Por Dom Vital Corbellini, Bispo de Marabá (PA)
Nós estamos próximos ao tempo litúrgico da Quaresma, oportunidade propícia de conversão pessoal, comunitária e social. Ela nos aponta para a Páscoa, o mistério da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor Jesus Cristo. Este tempo também será de Campanha da Fraternidade 2023, que a CNBB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, há mais de sessenta anos, coloca um tema para ser aprofundado, assumido nas comunidades, paróquias, dioceses e por todas as pessoas de boa vontade. Este ano terá como tema a Fraternidade e Fome e o Lema: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Será um tema muito importante para que as pessoas abracem a causa da fome para amenizá-la em milhares de pessoas no Brasil e no mundo.
A fome é uma palavra latina fames cujo significado é sensação do corpo estimulado pela necessidade do alimento, isto é a falta de alimento[1]. A fraternidade vem de fraternitas-atis cujo significado é afeto, acordo entre as pessoas, amor[2]. O Senhor pede a todos nós ações para que façamos o bem, e vivamos o compromisso de ajudar muitas pessoas que passam fome em nossa realidade.
A oração da Campanha da Fraternidade[3]
É muito importante compreender o sentido da oração que a CNBB propõe a todas as pessoas para ser rezada, meditada e vivida na quaresma como campanha da fraternidade nos diversos âmbitos da vida eclesial. É uma oração trinitária. Ela volta-se ao Pai, pois diante da multidão faminta Jesus se encheu de compaixão realizando o milagre da multiplicação dos pães, pela benção, partilha dos cinco pães, dois peixes, e o seu ensinamento é para que todos os seus discípulos e discípulas dêem de comer às pessoas necessitadas. A oração tem presente o Espírito Santo na qual as pessoas pedem a inspiração em vista do sonho por um mundo novo, fundamentado no diálogo, na justiça, na igualdade para que assim com a sua ajuda haja a promoção por uma sociedade mais solidária, sem fome, violência, guerra, na busca sempre por uma vida digna. A pessoa volta-se também para Maria para que interceda pelo povo para que todos acolham a Jesus Cristo em cada pessoa, e de uma forma especial nas abandonadas e famintas.
Os objetivos da Campanha da Fraternidade[4]
Ela busca a sensibilização da sociedade e da Igreja para que o flagelo da fome seja enfrentado, fator presente numa multidão de pessoas humanas, havendo o compromisso que transforme a realidade a partir do Evangelho de Jesus Cristo. A campanha da fraternidade realça como objetivos específicos a compreensão da realidade da fome à luz da fé em Jesus Cristo, visando o aprofundamento das causas da fome, fazendo a acolhida pelo imperativo da Palavra de Deus em vista da corresponsabilidade fraterna pelo reconhecimento de muitas iniciativas comunitárias e sociais em favor da superação da fome.
A superação da fome
Na Quaresma, a Campanha da Fraternidade 2023 e a Igreja não ficam em definições sobre a problemática da fome, mas ela estimula a todos para que busquem ações concretas e com políticas públicas para a superação da fome no Brasil. A realidade da fome atinge a milhões de brasileiros, porque estão na insegurança alimentar pelo fato de que se as pessoas têm uma refeição por dia, quando a tiverem, no entanto não sabem se o dia seguinte terá outra. O Brasil entrou novamente no elenco dos países onde a fome atinge a milhares de pessoas. São necessárias ações em favor das mais necessitadas.
A fome não é ocasional
O texto-base diz que a problemática da fome não é ocasional, mas é estrutural, porque ela é dada por mais tempo, visando à manutenção da miséria[5]. A estrutura vem de structura, de construir, é um complexo de elementos para serem analisados e aprofundados[6]. Uma das mais importantes causas da fome no Brasil faz referência à concentração de terras, ocasionando uma distribuição excludente e causadora de desigualdades socioeconômicas de modo que é fundamental uma justa redistribuição da terra[7]. A fome exige um enfrentamento por parte de toda a sociedade, seja de suas autoridades como também da classe política, religiosa, pessoas de boa vontade porque milhares de pessoas passam fome.
Não é a falta de alimentos
O Brasil é um grande exportador de produtos alimentícios de modo que a fome não se justifica pela falta de alimentos. O fato é que o País tem uma grande produção de grãos, mas para gerar o lucro para grandes empresas, interesses econômicos, exportando grandes quantidades de alimentos, mas na realidade interna não tem o suficiente para as pessoas viverem com dignidade de vida. No País não se produz para comer, mas produz-se para lucrar e exportar[8]. Está faltando uma maior atenção para a realidade interna para os alimentos nas quais as pessoas passam por dificuldade em sua subsistência.
