A espiritualidade do Natal

    Aproxima-se o Natal. A maioria das pessoas já envolvidas pelo clima comum de fim de ano estejam preocupadas com presentes, amigo oculto, viagens para rever familiares, enfeitar a casa com luzes, uma roupa nova e o que comprar para a ceia natalina. São preocupações que revelam a natureza externa e econômicas do natal. Nesta oportunidade seria bom refletir sobre o sentido cristão do Natal e a espiritualidade emergente que “depois da celebração anual do mistério pascal, nada na Igreja é mais venerável do que a celebração do Natal do Senhor e das suas primeiras manifestações: é o que se faz no Tempo de Natal”[1]

    Para entendermos, compreendermos e vivermos o Natal do ponto de vista da espiritualidade cristã e em conformidade com a Tradição da Igreja, necessário se faz revisitar a história. “por volta do ano 336, temos notícia de uma festa do natal em Roma, onde era celebrada a 25 de dezembro. Por S. Agostinho conseguimos saber que, também na África, mais ou menos na mesma época, se celebrava o natal em data idêntica. Por volta do fim do séc. IV, a festa já se acha estabelecida no norte da Itália e é considerada uma das grandes solenidades; é o que aconteceu também na Espanha. No mesmo período, como ficamos sabendo por um discurso de S. João Crisóstomo, também em Antioquia se celebrava o natal a 25 de dezembro como festa vinda de Roma, porém diferente da epifania, celebrada a 6 de janeiro”[2].

    “Segundo uma tradição, que encontramos expressa no tratado De solstitiis et aequinoctiis e repetida frequentemente por Santo Agostinho, Jesus teria sido concebido no mesmo dia e mês em que depois teria sido morto, isto é, no dia 25 de março. Em consequência disso, o nascimento acabaria caindo no dia 25 de dezembro. Mas, ao que tudo indica, essa tradição não está na origem da festa, e talvez quer ser muito mais uma tentativa de explicação com base num misticismo numérico muito em voga na época. Outra explicação, que historicamente parece mais provável, é a que vê na festa do Natal uma ação da Igreja romana para suplantar, cristianizando-a, a festa do “Novo Sol”, ou seja, do Natalis Invicti, como se dizia. Inspirado nas Escrituras, mas também sob o estimulo das circunstâncias ambientais, o simbolismo da luz e do sol em referência a Cristo havia se desenvolvido muito e acabou sendo considerado sagrado para os cristãos. Alguns textos bíblicos – dentre os quais: “Ele fez do sol a sua morada”(Sl18); “Surgirá para vós o sol da justiça” (Mt4,2); “Virá a visitar-nos o sol que surge para iluminar aqueles que estão nas trevas” (Lc1,78) etc.- eram um chamado natural para ver o sol o símbolo de Cristo. Além disso, o próprio costume de rezar voltado para o Oriente era tão difundido entre os cristãos a ponto de fazer crer a muitos pagãos que eles o faziam em sinal de culto e devoção ao sol. É eloquente o testemunho de São Máximo de Turim (meados do séc.): Em certo sentido, com razão esse dia do Natal de Cristo é chamado vulgarmente também de “novo sol” (…). De bom grado aceitamos esse modo de falar, porque ao nascimento do Salvador responde não só a salvação do gênero humano mas também a luz do sol. Com certeza, talvez nem todos vissem com bons olhos o surgimento de uma festa cristã simplesmente como substituição de uma festa pagã. É compreensível, portanto, que recorrendo a cálculos agudíssimos, semelhantes aos usados na tradição rabínica, alguns se esforçassem em demonstrar que o dia 25 de dezembro, mais do que uma relação com o sol, fixasse o dia verdadeiro do nascimento do Senhor. O tema é encontrado no Oriente, por exemplo, em São João Crisóstomo, mas também no Ocidente e na própria Roma, onde o Cronógrafo de 336 assinala, no calendário civil (Fasti consulares), que Jesus “nasceu no dia 25 de dezembro, sob o consulado de César e Paulo”.[3]

    A realidade celebrada na solenidade do Natal, a “vinda” do Filho de Deus na carne, se concretiza no nascimento de Jesus por Maria e de Maria, e nos acontecimentos de sua infância. A celebração do natal, porém, não se detém no fato histórico, mas deste passa ao seu verdadeiro fundamento, o mistério da encarnação.

    O mistério do Natal não nos oferece somente um modelo a ser imitado na humildade e na pobreza do Senhor que jaz na manjedoura, mas dá-nos a graça de sermos semelhantes a ele. A manifestação do Senhor leva o homem à participação na vida divina. A espiritualidade do Natal é a espiritualidade da adoção como filhos de Deus. Isso deve acontecer não por uma imitação de Cristo ‘de fora para dentro’, mas no viver Cristo que está em nós e no manifestá-lo virgem, pobre, humilde, obediente. São Leão Magno convida o cristão a reconhecer a própria dignidade, a fim de que, tornando-se participante da natureza divina, não queira voltar a abjeção de outrora com uma conduta indigna.

    A noite de Natal

    No espaço de tempo que vai das I Vésperas de Natal à celebração Eucarística da noite de Natal, juntamente com a tradição dos cânticos natalinos, que são dos mais belos e poderosos veículos da mensagem de alegria e de paz do Natal, a piedade popular propõe algumas das suas expressões de oração, diferentes de pais para pais, que é oportuno valorizar e, se for o caso disso, harmonizar com as próprias celebrações da Liturgia. O espirito da missa da noite de Natal, a “missa do galo”, é de mistério: a luz que brilha na noite; o anjo que, durante a noite, aparece aos pastores; a alegria que ilumina os entristecidos; a mensagem dirigida aos mais humildes, os pastores que passam a noite junto aos seus rebanhos. É a luz divina que brilha para a humanidade que, sem ela, ficaria envolta em noite escura. O próprio drama litúrgico deve sustentar este simbolismo (cf. Lc 2,1-14). Tradicionalmente, este simbolismo se relaciona com o nascimento da nova luz, para nós é a noite mais luminosa do ano.

