Páscoa: Nosso Existencial e Paradigma da História – Cartas do Padre Jesus Priante

O termo grego Pascha, derivado do hebraico Pesah, embora de origem etimológica discutível, adquiriu culturalmente o sentido de “passagem”. A Páscoa é a passagem de Deus que nos faz passar de uma situação de escravidão, pecado e de morte a uma vida nova. Esse dinamismo pascal está impresso no ser de tudo quanto existe e é o paradigma do devir da História, cósmica e humana.

O nada primordial fez sua páscoa pela ação criadora de Deus ao ser das coisas, a matéria inerte esperou dez bilhões de anos para se tornar viva, as sementes passam pela letargia do inverno para florir na primavera; as noites esperam pelo novo dia, o povo de Israel esperou 400 anos no Egito pela sua libertação e a humanidade e toda a criação aguardam ansiosamente “passar”, fazer sua Páscoa, para uma realidade ou Reino novo e definitivo, pleno de ser e vida em Deus.

Até Cristo, a Páscoa existencial de nós e do universo, era mero postulado, pois o muro intransponível do pecado e da morte impediam consumar esse desejo e necessidade inatos em nós e em toda a Criação de ter a plenitude do ser e da vida. O rio do pecado e da morte que nos separa de Deus, disse Santa Catarina de Siena (séc. XIV) tem só uma ponte ou Páscoa para passar: Cristo. Não é difícil chegar a essa conclusão teórica. De fato, experimentamos nossa existência a e existência do mundo como um permanente devir ou passagem, mas sem meta. Apelar a um eterno retorno deixaria tudo no mesmo lugar, sem saída nem sentido. Deixar correr as águas do ser e da vida do existente nos levaria ao absurdo do nada ou ao eterno “samsara” do efêmero e insignificante.

Tem de haver uma ponte que nos permita passar ao infinito e eterno, livres das fronteiras do espaço e do tempo, com todas suas carências, que nos confinam neste mundo. Deus é a união dos extremos (do nada e do ser,da morte e da vida) em Cristo, afirmava Nicolás de Cusa (séc.XIV). Sem essa
comunhão ôntica a Criação é trágica, sujeita ao mal ou pecado, separada do seu Criador.

O dualismo “diabólico” Deus e o Mundo, no qual nós estamos incluídos, foi superado em Cristo, no qual nós e o universo somos unidos a Deus.

CRISTO, NOSSA PÁSCOA (1Cor.5,7)

Nossa relação com Deus , segundo Kierkegaard (séc. XIX) pode ser vivida em três dimensões: estética, ética e fiducial (fé confiante). Esteticamente (de maneira sensível e sentimental) nossa relação com Deus é externa, emocional e devocional, não existencial, isto é, não incorporada ao ser de nossa vida. Esta dimensão religiosa torna-se folclórica e de costumes ou meramente cultural e, por vezes, alienante e supersticiosa. Neste
nível religioso, só quem tem um critério filosófico, a se perguntar pelas últimas causas, pode experimentar Deus como um “sentimento de profunda dependência”, como Schleiermacher, pai da filosofia da religião, constatou. Não é o mesmo “depender” de Deus do que ser e viver Nele.

Podemos nos relacionar com Deus, num segundo estágio, eticamente, que consiste em estar “em paz com Deus” na medida em que cumprimos seus mandamentos. Esta dimensão nos impede de fazer da religião uma magia alienante e mero sentimento. Entretanto, nos faz sentir a Salvação como impossível, pois jamais poderemos equacionar nosso dever moral ou ético com o devido. Também esta dimensão religiosa é alienante, da qual despertou São Paulo, fanático fariseu da Lei, até se encontrar com Cristo Ressuscitado. O Deus da Antiga Aliança, na Lei de Moisés, foi desvirtuado pelo povo de Israel, ao transformar a obediência aos mandamentos de Deus em sua observância, isto é, a dimensão Ética da religião tornou-se condição existencial para manter sua relação com Deus, não mais ”
seu Deus” senão um Deus separado do qual espera-se prêmio ou castigo, segundo nossas obras.