As palavras do Sumo Pontífice
O texto-base tem presentes duas expressões do Papa Francisco, muito importantes em relação à fome. Em primeiro lugar ele diz que não há democracia se existe fome[9]. A democracia é uma palavra grega demokratia, cujo significado é a forma de governo no qual o poder reside no povo, que exercita a sua soberania através dos instituídos políticos diversos pelo voto do povo[10]. O Papa afirmou a inexistência de democracia pela existência da fome, porque muitas pessoas passam necessidade na comida enquanto outras tem em abundância. A democracia, forma de governo do povo, é dada pela vida de todos. Outra expressão do Papa Francisco realça que a fome para a humanidade não é só uma tragédia, mas é uma vergonha[11]. A palavra vergonha vem do latim vericundia, cujo significado é retenção, ou mesmo medo de reprovação dos outros por um julgamento desfavorável, desonra, não tem pudor [12] . O mundo é chamado a ter consciência da fome para que os empenhos das autoridades, governantes sejam por esforços para amenizar a vergonha do mundo, que é a fome na expressão do Papa Francisco.
A ordem de Jesus
O tema coloca como ponto iluminador: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16)[13]. Não é simplesmente um convite de Jesus, mas é uma ordem. O fato era que estava no entardecer, os discípulos pediram a Jesus para despedir a multidão para que esta fosse aos mercados tomar comida. Mas Jesus não quis que a multidão faminta fosse para casa, mas deu a ordem para que eles dessem de comer. Eles disseram que tinham cinco pães e dois peixes de modo que ele tomou os pães, os peixes, ergueu os olhos aos céus, os abençoou, partiu os pães e os deu aos discípulos e os discípulos à multidão. Esta ficou saciada e recolheram doze cestos cheios dos pedaços avançados. Foi uma ordem que exigiu a obediência dos discípulos. Ele deu a vida por aquelas pessoas.
A responsabilidade mútua, social
Jesus multiplicou os pães por ser o Messias, o enviado do Pai, mas também ele pediu aos discípulos se empenharem com os outros, com aquela multidão, que o texto fala de responsabilidade mútua, social[14]. Assim como Jesus fez o milagre diante da problemática da fome, o fiel é chamado a ter compaixão e também ação[15]. É preciso agir para o bem de todos. A problemática da fome exige ações concretas pelos discípulos, missionários, discípulas, missionárias de Jesus Cristo, da comunidade eclesial, das autoridades, pessoas de boa vontade. Não é possível permanecer indiferente ou omisso diante de alguém que passa fome. Para isso é preciso não somente dar o peixe, uma forma popular de dizer as coisas, mas também ensiná-lo a pescar. É preciso se engajar por realizações de políticas públicas para o bem de nossos irmãos e irmãs.
Ações em favor da vida
A Campanha da Fraternidade objetiva ações para que a problemática da fome seja amenizada e todos tenham vida digna como o Senhor pede de todos os seus discípulos e as suas discípulas. Muitas ações estão sendo realizadas nas comunidades, paróquias, dioceses, organizações não governamentais, pessoas de boa vontade, entidades, governos. A caridade está sendo feita por muitas pessoas, mas é preciso realizar sempre mais. Entre outras ações destacam-se a geração de rendas para as pessoas carentes, estimular a agricultura familiar, fazer um formulário para as famílias necessitadas em vista da ajuda e acompanhamento, estimular a criação da pastoral da solidariedade, estimular os jovens para o mercado de trabalho, sensibilizar a comunidade escolar para a realidade da fome, garantir alimentação saudável às comunidades e que tenha renda, estimular a geração de empregos, aprofundar o tema da Campanha da Fraternidade nas paróquias, nas comunidades e também junto às Câmeras de Vereadores, o poder público municipal, estimular as hortas comunitárias e hortas em elevação. É importante a realização de ações concretas porque seguindo os passos de Jesus é preciso ter compaixão e ação, uma vez que ele fez essas coisas diante da multidão faminta. Por isso ele nos convida à responsabilidade mútua, social de modo que todos são responsáveis pela vida do próximo. O Senhor dirá um dia que ele estava com fome e nós damos de comer, estava com sede e nós damos de beber, de modo que tudo foi feito para ele, o Senhor Jesus Cristo (Mt 25, 34-40). Nós somos chamados a assumir a CF 2023 e a vivência da Quaresma em vista da Páscoa do Senhor Jesus Cristo e de sua Igreja.
[1] Cfr. Fame. In: Il vocabolario treccani, Il Conciso. Milano, Trento, 1998, pg. 570.
[2] Cfr. Frataternità. In: Idem, pg. 623.
[3] Cfr. CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil / Campanha da Fraternidade 2023. Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2022, pg. 10.
[4] Cfr. Idem, pg. 09.
[5] Cfr. Idem, pg. 24.
[6]Cfr. Struttura, In: Idem, pg. 1713.
[7] Cfr. CNBB. Texto-base, pgs. 30-31.
[8] Cfr. Idem, pg. 32.
[9] Cfr. Francisco. Mensagem ao diretório do Comitê Pan-Americano de Juízes pelos Direitos Socais e a Doutrina Franciscana, 2 de outubro de 2021. In: Texto-base, idem, pg. 06.
[10] Cfr. Democrazia. In: Il vocabolario, Idem, pg. 435.
[11] Cfr. Francisco. Mensagem para os 75 anos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 16 de outubro de 2020. In: CNBB, Texto-base, pg.14.
[12] Cfr. Vergógna. In: Il vocabolario, Idem, pg. 1885.
[13] Cfr. CNBB, Texto-base, pgs. 18-23.
[14] Cfr. Idem, pg. 67.
[15] Cfr. Idem, pg. 68.