A Fé – Cartas do Padre Jesus Priante

‘É a maneira de ter o que esperamos e de conhecer o que não vemos’

Uma das grandes tarefas do pensar humano consiste em despertar as palavras e os símbolos adormecidos em nosso cotidiano. Também as palavras, pequenas canoas da nossa existência, dormem e, por vezes, morrem dentro de nós. A Filosofia da Linguagem cumpre esse compromisso de vivificar as palavras, cofre de nossas culturas.

Uma das palavras mais emblemáticas dos povos é a “fé”.

Este monossílabo luso-espanhol configura nossa existência. Kant a postulava como “porta para a razão seguir pensando”. Dante Alighieri, na Divina Comédia, lamentou sua ausência. Por isso, por boca de um dos condenados disse: “Por seguir a razão, acabei no inferno”.

Só pela fé podemos ultrapassar os intransponíveis muros da luta pela vida, a culpa, a dor e a morte, que nos cercam.

Crer ou não crer. Essa é nossa grande questão. Quem crê vive, quem não crê permanece na morte, disse Jesus. A Fé é a única resposta e consolo para os que temos nascido para morrer. Mas o que é a Fé? Possivelmente, temos tantas definições como pessoas, pois insere-se de maneira própria em cada um. Por isso o Credo,o recitamos na primeira pessoa. Ninguém pode acreditar por outro. De maneira genérica, a Fé é a maneira como cada pessoa vê e pensa a realidade.

O pensador espanhol, Ortega y Gasset, diz que “cremos mais do que sabemos”. To think (pensar) e to believe (crer) para expressar nossa opinião, em inglês, mostram essa ideia de Ortega y Gasset.

Não existem dogmas mas opiniões. Não somos sábios, mas amigos da sabedoria (filósofos). As ciências, filosofias e religiões são crenças. A Fé é dom de Deus, que obsequia nossa razão para dar sentido aos problemas e questões que a nossa razão não tem como responder. Lida com os mistérios. Junto com a caridade e a esperança, a Fé é uma virtude teologal ou dom de Deus. É um saber e, ao mesmo tempo, agir de Deus além de nós mesmos. É a maneira que Ele escolheu para nos Salvar ou, melhor, fazer-nos conhecer nossa Salvação. Mas, com isto, já estamos violando o mistério da mesma Fé, que pertence a Deus. Nossa razão a postula para poder pensar nossa vida e a realidade deste mundo em que habitamos. Vejamos algumas das teorias ou explicações sobre o que seja a Fé.

⁃ Para Pascal (séc.XVII) a Fé é uma “aposta”. Por ela, depositamos tudo quanto somos e temos, na esperança de termos a “sorte” de viver com Deus. A Fé exclui qualquer outra possibilidade de vida fora de Deus e dispensa nossas posses e até nossas boas obras.
⁃ Para Kant (séc.XVIII), além de ser um postulado da nossa razão, é a maneira de evitar o suicidio, única saída racional que teria o ateu ou pessoa sem Fé.
⁃ Jung, contestando a Freud, que considerava a kreligião como uma neurose, afirmava que sem uma Fé verdadeira não podemos ser mentalmente equilibrados. Essa fé verdadeira só a encontramos em Cristo Ressuscitado. Por isso, Abraão, chamado “Pai da Fé”, diferente da crença religiosa, se nos diz em Jo.8, “desejou ver o dia da Ressurreição de Cristo”. De fato, só pela Fé é que podemos ter certeza da nossa Salvação. Até Cristo,
não se tinha certeza de que
seremos nós mesmos os que
viveremos gloriosamente com
Deus, não por méritos
próprios, mas como dom e
graça de Deus.