Assim como na dimensão estética ou sentimental, Deus é um ser superior e inacessível, na dimensão Ética, fica separado de nós por causa de nossos pecados. Deus deu ao seu povo uma lei, não propriamente para ser cumprida, o que era impossível, mas para se identificar como sendo povo de Deus, “obediente”, do latim “ob-audire”, aberto à Sua promessa de Salvação e comunhão com Ele.
A Antiga Aliança (união com Deus) se faz nova e eterna em Cristo, no qual realiza-se a mesma promessa feita por Deus a Abraão e seu povo e, nele, em favor de todos os povos, através do mistério da Sua Encarnação, pela qual Deus se faz homem e criatura em Jesus de Nazaré e, o homem, se une existencialmente, no ser e na vida ao próprio Deus, de cuja divinização toda a criaçao participa.

A lei, diz São Paulo, exerce apenas a função pedagógica, nos conduz à Cristo, e nesta função tudo existe e subsiste em Deus. Entramos aqui na dimensão “religiosa” da Fé, pela qual, diz Kierkegaard, nos entregamos confiantes e nos sentimos vivendo em Deus. Uma experiência, segundo K . Rahner, que só pode ser mística ou de comunhão com Deus. São Paulo nos revela essa mística em Cristo dizendo: “Não sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim” E acrescenta: “Tudo o que vivo no humano se faz vida minha no Filho de Deus” (Gl,2,20). Nos deparamos mais uma vez com a dificuldade de passar do visível ao invisível, e de reconhecer “que o mundo visível não tem sua origem e fim no que se apalpa, senão em Deus” (Hb. 11,2).”

A Fé é a maneira de ter o que se espera e de ver ou conhecer o que não vemos (Hb.11,1). Ela nos abre ao Mistério da Encarnação de sDeus em Cristo e da Sua morte e Ressurreição, que nos faz “passar” ou, melhor, ser em Deus. Cristo, mais do que mediador, é “meio” no qual somos divinizados. Dificilmente “vivemos pela Fé”, essencialmente mística; nossa relação religiosa para com Deus fica na sua dimensão estética ou ética. Não temos ainda existencializado o mistério da Encarnação e da Páscoa. O Natal é vivido esteticamente, raiando ao folclore, e a Páscoa pouco mais.

Cristo nos parece excessivamente humano para ser Deus e excessivamente divino para ser humano. Da mesma maneira, a Ressurreição é excessivamente fato para ser histórico e excessivamente histórica para ser fato, por isso, acabamos vivendo existencialmente numa dimensão religiosa estética ou ética, duvidando da nossa salvaçao.

Cremos em Deus, cada um à sua maneira, mas não em Cristo, Deus feito homem, solidário com nossa condição humana, pecado e morte, que nos une à Sua condição divina. A Páscoa é um exercício permanente de “passagem” das realidades visíveis às invisíveis, do pecado e da morte enquanto estamos neste mundo, à santidade e vida gloriosa e imortal. Isso requer a “sobrenaturalisação” do natural, que chamamos de espiritualidade ou vida do Espírito pela qual nos sentimos unidos a Deus.

