A misericórdia é o coração da Igreja

    O tema da misericórdia faz parte da tradição cristã. Assim lemos em Lc 15. Aliás, faz parte da vida humana em todos os momentos da história. A revelação judaico-cristã o coloca no cento do relacionamento entre as pessoas. Em Jesus Cristo ficou muito clara a experiência da misericórdia de Deus para com o povo pecador e distante do caminho.
    Para o Papa Francisco, desde a sua primeira aparição na janela do Palácio Apostólico até hoje, em suas intervenções e sinais, o tema da misericórdia tem norteado sua pregação e seu comportamento. E, vendo que o mundo necessita caminhar nessa trilha da misericórdia, proclamou o Ano do Jubileu da Misericórdia. Eis um testemunho que deve nos nortear sempre e que, especialmente neste Ano da Misericórdia, deve estar em nossas reflexões e na necessidade de fazer aparecer a misericórdia ao povo de nosso tempo.
    A expressão misericórdia tem origem latina; é formada pela junção de miserere (ter compaixão), e cordis (coração). “Ter compaixão do coração” ou “ter um coração compassivo que desce à miséria do outro” significa ter capacidade de sentir aquilo que a outra pessoa sente, aproximar seus sentimentos dos sentimentos de alguém, ser solidário com as pessoas.
    Na tradição tanto judaica quanto cristã proclama-se que a misericórdia de Deus é infinita, que Deus condena o pecado, o mal cometido, mas não quer nem a morte nem a condenação do pecador. Recordemos de Jesus de Nazaré que, diante de uma mulher surpreendida em flagrante adultério, disse: “Mulher, ninguém te condenou? Nem eu te condeno! Vai e não peques mais!” (Jo 8, 10-11).
    É em fidelidade a essa “boa notícia” que o Papa São João XXIII, na encíclica Pacem in Terris, 52 anos atrás, afirmava que jamais se deve “confundir o erro com a pessoa que erra” e que “pessoa que erra não deixa de ser uma pessoa, nem perde nunca a dignidade do ser humano” e, portanto, deve ser tratada com misericórdia e compaixão.
    Desde que assumiu o ministério petrino, o Santo Padre o Papa Francisco proclama a boa notícia cristã por excelência, o Evangelho, que é muito simples: Deus é amor universal infinito, o seu amor não precisa ser merecido, a sua misericórdia quer chegar a todas as pessoas, todas pecadoras, isto é, responsáveis por um mau viver e agir.
    Na verdade, não há nenhuma mudança substancial no magistério papal: São João Paulo II exaltou a misericórdia através de uma encíclica (“Dives in misericórdia”) e da instituição do “domingo da misericórdia” no segundo domingo da Páscoa (foi nesse dia que eu iniciei meu ministério episcopal aqui na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro). O caminho que vejo é construir a unidade pela misericórdia e pela compaixão. O Papa Bento XVI colocou no centro da sua pregação esse amor-caridade (“Deus caritas est”), que é a definição última do Deus narrado por Jesus Cristo.
    Como Jesus disse à adúltera “nem eu te condeno”, o Papa Francisco não pode dizer outra coisa diante de um homem, de uma mulher que são pecadores assim como os outros. Cada um de nós, sendo honesto, pode no máximo dizer que cometeu pecados diferentes, mas não que é sem pecado. Ele disse o que deve dizer um cristão que sabe deixar a Deus o julgamento. A Igreja e, portanto, os seus ministros podem e devem discernir o que é mal, denunciá-lo, alertar contra o mal, mas não julgam aqueles que cometem o mal. O Estado emite um julgamento sobre o que é delituoso segundo a sua lei e, também, impõe uma pena ao culpado, mas os cristãos não o fazem: eles remetem o juízo a Deus. Isso não é “bonismo”, não é diluição da exigente ética cristã, não é buscar modas ou posições mundanas: é fazer resplandecer a verdade do Evangelho sem que ela cegue aqueles que a querem buscar.
    Nesse sentido, o Papa também me parece remeter a uma leitura necessária e urgente hoje na Igreja: no furor da “tolerância zero”, às vezes não se sabe mais distinguir entre o que é mau segundo a Igreja, os pecados, e o que é mau segundo a lei do Estado, os delitos. Quando há um crime, para o cristão, assim como para qualquer outra pessoa sujeita às leis do Estado, a justiça deve intervir e exercer o seu poder de condenação. Lembremos que para os pecados, no espaço eclesial, está prevista a confissão, o reconhecimento da culpa, o pedido de perdão a Deus que sempre o concede, ou mesmo a via penitencial para uma mudança radical de vida que todos, absolutamente todos, têm direito de recomeço e de graça.
    Para qualquer pessoa que presida uma Igreja ou uma comunidade não é fácil caminhar sobre o fio da navalha: reiterar com força o que é bom e denunciar o que é mau, mas continuar se exercitando na misericórdia com aqueles que, tentados, sucumbem e cometem o mal.  Qualquer pessoa que governe na Igreja deve ser forte na fé e na doutrina, mas com o coração misericordioso moldado por Deus: o Deus que deixa 99 ovelhas no aprisco e vai em busca daquela que se perdeu; o Deus que espera o filho que se afastou e faz mais festa para ele do que para o outro que nunca tinha tido a coragem de ir embora; o Deus que, sobre a Cruz, em Jesus, perdoa aqueles que O crucificaram e O desprezaram. Essa mensagem é escandalosa desde sempre para muitas pessoas que só enxergam a lei, é loucura para os intelectuais que confiam no seu raciocínio jurídico, mas isso é o cristianismo.
