A dança do Cisne

    A vida é um musical, um balé sem fim. Quem assim define a existência, com certeza, é alguém sensível, voltado para as belezas do grande espetáculo do qual ainda toma parte. Seu palco (ou picadeiro) ainda é capaz de reconhecer virtudes e qualidades daqueles que atuam a seu lado e fazem parte de uma dramaturgia maravilhosa. O roteiro é indefinido, mas o final há de merecer aplausos, posto que atue com desenvoltura e segue à risca seu papel existencial. O cenário, ah o cenário! Emoldura sua existência qual obra de arte surpreendente e coerente com cada ato da dramaturgia diária. Esse sabe viver a vida e dançar conforme a música.
    Ao contrário daquele que não enxerga, não compreende nada disso neste enredo em que também toma parte. O burburinho em que se meteu, o corre-corre caraterístico do seu dia-a-dia, o individualismo que bem defende, os passos em desarmonia com seus coadjuvantes, a dança solo fora do ritmo dos companheiros de palco, tudo isso faz de sua existência um eterno contrapasso grotesco e desagradável. A estes se dirigem não aplausos, mas vaias, críticas, desaprovações. Estão fora da harmonia do universo!
    Donde me vem essa reflexão? Da natureza, do mundo animal. Do mundo intelectual e também religioso. Ou melhor, das belíssimas lições de harmonia com a vida que esse mundo nos dá cotidianamente. Por exemplo, entre as aves. A mais portentosa e referendada delas é o cisne. Por parentesco e porte altaneiro, temos também o avestruz. Ou a ema, ou o pavão… Enfim, todas elas têm lá seu aspecto de encanto, sua maneira de saudar a vida com seus passos de dança, de voos transbordantes de alegria e gratidão a Deus. Fiquemos, então, com o cisne. É famoso o ritual da dança desse pássaro, que virou belíssimo musical dramatúrgico. Ave de porte altaneiro, leveza nos movimentos, sagacidade no olhar, pureza na plumagem, fizeram do cisne símbolo da mais expressiva dança do universo.
    Sua corte à amada chegou aos palcos humanos através do balé; ao som da mais bela valsa que a musicalidade clássica já conseguiu compor, a Dança do Cisne é sempre o ponto alto de qualquer apresentação que uma boa bailarina queira representar em sua carreira. Curiosamente, outros aspectos emergem desse espetáculo, denominado também como O Canto do Cisne ou A morte do Cisne. Outros são mais genéricos, preferindo apresentá-lo como O Lago do Cisne. Mas, em comum, todos lembram esta ave como inspiradora de um grande espetáculo. A razão vem de uma crença antiga de que esta ave era muda e só conseguia cantar quando a morte se lhe batia à porta. Pura mitologia, mas que muito inspirou e continua a inspirar muitos dos clássicos do balé e da literatura humana.
    Na Bíblia, o cisne estava entre as aves proibidas para a alimentação humana (Lev 11,14), pois faziam parte das belezas da criação e bem enfeitavam os lagos do Paraíso. Mas, celebrando agora os 500 anos da Reforma protestante, não posso ignorar uma curiosa observação dos historiadores desse fato histórico. Cem anos antes de Lutero, um antecessor da reforma foi condenado à morte por heresia. Prestes a ser lançado numa fogueira, profetizou: “Hoje vocês assam um ganso, porém daqui a cem anos cantará um cisne”. Um detalhe: o nome desse reformista era João Huss. Seu sobrenome, em língua boêmia, significa ganso. Cem anos depois, Martin Lutero era ordenado sacerdote, sobre o altar em que estava sepultado o bispo que condenara Huss… É, de fato, a dança do cisne ainda continua… Presságio do fim ou mistérios do grande Lago dos Cisnes de um Paraíso que ainda não compreendemos? Só o tempo dirá.

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