    Dentro da atmosfera do Mistério, desenvolve-se o anuncio do Natal do Messias e Salvador, Jesus, filho de Maria e José, mas, sobretudo, filho de Deus. O centro da celebração é o Evangelho, o anuncio do Salvador. José e Maria, vivendo uma situação de migração, como muitas famílias hoje em dia. Despojados de tudo e enquanto estavam em Belém, se completaram os dias para o parto, e Maria deus a luz o seu filho primogênito. Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles dentro de casa (cf. Lc 2, 6-7). A salvação manifesta-se lá onde menos se espera. As primeiras testemunhas, escolhidas a dedo pelo anjo de Deus, são os que, aos olhos da gente de bem, vivem uma existência dúbia à margem da sociedade, pernoitando com os animais no campo e quase identificados socialmente com eles: os pastores.

    Nesta noite santa, noite de luz, a liturgia deverá ser bem preparada, para fazermos uma experiência profunda do encontro pessoal como Menino Deus, nosso Salvador. Preparemos as pessoas para que num gesto de entrega, acolhida e adoção filial solenizar a presença da imagem do Menino Deus a ser colocada na manjedoura. E para dar força a esta ação ritual, os coros celestes juntam suas vozes à nossa voz e entoemos o majestoso hino: “Glória a Deus nas alturas, e paz à gente que ele quer bem”. Nesta glória envolta de humanidade realiza-se a paz messiânica.

    Nesta noite santa, noite de luz, não há pessoa no mundo que não pare para contemplar a presença do Menino Deus, na manjedoura. O Papa Francisco em sua Carta Apostólica “Admirabile signum”, sobre ao significado e valor do presépio, afirma, no número 8 que: “ O coração do Presépio começa a palpitar, quando colocamos lá, no Natal, a figura do Menino Jesus. Assim Se nos apresenta Deus, num menino, para fazer-Se acolher nos nossos braços. Naquela fraqueza e fragilidade, esconde o seu poder que tudo cria e transforma. Parece impossível, mas é assim: em Jesus, Deus foi criança e, nesta condição, quis revelar a grandeza do seu amor, que se manifesta num sorriso e nas suas mãos estendidas para quem quer que seja. O nascimento duma criança suscita alegria e encanto, porque nos coloca perante o grande mistério da vida. Quando vemos brilhar os olhos dos jovens esposos diante do seu filho recém-nascido, compreendemos os sentimentos de Maria e José que, olhando o Menino Jesus, entreviam a presença de Deus na sua vida. «De fato, a vida manifestou-se» (1 Jo 1, 2): assim o apóstolo João resume o mistério da Encarnação. O Presépio faz-nos ver, faz-nos tocar este acontecimento único e extraordinário que mudou o curso da história e a partir do qual também se contam os anos, antes e depois do nascimento de Cristo. O modo de agir de Deus quase cria vertigens, pois parece impossível que Ele renuncie à sua glória para Se fazer homem como nós. Como sempre, Deus gera perplexidade, é imprevisível, aparece continuamente fora dos nossos esquemas. Assim o Presépio, ao mesmo tempo que nos mostra Deus tal como entrou no mundo, desafia-nos a imaginar a nossa vida inserida na de Deus; convida a tornar-nos seus discípulos, se quisermos alcançar o sentido último da vida” ( cf. https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2019-12/papa-francisco-admiravel-sinal-carta-apostolica-presepio.html, último acesso em 15 de dezembro de 2019).

    Nesta noite santa, noite de luz, semelhante aos pastores somos chamados a anunciar ao mundo que Deus se encarnou e a salvação chegou até nós e em nosso tempo. Uma tradição que marca essa ação de peregrinar neste tempo são os mais diversos grupos da Companhia de Reis ou Folia de Reis, que tem assinalada na sua missão de anunciar de porta em porta o nascimento do Salvador. Os foliões são para nós a imagem do discípulo missionário que marca a vida de uma Igreja em saída, levando a todos sem distinção a grande mensagem: o Menino Deus nasceu e veio trazer para sua família, sua casa a paz e as bênçãos para que vivas feliz e colabore na missão de evangelizar.

    A essência da celebração da noite de Natal, da missa da aurora ou da missa do dia, bem como das celebrações familiares é a figura central do Menino Jesus. Vamos adorá-lo. Ele é o centro do Natal e esta espiritualidade natalina nos leva a adorar o Senhor que se fez carne para nos salvar!

    Feliz e abençoado Natal para todos! Deixe Jesus habitar o seu coração e seja transmissão viva das alegrias natalinas a todos os homens e mulheres de boa vontade! Cantemos jubilosos: “Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados!” (cf. Lc 2,1-14).

    [1] Enquirídio dos documentos da reforma litúrgica (EDREL), 2ªed., Secretariado Nacional de Liturgia, Fátima, 2014. O TEMPO DO NATAL, nº870.

    [2] BERGAMINI, A. NATAL/EPIFANIA, in. Dicionário de Liturgia, Org. por SARTORE, D & TRIACCA, A. São Paulo, Paulinas, 1992. p. 811

    [3] MARSILI, S. SINAIS DO MISTÉRIO DE CRISTO: Teologia litúrgica dos sacramentos, espiritualidade e ano litúrgico, PAULINAS/SP, 2010, p. 538-543.

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