    O que, portanto, é realmente grave na vida de um cristão? Temos muitas situações e os mandamentos explicitam com clareza. É também grave julgar os outros com intransigência e rancor, é grave e hipócrita condenar com força e severidade os outros porque cometem atos que, muitas vezes, justamente aqueles que o condenam também cometem, por sua vez. É, ainda, mais grave se comportamentos pecaminosos se tornam meios de chantagem, de poder, de cumplicidade, até conduzir batalhas comuns contra “outros” percebidos como inimigos ou pura e simplesmente porque são mais inteligentes ou capacitados do que os seus algozes.
    Quem não julga não será julgado, quem tem misericórdia obterá misericórdia: essas são palavras de Jesus. É nessa compreensão do Evangelho que o Papa Francisco disse ao episcopado brasileiro: “É preciso uma Igreja capaz de redescobrir as entranhas maternas da misericórdia. Sem a misericórdia, não é possível inserir-se em um mundo de ‘feridos’ que precisam de compreensão, de perdão, de amor”.
    Os trabalhos do Sínodo dos Bispos sobre a Família encerraram-se no último Domingo, o XXX do Tempo Comum, em que o Evangelho fala do cego Bartimeu. Um importante momento deste final de Sínodo foi a intervenção do Papa Francisco com uma mensagem em que realçou a importância de defender o homem e não as ideias, defender o espírito e não a letra da doutrina.
    Em particular, o Papa Francisco considerou que a experiência do Sínodo fez compreender melhor que defender a doutrina é defender o seu espírito e o homem em vez de ideias: “A experiência do Sínodo fez-nos compreender melhor também que os verdadeiros defensores da doutrina não são os que defendem a letra, mas o espírito; não as ideias, mas o homem; não as fórmulas, mas a gratuidade do amor de Deus e do seu perdão.” O Papa Francisco foi categórico ao dizer que a Igreja não quer impor condenações, mas ser o canal da graça misericordiosa e reparadora.
    O Santo Padre recordou o Beato Paulo VI, São João Paulo II e Papa Bento XVI e no final do seu intenso discurso afirmou que “para a Igreja, encerrar o Sínodo significa voltar realmente a «caminhar juntos» para levar a toda a parte do mundo, a cada diocese, a cada comunidade e a cada situação a luz do Evangelho, o abraço da Igreja e o apoio da misericórdia Deus”!
    O Evangelho desse dia, que apresentou o episódio do cego Bartimeu, foi precedido na primeira leitura pelo profeta Jeremias que, em pleno desastre nacional, enquanto o povo é deportado pelos inimigos, anuncia que “o Senhor salvou o seu povo” “porque Ele é Pai (cf. 31, 9); e, como Pai, cuida dos seus filhos” – afirmou o Papa.
    Na sua homilia, o Santo Padre assim se referiu: “o Evangelho de hoje se liga diretamente à primeira Leitura: como o povo de Israel foi libertado graças à paternidade de Deus, assim Bartimeu foi libertado graças à compaixão de Jesus.” Jesus deixa-se comover e responde ao grito do Bartimeu: “Jesus acaba de sair de Jericó. Mas Ele, apesar de ter apenas iniciado o caminho mais importante, o caminho para Jerusalém, detém-Se ainda para responder ao grito de Bartimeu. Deixa-Se comover pelo seu pedido, interessa-Se pela sua situação. Não Se contenta em dar-lhe uma esmola, mas quer encontrá-lo pessoalmente. Não lhe dá instruções nem respostas, mas faz uma pergunta: “Que queres que te faça”? (Mc 10, 51).
    A palavra sínodo significa “caminhar juntos” – recordou o Papa – e neste Sínodo o Santo Padre lembrou o caminho percorrido com as famílias do “Povo santo de Deus disperso por todo o mundo”. Por esta razão, o Papa Francisco recordou o profeta Jeremias em uma das leituras do dia, onde verificamos que “o primeiro a querer caminhar conosco, a querer fazer sínodo conosco é o nosso Pai”. E o sonho de Deus é o de formar um povo onde cabem todos, “entre eles estão o cego e o coxo”!
    O Santo Padre, a este ponto da sua mensagem antes da recitação do Ângelus, declarou que a profecia do povo em caminho fê-lo confrontar-se com a realidade dos refugiados na Europa: “Também estas famílias mais sofredoras, desenraizadas das suas terras, estiveram presentes conosco no Sínodo, na nossa oração e nos nossos trabalhos, através da voz de alguns dos seus Pastores presentes na Assembleia. Estas pessoas em procura da dignidade, estas famílias em procura de paz ficam ainda conosco, a Igreja não as abandona, porque fazem parte do povo que Deus quer libertar da escravidão e guiar para a liberdade”.
    Agora vamos estudar o relatório final do Sínodo, com as suas muitas indicações para a vida da família, para o incremento da Pastoral Familiar. Vamos, com esperança e abertura de coração, aguardar a Exortação Pós-Sinodal. E, como sempre pede o Papa Francisco, vamos rezar pelas famílias, e pelo nosso pai na fé, que nos guia na caridade – o próprio Papa Francisco –, para que o Espírito Santo de Deus continue guiando a sua importante missão. E, para todos nós, ministros ordenados e todos os homens e mulheres de boa vontade, aqueles que particularmente estão com os corações feridos, meu abraço generoso, minha solidariedade e a minha pregação vigorosa, não só em palavras, mas em atos concretos que quero reafirmar como fiz no início de meu ministério no Rio de Janeiro, e estou procurando colocar em prática em todo o meu itinerário cristão: a misericórdia é o coração da Igreja!

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