A nova encíclica social “Fratelli tutti”

         O Papa Francisco publicou neste dia 4 de outubro, memória de São Francisco de Assis, neste ano celebrando o 27º domingo do tempo comum, uma nova Encíclica social sobre a fraternidade e a amizade social. Ele a assinou neste sábado, dia 3, na Basílica inferior de São Francisco, em Assis. Ela se inicia com as palavras do pobrezinho de Assis, em italiano: “Fratelli tutti” (Admoestações, 6, 1): “Todos irmãos”, em português.

Logo no início, como ocorre em todas as encíclicas, o Papa lhe dá o título e expõe sinteticamente o seu grande objetivo: “FRATELLI TUTTI”: escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor do Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, ‘o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si’ (Admoestações, 25: o. c., 175). Com poucas e simples palavras, explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar a todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita” (n. 1).

         O desejo do Santo Padre não é senão o de fazer renascer, entre todos, um anseio mundial de fraternidade (cf. n. 8). Embora não pretenda resumir de modo total a doutrina sobre o amor fraterno, quer deter-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos; por isso, é dirigida a todas as pessoas de boa vontade (cf. n. 6).

Confessa o Papa que o estímulo para escrever a “Fratelli tutti” nasceu de um muçulmano. São palavras do Sumo Pontífice: “Senti-me especialmente estimulado pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Abu Dhabi, para lembrar que Deus ‘criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos’ (Francisco – Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 05/II/2019), 21). Não se tratou de mero ato diplomático, mas duma reflexão feita em diálogo e dum compromisso conjunto. Esta encíclica reúne e desenvolve grandes temas expostos naquele documento que assinamos juntos. E aqui, na minha linguagem própria, acolhi também numerosas cartas e documentos com reflexões que recebi de tantas pessoas e grupos de todo o mundo” (n. 5).

         E por que, depois da Laudato Si, inspirada em São Francisco de Assis, o Santo Padre se volta novamente para ele ao tratar da fraternidade e da amizade social, tema tão central ao Cristianismo? – Uma vez mais, o próprio Papa explica que foi por ver na vida do Santo de Assis um fato que dá a cada ser humano exemplo grandioso. Ei-lo: “Na sua vida, há um episódio que nos mostra o seu coração sem fronteiras, capaz de superar as distâncias de proveniência, nacionalidade, cor ou religião: é a sua visita ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito. A mesma exigiu dele um grande esforço, devido à sua pobreza, aos poucos recursos que possuía, à distância e às diferenças de língua, cultura e religião. Aquela viagem, num momento histórico marcado pelas Cruzadas, demonstrava ainda mais a grandeza do amor que queria viver, desejoso de abraçar a todos. A fidelidade ao seu Senhor era proporcional ao amor que nutria pelos irmãos e irmãs. Sem ignorar as dificuldades e perigos, São Francisco foi ao encontro do Sultão com a mesma atitude que pedia aos seus discípulos: sem negar a própria identidade, quando estiverdes ‘entre sarracenos e outros infiéis (…), não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus’ (São Francisco de Assis, Regra não bulada dos Frades Menores, 16, 3.6: Fonti francescane, 42-43). No contexto de então, era um pedido extraordinário. É impressionante que, há oitocentos anos, Francisco recomende evitar toda a forma de agressão ou contenda e também viver uma ‘submissão’ humilde e fraterna, mesmo com quem não partilhasse a sua fé” (n. 3).

         Antes de prosseguir na leitura e no compartilhamento de trechos da encíclica em foco, desejo lembrar um ponto essencial que – de modo explícito ou implícito – se acha presente no documento pontifício. Trata-se do fato de que, segundo a natureza, todos somos filhos de Deus; há uma pertença de cada um dos seres humanos à fraternidade universal. Realçar isso numa encíclica já era – segundo fontes fidedignas – desejo do Papa Pio XI, pois essa doutrina – como hoje – se fazia importante no período imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) no qual ideologias anticristãs – nazismo, fascismo e comunismo – se arvoravam como falsas soluções aos problemas humanos. Vejamos esse ponto que, por certo, muito ajudará cada um(a) a melhor entender o substrato teológico da abarcativa e oportuna “Fratelli tutti”.

         A Teologia reconhece que, além da filiação divina sobrenatural – dada a cada um de nós pelo Batismo, que nos possibilita, de modo pleno, o consórcio com Deus já aqui na terra e, depois, na eternidade feliz – há a filiação natural que nos faz todos irmãos, pois filhos do mesmo Pai. Duas citações vêm a propósito. A primeira é de Dom Estêvão Bettencourt, OSB, afamado teólogo brasileiro, a afirmar o seguinte: “Todo ser humano, pelo fato de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, é filho de Deus. Os vestígios desta filiação se encontram na realidade mesma do ser humano: em todos existe a sede do Infinito ou do Absoluto (muitas vezes mal entendido), todo homem pode reconhecer Deus como o Autor deste mundo e Pai da sua vida. Com outras palavras: todo homem aspira a algo de melhor do que aquilo que ele tem… aspira ao Bem que não se acaba, embora nem sempre saiba como atingir este Bem. Tais são as marcas do Criador ou de Deus, que se imprimem em toda criatura feita à imagem do Pai celeste”.