Essa certeza é que nos
comunica sentido e saúde
mental. Um Deus que nos pode
condenar ao inferno, próprio
das religiões, cria em nós um
temor neurótico.
⁃ Jean Guitton (séc.XX) considera a Fé como supremo ato de liberdade que nos permite livremente irmos com Deus. Só aquele que tem Fé morre, e quem não A tem é morto, vítima da
morte.
⁃ Para um budista, a fé é o caminho e a companheira da nossa vida sequiosa da felicidade a ser atingida no chamado Nirvana. Brinda-nos sabedoria, nos faz fraternos e nos faz desejar e trabalhar pela salvação de todos. Liberta-nos do nosso “eu” e do nosso “meu”, causa de nosso sofrimento e do ciclo trágico de “nascer para morrer e morrer para nascer”. Pena que os budistas não conheçam Jesus Cristo, seriam seus melhores discípulos.
⁃ Em Hb.11,1 define-se a Fé como: “a maneira de ter o que esperamos e de conhecer o que não vemos”. E, para
explicá-La, passa a narrar a Fé
dos grandes protagonistas da
história da Salvação, desde
Abel até Jesus Cristo. Mas
deixa claro que antes de Cristo,
ninguém teve os bens que a Fé
nos brinda nem conheceu a
realidade invisível do Reino de
Deus. “Todos foram louvados
pela sua “Fé”, mas não
conseguiram o objeto da
mesma: a Promessa da
Salvação, porque Deus lhes
preparou algo melhor e não
queria que chegassem ao seu
término antes de nós”.
De maneira existencial, Sao
Paulo nos brinda a melhor
definição da Fé: “sofrer e
morrer com Cristo, para com
ele Ressuscitar”. A Fé é pascal.
⁃ A Fé foi interpretada pelo povo judeu como um “apoiar-se em Deus”, reconhecendo como Jacó, nossa debilidade (Israel=forte com Deus). O povo católico acentuou o caráter do conhecimento do invisível. A Fé é aderir às verdades reveladas. Para o povo protestante, seguindo Lutero, a Fé consiste em confiar em Deus, “In God we trust”. As três atitudes confluem no credo salvífico de São Paulo: “Porque se confessares com tua boca e teu coração que Jesus Cristo é o Senhor, Ressuscitado dentre os mortos, serás Salvo” ( Rm.10,10). Confessar
que Cristo é Senhor significa
não só que Ele é Deus mas
também que nossa vida
pertence a Ele. É por isso que
todos seremos salvos, porque
pertencemos a Deus,

Assim como a palavra “Fé”, temos de despertar também o título de “Senhor”, atributo só de Deus em relação a nós e a toda a Criação. “Somos Dele e a Ele pertencemos” (Sl.100). Nada e ninguém poderá nos separar de Deus ( Rm.8).

Frente à grandeza da Fé que nos dá a Vida Eterna já neste mundo no horizonte de uma esperança, segura e certa, Jesus revelou ser escassa na vida das pessoas, mesmo cristãs, inclusive deixou em aberto a pergunta: ” Quando eu voltar, será que encontrarei Fé na terra?” (Lc. 18,8). Infelizmente, a maior parte das pessoas do mundo irão a Deus mais como religiosas do que como cristãs, embora todos acabaremos nossa existência sendo de Cristo e, com Cristo, de Deus.

O SENHOR FALOU A JÓ DENTRO DE UMA TEMPESTADE, QUESTIONANDO SUA FÉ, DIZENDO: “QUEM ENCERROU O MAR, JORRANDO DO SEU SEIO MATERNO, VESTIDO E ENFAIXADO COM AS NÉVOAS E NUVENS DO CÉU?” (Jó,38,1.11).

