriedade – eu a devo a uma cadeia de relações históricas e sociais. Nestas relações e comunidades, muitas vezes os participantes não ocupam todos a mesma posição, e se submetem a normas que, se limitam a gama de escolhas individuais possíveis, possibilitam a concretização de um sentido da vida que transcende a individualidade isolada. As relações familiares, ou as baseadas no compartilhamento da fé, são exemplos dessa realidade.
No Brasil, os jornais recentemente noticiaram polêmicas em torno da introdução de conteúdos relativos à chamada ideologia de gênero nos currículos escolares do ensino fundamental e médio. A visão tradicional da complementaridade entre homem e mulher e o direito da criança ao conhecimento e à criação por seus progenitores biológicos na família vai assumindo, nesse contexto, ares de limitação dos direitos individuais – não os das crianças, é claro, que não são consideradas nesses raciocínios tipicamente individualistas. Pode chegar o ponto em que afirmar o caráter privilegiado do casamento tradicional para a criação dos filhos será considerado um ato discriminatório e ilegal.
Por detrás dessas e outras incursões do Estado na vida social e comunitária das pessoas, pode-se encontrar uma concepção que vê cada pessoa como radicalmente livre para definir a própria realidade – e as práticas correspondentes – nas mais variadas dimensões. Essa autonomia radical não teria limites, a não ser a interferência na vida e no bem estar alheios (o famoso “princípio da injúria”, definido por John Stuart Mill).
No entanto, como lembrou S. João Paulo II, a democracia não pode abrir mão da referência a uma “reta concepção da pessoa humana”. Isso significa, entre outras coisas, respeitar o espaço e a autoridade das diversas comunidades éticas, sejam elas laicas ou religiosas, em que o ser humano se constrói.
Entre a defesa dos direitos e da liberdade individual e o respeito à autoridade e autonomia das comunidades éticas nas quais todo indivíduo se desenvolve, um caminho de equilíbrio e razoabilidade precisa ser encontrado, sob pena de ferir os próprios indivíduos cujos direitos o Estado moderno tem como função garantir.
Jornal “O São Paulo”, edição 3108, 30 de junho a 5 de julho de 2016.
Fonte: Núcleo da Fé e Cultura