“Mais ainda: todo homem tem em si a capacidade de cultivar as quatro virtudes cardeais, que ajudam a atingir o Fim Supremo ou a caminhar corretamente neste mundo: – a prudência, que sabe escolher os meios que levam ao fim e sabe evitar os obstáculos que a ele se oponham; – a justiça, que procura dar a cada um o que lhe compete; – a fortaleza, que robustece a vontade para que enfrente e supere os desafios da vida cotidiana; – a temperança, que modera os apetites da pessoa e a torna equilibrada entre os atrativos da vida presente. O homem que assim vive pode chegar a um certo grau da perfeição, fazendo muitos esforços para tanto. Era essa perfeição meramente humana que os filósofos estoicos gregos e romanos desejavam alcançar mediante a prática da apatia (isenção de paixões), prática esta que os próprios estoicos julgavam muito difícil de ser sustentada. Todavia é de notar que, mesmo antes de Cristo, podiam alcançar a salvação os homens e as mulheres que não conheciam o verdadeiro Deus sem culpa própria, mas viviam corretamente, seguindo os ditames de sua consciência cândida e sincera, julgando, com certeza subjetiva, que o erro era a verdade” (Pergunte e Responderemos n. 547, janeiro de 2008, p. 10-11).

Também Dom Amaury Castanho, 3º. Bispo Diocesano de Jundiaí- SP, já falecido, oferece-nos importante reflexão ao escrever, à luz de Gênesis 1-2, que “todos os homens pertencendo à mesma espécie humana e descendendo de um só casal, segue-se, por natural consequência, que todos somos fundamentalmente iguais e irmãos entre nós. Nada, portanto, justifica o racismo ou qualquer tipo de discriminação entre os homens. As diferenças são acidentais, secundárias, devendo ser superadas pela solidariedade e fraternidade universais. Entre indivíduos e povos somente deveria haver diálogo e entreajuda, jamais ódios e guerras, jogando-se irmãos contra irmãos. Isso não está no plano de Deus. A fraternidade deve traduzir-se em gestos cotidianos de serviços e delicadezas” (Iniciação à leitura da Bíblia. 5ª ed. Aparecida: Santuário, 2007, p. 45). Perguntaria, talvez, alguém aqui: aquele bispo teria intuído, naquele tempo, o que o Papa Francisco escreveria agora? Afinal, na transcrição que fiz, Dom Amaury parece, a seu modo, sintetizar a “Fratelli tutti”… Não é nada disso. Propus esta citação para deixar muito claro aos leitores que o tema abordado hoje pelo Santo Padre é, em sua essência, pertencente ao patrimônio da nossa fé católica.

Sim, foi publicado, em 1995, o livro L’Encyclique cachee de Pie XI (A encíclica oculta de Pio XI. Editions La Découverte. Paris 1995. p. 320 pp.), da autoria de Bernard Suchechky, historiador judeu, e do Pe. Georges Passelecq, beneditino belga que trabalhou na Resistencia ao nacional-socialismo e foi Vice-presidente da Comissão Nacional Belga para as Relações com Povo Judeu. Eles apresentam, no referido livro, o texto de um esboço de encíclica de Pio XI sobre antissemitismo, esboço que nunca foi ulteriormente elaborado e, por isto, também não publicado. Tal encíclica devia começar pelas palavras Humani Generis Unitas (A Unidade do Gênero Humano). Contudo, aquele Pontífice faleceu na noite de 9 para 10 de fevereiro de 1939, deixando-nos apenas o esquema do documento.

Como quer que seja, os dois renomados historiadores, afirmam que “a intenção dominante do texto era colocar as bases filosóficas, científicas e teológicas da unidade do gênero humano; todos os homens têm a mesma origem; por conseguinte, são iguais entre si; daí serem perversas as discriminações de ordem racial, religiosa, econômica, etc. […]. O racismo é condenado como contrário à unidade do gênero humano e como avesso à liberdade e à dignidade da pessoa humana”. Além da forte defesa dos judeus perseguidos pelo nazismo, o esboço do documento se volta para outros pontos fundamentais: Unidade da estirpe humana: “A unidade do gênero humano pousa, em primeiro lugar, sobre um fundamento que é a natureza humana comum a todos” (n. 72). Mistério do Sangue: “O sangue e o parentesco de sangue fundamentam a realidade da comunidade dos homens… ligam todos os homens entre si por aquilo que eles têm de mais profundo, a saber: as suas relações com Deus” (n. 75). Racismo: “A teoria e a prática do racismo, distinguindo raças superiores e inferiores, ignoram o vínculo da unidade, cuja existência está demonstrada” (n. 112). O Papa Pio XII usou fragmentos desse rascunho de seu antecessor, principalmente os concernentes à unidade do gênero humano, em sua encíclica inaugural do pontificado, a Summi Pontificatus, de 20/10/1939 (cf. Pergunte e Responderemos n. 407, abril de 1996, p. 159-163).

Que assentimento o fiel católico é chamado a dar a essa importante encíclica? – Aquele que nos recomenda a Mãe Igreja na Lumen Gentium: a religiosa submissão da vontade e do entendimento no que ela traz do magistério autêntico (fé e moral). Diz textualmente o documento conciliar citado: “Esta religiosa submissão da vontade e do entendimento é por especial razão devida ao magistério autêntico do Romano Pontífice, mesmo quando não fala ex cathedra; de maneira que o seu supremo magistério seja reverentemente reconhecido, se preste sincera adesão aos ensinamentos que dele emanam, segundo o seu sentir e vontade; estes manifestam-se sobretudo quer pela índole dos documentos, quer pelas frequentes repetições da mesma doutrina, quer pelo modo de falar” (LG, 25).

Dito isso, a título de oportuno pano de fundo da encíclica “Fratelli tutti”, será muito importante o aprofundamento dos temas que o Papa Francisco desenvolve e atualiza com relação às questões sociais em seus longos capítulos. Que isso estimule a leitura integral e a reflexão profícua deste novo documento que vem integrar a rica Doutrina Social da Igreja.

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