A figura bíblica de Jó, homem exemplarmente religioso, revela-nos a diferença entre a mera crença das religiões e a Fé que viria em Cristo. Jó perdeu seus bens, seus sete filhos e ficou leproso, dupla desgraça, pois além de doente, sua lepra mostrava na pele seus pecados ocultos. Se sofre aquelas desgraças é porque Deus assim castiga aos pecadores. É essa a leitura das religiões. Jó honestamente se considera inocente e pede a Deus a razão do seu sofrimento. Como toda pessoa religiosa, diante do sofrimento, a mera crença e as filosofias, não respondem a este nosso problema existencial: Por que sofremos?… É um problema limite da nossa razão. Só aquele que tem o dom da Fé encontra o seu sentido. Deus não responde nem explica a Jó a razão do seu sofrimento. Apela à sua ignorância humana para se abrir ao Mistério, dizendo-lhe: ” Você sabe quem encerrou o mar e o enfaixou com névoas e nuvens? “Hoje nos perguntaria quem encheu o firmamento de trilhões de estrelas e planetas ou acendeu a faísca da vida?

Os mistérios ofuscam nossa razão, ao mesmo tempo que a iluminam. Sem os mistérios (realidade e verdade além de nossa razão, a vida se torna irrespirável, diz Gabriel Marcel.

No seculo XIV, Nicolas de Cusa apelava à. “douta ignorância”, para de fato conhecer a verdade de Deus, do mundo e de nós mesmos. No século II, alguns teólogos, afirmavam: “Deus é o que Deus não é”. A mesma tese podemos aplicar para nós e o mundo. O que é tem de ser de outra maneira. Moltmann chamou a essa sabedoria dos mistérios “douta esperança”.

Sabemos na medida que esperamos e o que esperamos só Deus conhece.

São João da Cruz (séc. XVI) nos legou a maneira de viver pela Fé e pela esperança: Para você ir onde você não sabe, deve ir por onde você não sabe”. Não sabemos quem é Deus nem o que seja o Seu Reino para onde vamos, menos ainda que um câncer, curável ou fatal, seja o seu caminho. Meus caminhos, disse Deus, não são vossos caminhos. No Alcorão, lemos que alguns anjos (“jinns”) expiaram a Deus conversando com seu anjo preferido, Gabriel sobre seus planos e foram expulsos dos Céu, convertidos em demônios, por causa desse pecado.

Jó reconheceu após recuperar seus bens, novos filhos e a saúde, ter falado só bobagens por querer saber a razão do seu sofrimento.

Depois de Cristo, a única razão de nossas dolências e mortes é a Ressurreição, que por ser meta-histórica, nos obriga a crer e esperar Nela, se queremos dar sentido à nossa problemática existencial. A fé é essencialmente pascal.

“EM CRISTO, NÃO MAIS VIVEMOS PARA NÓS E PARA O MUNDO, MAS PARA AQUELE QUE MORREU E RESSUSCITOU POR NÓS” ( 2Cor.,5,14-17)

Nosso existencial ou maneira de ser e viver é Cristo, morto e Ressuscitado. Não somos mais humanos, filhos de Adão, mas cristãos.”Se alguém está em Cristo é uma nova criatura, uma nova realidade”. E o Cristo no qual cremos, nos diz São Paulo, é o Cristo historicamente crucificado e, para além da história, Ressuscitado. Enquanto estamos neste mundo (História) o sofrimento, que finda na morte, nos acompanha. E se não o vivemos com Cristo na cruz, esperando a Ressurreição, nós
iremos fatalmente ao desespero, como sugeriaZ Albert Camus. “Não cruz, Cristo, a maneira de ter o que esperamos e de conhecer o que não vemos e desesperar”.

Nossa Fé, a única verdadeira fé possível, é essencialmente pascal. “Eis o mistério da nossa Fé”, referindo-se à morte e à Ressurreição de Cristo,que celebramos na Eucaristia. Teríamos de confessar não precisamente “anunciamos” senão “vivemos” nessa mesma morte e na Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo enquanto esperamos a Sua vinda gloriosa.

“Tudo o que vivo no humano se
faz vida minha pela Fé em Cristo” (Gl.2,20). Esta Fé Pascal tornaria nossas doenças e sofrimentos até motivo da nossa alegria, como o próprio São Paulo confessa: “Eu me alegro em Cristo crucificado”. Não é o mesmo sofrer, mas sofrer em e com Cristo ou, melhor, crer que é o próprio Cristo que sofre em nós. Mais ainda, morte e a Ressurreição não são duas etapas, mas ambas simultâneas: “Enquanto nosso homem exterior caminha para sua ruína, o homem interior se renova dia a dia” (2Cor.4,16), à semelhança do morrer e do renascer da semente.