“PARECEU BEM AO ESPÍRITO SANTO E A NÓS NÃO VOS IMPOR O JUGO DA LEI” (At. 15,1-29)

A Passagem do regime da lei ou dimensão Ética da religião, professda pelo povo judeu, do qual procediam os primeiros cristãos, a começar pelos seus patriarcas, os apóstolos, ao regime da graça em Cristo, não foi fácil. Durante uma década, os que reconheceram Jesus como o Messias anunciado pelos profetas, permaneceram, consanguinea e culturalmente, unidos ao povo judeu. O grande sinal ou rito pelo qual passavam a ser parte dele, era a circuncisão. Em Antioquia (Turquia) onde São Paulo e Barnabé anunciavam a Salvação de Cristo, também aos não judeus, os gentios, surge um problema: teriam estes de ser primeiro judeus pela circuncisão, para serem cristãos? A questão foi levada por Paulo e Barnabé a Jerusalém onde permaneciam os Apóstolos, cristãos, mas com
espírito judaico. Celebrou-se o que chamamos de primeiro Concílio m, práxis da história do cristianismo para discernir com o Espírito Santo os caminhos a tomar nas diferentes circunstâncias de cada momento da história da salvação de maneira “sinodal”, isto é, tentando caminhar juntos na estrada da fé. Depois do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI estabeleceu essa pedagogia conciliar ou sinodal permanente, a cada dois ou três anos, reúne-se uma representação eclesial do episcopado do mundo. Agora, com o Papa Francisco, também com a participação dos leigos. “Igreja sempre reformanda”, em constante verificação e renovação da sua Fé. O pensar, crer e esperar é, ao mesmo tempo que recordação, criação e crescimento da verdade e da vida até atingir sua plenitude na Ressurreição. Esse dinamismo “pascal” da Fé aplica-se a cada pessoa e aos povos e gerações. Se a nossa Fé é a mesma do que quando fizemos a primeira comunhão, é porque de fato carecemos dela, ficando apenas na dimensão estética ou Ética da nossa religiosidade natural, não podendo dizer com São Paulo, a medida que passa o tempo: “A Salvação está hoje mais perto do que quando começamos” (Rm.13,11). O mesmo problema que tiveram os primeiros cristãos judeus, atrelados ao seu passado religioso, temos também nós após 20 séculos de cristianimo. Condicionamos nosso pertencimento salvífico a Cristo às tradições, ritos e preceitos religiosos. Até o Concilio Vaticano II, éramos regidos pelo princípio eclesial: “Não há salvação fora da Igreja”. Os limbos e os infernos ficaram cheios, nos purgatórios muitos outros esperando melhor sorte e os Céus eram morada de privilegiados. O Concílio de Jerusalém, nos primórdios do cristianismo, representou uma verdadeira revolução “religiosa” para todos os tempos. A Salvação não mais está condicionada aos credos, filosofias, preceitos e ritos, pois realiza-se para todos os povos na pessoa de Cristo, nossa Páscoa. Ele é, como Ele mesmo disse, “a porta” pela qual, nós e o universo, passamos desta condição de pecado e de morte para o Reino feliz e glorioso de Deus. A Salvação é interior ao ser humano e à propria criação. Quando Deus criou o mundo, programou sua Encarnação em Jesus de Nazaré, e sua morte e Ressurreição. A religiosidade com a qual reveste-se este Mistério através de ritos, credos e preceitos, apenas é roupagem da Fé, dom de Deus que todos receberemos antes de deixar este mundo. O próprio Espírito Santo “nos tirará o pecado de não crer na Salvação de Cristo” (Jo.16). De fato, “Não foi dado aos homens outro nome (pessoa) pelo qual possamos ser Salvos a não ser o de Jesus Cristo” (At.4,12). Foi essa a grande conclusão de Pedro, iluminado pelo Espírito Santo, anunciando ao povo e chefes de Jerusalém a Cristo Ressuscitado.

“Porque se confessares com tua boca e teu coração que Jesus é Senhor (Deus) serás salvo” (Rm.10). Se cremos que Jesus de Nazaré, ou melhor de Belém, morto e Ressuscitado em Jerusalém, é o próprio Deus, que veio a este mundo, não a fazer turismo, nem a julgá-lo e condená-lo mas para salvá-lo do pecado e da morte, certamente não podemos duvidar que todos seremos salvos. Não serão nossos méritos e nem sequer a própria fé que nos salva, senão Cristo.

