A guitarra do rei

    Em 1965 foi lançada em Assis, SP, a pedra fundamental de uma igreja. Nada de extraordinário a se contar, não fosse esta mais um fruto de história de fé, dessas que só o coração divino sabe ler e abençoar. Eu estava lá para testemunhar (tanto que pude também assinar uma lista depositada na caixa do tempo, solenemente abençoada, lacrada e enterrada no terreno recém adquirido). Cinquenta anos! O tempo voou, fez estragos e deixou sulcos na alma e coração de muitos, mas não apagou da minha memória o que testemunhei desde então. Lá está a bela igreja, suntuosa, vibrante, merecedora do título que possui. Hoje sou seu paroquiano.  
    Qual afinal é sua história? Em 1964 chegou a Assis padre Manoel Carlos Pereira, lazarista e formador, com a incumbência de ajudar na formação dos seminaristas menores do São José. Eu era um deles. Visitando os arredores do seminário, conheceu um bairro próspero, donde se podia ter uma panorâmica da cidade. Pe. Carlos se encantou com o local e logo imaginou ali uma igreja. Um santuário! Com o título de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, de quem era devoto. Correu atrás desse sonho. Fez o projeto, reuniu a comunidade, motivou a todos, fazendo de imediato uma maquete com uma construção moderna, sustentada por belos arcos e lindos vitrais. Mandou imprimir milhares de estampas com o desenho do projeto. Mas nem sequer o terreno possuía.
    Aqui entra o rei. O cantor Roberto Carlos estava no topo do sucesso com sua Jovem Guarda. Pe. Carlos sabia de sua devoção mariana. Não pestanejou. Muniu-se de coragem, juntou a estampa de seus sonhos e foi até ao rei. O sonho era maior que as possibilidades, mas logo encontrou eco na sensibilidade religiosa daquele que inocentemente mandava “tudo mais” para o Inferno. Certamente a audácia e a determinação daquele padre pequenino, de batina preta e cabelos brancos, ali, vindo de tão longe para tão inusitado pedido, tocou de imediato o coração do rei. Deu-lhe não só uma importância significativa para a aquisição do terreno, como também um guitarra. Sim, uma guitarra autografada!
    Adquirido o terreno, Pe. Carlos ergueu de imediato um amplo salão para quermesses. O sonho ganhava formas. Sábado era dia de quermesse na vila Adileta. O evento tornou-se tradicional, atraindo grande público e levantando recursos para a aquisição de outra parte do terreno, pois que seu projeto era grandioso. E a guitarra? Um dia resolveu fazer um sorteio com ela. O ganhador, sem afinidades com o instrumento, doou-a novamente à comunidade. Mais um sorteio. Mais uma devolução. Outro e outra devolução. A guitarra do rei teimava em ficar na comunidade, multiplicando os recursos e atraindo grande público. Vários sorteios e leilões foram feitos, mas a guitarra retornava sempre, como doação ou mesmo incentivo ao projeto do santuário. Depois de muitas tentativas, ela se foi, não sem antes ter possibilitado o milagre de angariar os recursos necessários para consolidar a construção. Quando mais um feliz ganhador tomou posse definitivamente daquele instrumento as paredes da igreja já estavam de pé.
    Milagre ou coincidência? Uma dádiva de amor é sempre maior do que seu valor em espécie. Aquele instrumento tinha sim um valor histórico e sentimental para os fãs do cantor. Para ele era apenas mais um; talvez nem mesmo o mais preferido, o melhor. Roberto, com certeza, não atinou para o milagre de seu gesto sem grandes pretensões. Mas a Mãe Maria, honrada pela fé de seus filhos, aceitou e multiplicou suas graças, usando um instrumento quase profano para edificar sua casa. Talvez o rei nem sequer tenha se dado conta ou tomado conhecimento desses fatos. Com certeza, estarão registrados nos anais não só do hoje Santuário N. Sra. Das Graças, de Assis, como também nos anais da Eternidade. A guitarra do rei ajudou a construir uma Igreja!