No Budismo, se diz que no mundo somos visitados por três anjos: a doença, a velhice e a morte. Eles nos mostram que temos de aspirar a uma outra vida, livres da ilusão deste mundo, através da sabedoria da Iluminação, até nos tornarmos ” budas”, iluminados. Essa filosofia busdista é mais sublime e verdadeira em Cristo, “Luz do Mundo”, que veio não só para nos iluminar como para dar-nos a vida de Deus.

Santo Inácio de Antioquia (+107) dizia que nascemos pela Fé na humanidade e divindade de Cristo. Nossa vida é a mesma vida de Cristo, morto e Ressuscitado. Na Eucaristia realiza-se esse Mistério. A cristologia é, pois, eucaristica.

“SOBREVEIO UMA TEMPESTADE NO MAR DA GALILEIA. JESUS DORMIA NA POPA DO PEQUENO BARCO. SEUS DISCÍPULOS, ATEMORIZADOS, O ACORDARAM DIZENDO: “MESTRE , NÃO TE IMPORTA QUE PEREÇAMOS?” ELE LHES DIZ: “PORQUE TENDES MEDO. AINDA NÃO TENDES FÉ?” Mc. 4,35-40)

Jesus insere o anúncio do Mistério da Salvação dentro do contexto cultural bíblico, O mar agitado pelo vento simboliza na Biblia o caos do mal que nos supera humanamente. A Fé, afirma Kierkegaard (séc.XIX) nasce da angústia existencial, produzida pela nossa impotência frente ao pecado, à dor e à morte. Isso nos obriga a nos entregar nas mãos de Deus. Acalmada a tempestade por Jesus, seus discípulos perguntam-se: ” Quem é este, a quem o vento e o mar obedecem?”. Jesus já tinha feito anteriormente outros milagres, mas não por isso tinham eles a verdadeira Fé, que nunca nos vem pela via dos milagres. De fato, os milagres apenas são “sinais” da presença de Deus e do seu Reino. Os milagres, presentes ao longo da história, são uma “irrupção” não uma “interrupção” do plano salvífico de Deus, que passa “necessariamente” pelo vale das lágrimas e do agitado mar da vida que, sem Cristo não podemos cruzar. O símbolo do mar agitado pelo vento revela-nos a nossa condição humana e a do mundo que conhecemos. Não são poucos os filósofos que defendem a teoria do “acaso”, criador de um mundo caótico. No século II, Valentino, dizia que este mundo é regido
por um “demiurgo” ignorante e cego. Até Newton (sec.XVII), o Pai da Física, para se explicar as “estrelas errantes”, desgovernadas e caóticas, dizia que, de vez em vez, Deus precisava enviar um anjo para consertar sua harmonia.

Os terremotos, tempestades e todo tipo de desgraças, são caóticos. Uma doença nada mais é do que um caos ou desordem celular.

A razão pode até explicar a causa e os efeitos dos fenômenos mas não seu último propósito ou finalidade. Neste mar agitado da nossa existência, só cabe a Fé para podermos navegar. Tertuliano (séc.III) fundamentava sua Fé nesta capa irracional.”Creio porque é absurdo”, dizia. Não porque seja absurdo o que cremos, mas porque sem a Fé tudo é absurdo.

Nossos “dis-cursos” são cursos de água dos rios que mergulham no absurdo do mar da morte. Fé e razão são remos inseparáveis que tornam razoável nossa viagem pelo mar da vida. Pela razão tentamos entender o que cremos e pela Fé entender o que a razão não entende. “Creio para entender, e entendo para crer”, diz Santo Agostinho.

Padre Jesus Priante

Espanha

(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)
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