Quando afirmamos que somos salvos pela fé dizemos que só pela fé confiante em Cristo sabemos que, de fato, somos salvos. A diferença entre ter fé e não tê-la, diz Santo Agostinho, é a mesma que existe entre um cego e um vidente. Ambos vivem, mas um enxerga e outro não.
Há uma fé incipiente em toda religião, pela qual atribuimos o ser e a vida a um Criador e, de alguma maneira, a possibilidade da nossa salvação. No Concílio de Jerusalém valoriza-se e purifica-se essa fé incipiente, proibindo “comer das carnes dos animais sacrificados aos ídolos”, revelando que o verdadeiro Deus só pode ser UM. No AT, o maior e, praticamente, o único pecado, do qual derivam todos os pecados é a idolatria, esperar a vida de algo ou alguém que não é o verdadeiro Deus, com o qual Cristo identificou-se: “Credes em Deus, crede em mim” (Jo.14,1). “Eu e o Pai somos um” (Jo.10,30) “Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo.10). O profeta Zacarias , no século VI a.C, vislumbrou essa divindde única e salvadora de Cristo para todos os povos: “Os habitantes de todas as
nações virão para asir o manto de um judeu, dizendo: queremos ir contigo porque Deus está contigo” (Zc.8,23). Quem tem esta visão cristocêntrica torna mais clara e fácil a prática da sua fé, superando a confusa e complicada dimensão religiosa, estética e ética, que nos deixa na dúvida e no temor em nossa relação com Deus.

Esteticamente, só a Deus devemos adorar. Eticamente, temos de fazer uma “opção fundamental” em tudo quanto fazemos por Deus, relativizando nossas coisas, ideias e atos. Este Absoluto vive-se pela fé. Mesmo no pecado, caídos, caminhamos ,”levantando nossos olhos para os montes (Deus) de onde nos virá o auxílio” ((Sl.121. São Paulo será mais preciso:”tendo os olhos fixos em Cristo”.

“NÃO VI NENHUM TEMPLO NA CIDADE DE JERUSALÉM, POIS SEU TEMPLO É O SENHOR” (Ap. 21,10- 23)

Como dissemos, dias atrás, o livro do Apocalipse que lemos durante este tempo da Páscoa, é o Evangelho de Cristo Ressuscitado. Revela-nos através de símbolos nosso futuro glorioso não antes de passarmos pelo pecado, pela dor e pela morte deste mundo. Por especial dom profético, São João contempla na cidade santa de Jerusalém, cidade de Deus com todos os povos, sem templos, pois o templo (morada de Deus) é a pessoa de Cristo, destruído na sua morte e reconstruído para sempre com Sua Ressureição. Não feito com tijolos humanos, nem cósmicos senão por obra de Deus.

O Templo Único

Interessante é o fato do povo judeu, fanático por seu Templo em Jerusalém, ao longo da sua história, destruido no ano 70 por ordem do Imperador romano Tito, conservar apenas algumas pedras das suas ruínas, sem projeto algum para reconstrui-lo. Cumprem, sem sua própria vontade, a profecia de São João: A história terminará reconhecendo que Cristo é o único templo onde encontrar a Deus.

Todas as religiões têm seus templos ou lugares sagrados para invocar seu Deus, assim como determinadas horas para orar. Tempo e lugar condicionam nosso pensar e também nossas crenças humanas. Por isso precisamos de templos para orar. No Reino dos Céus, não mais espacial e temporal, Deus será em nós e nós em Deus. Nossa relação não será mediada por ritos, sacerdotes e
orações, pois viveremos em comunhão de ser e vida com Deus. Algo impossível de imaginar ou representar com nossas categorias mentais, regidas pelo princípio de individuação da matéria. Tudo o que existe neste mundo é revestido de uma porção de matéria concreta, localizada em um determinado espaço e no tempo.O infinito e o eterno foge à nossa compreensão.

Há ainda uma outra profecia revelada a São João nesta visão evangélica. Ele nota haver três portas abertas, dia e noite em cada um dos quatro lados da cidade da Jerusalém celeste, Dos quatro pontos cardiais, todos os povos virão e entrarão pelas tres portas da mansão de Deus. Do Deus das religiões (Criador), do Deus da Fé (Cristo) e do Deus do amor divinizante (Espírito Santo). Esta profecia, que anuncia a Salvação universal, ainda não chegou ao conhecimento de todos os povos, nem mesmo do povo cristão. Ainda não temos “existencializado” a Encarnação de Deus em Cristo nem a Páscoa da Sua morte e Ressurreição, vivendo receios, dúvidas e temores em relação à nossa Salvação. Ecoa em nós a temerosa crença medieval: “Que tenho de morrer é infalível. Deixar de ver a Deus e condenar-me , triste coisa será mas não impossível”. A razão deste receio radica em não ver a Salvação na pessoa de Cristo, o próprio Deus encarnado em nós e no mundo, e esperar a Salvação como prêmio merecido ou graça divina acrescentada ao nosso ser de criaturas e nao na condição de sermos seus filhos.

A relação religiosa, natural ao ser humano, com Deus até os ateus não podem evitar. “Quem sabe se Deus ainda nos pode salvar”, disse Heidegger, em seu camuflado ateísmo. A questão da vida ou da morte que, na consciência do dever, é revelada
em Dt. 30,15, não é uma questão moral, mas a maneira de nos identificarmos como povo de Deus. “Eu sou Deus e vocês, meu povo ” (Lv.26,12). A dimensão estética e Ética da Fé são meios para nós tornarmos conscientes de que pertencemos a Deus, destinados vitalmente a Ele. Quando isto não acontece, nossa aliança e comunhão com Deus torna-se um contrato legal e bilateral impossível de cumprir por nossa parte. O homem é histórico e, na sua história, experimenta sua existência referida a Deus. “Ordo hominis ad Deum”, o homem está ordenado a Deus, disse Santo Tomás de Aquino. Uma aspiração impossível de realizar sem Cristo.

O ser humano é precedido por Deus em Cristo.. Ele é Quem vem ao nosso encontro para nos levar com Ele (Jo.14). Somos a possibilidade infinita e eterna de Deus. Seremos nele e Ele em nós.

“SE ALGUÉM ME AMA, GUARDARÁ MINHA PALAVRA E MEU PAI O AMARÁ E VIREMOS A ELE E NELE FAREMOS NOSSA MORADA” (Jo. 14,23-29)

O amor culmina na unidade dos amantes. A filosofia grega distinguia no amor três dimensões: “Eros”, amor de posse de coisas ou pessoas. “philia”, amor recíproco dos amigos. “Ágape”, amor de entrega total à pessoa amada.

Martin Buber o definia como ser o outro. Proeza impossível de realizar pelo ser humano por não ter o ser e a vida em propriedade, mas recebida de Deus. Por isso São João diz: Não fomos nós, mas Deus quem nos amou primeiro”. Na medida que somos de, e em Deus, é que podemos amar.

Nenhuma filantropia tem futuro. Só podemos amar o que não morre, diz Gabriel Marcel e, também, se, amando, nós mesmos não morremos.

Aristóteles

Todo egoísmo nasce pelo medo da morte (Hb. 2,16). Se não temos por certa nossa Ressurreição em Cristo, nem Deus nos pode amar, nem nós a Ele. Nisso Aristóteles (eles séc. IV a.C.) foi feliz afirmando: “Podemos amar Deus, mas não Ele a nós”, porque somos mortais.

O amor filosófico de Aristóteles, como o de Platão, só pode ser erótico, desejo de posse. Um beijo com o qual nossos lábios nunca tocarão o rosto de Deus. Nosso amor a Deus é reflexo: porque nos foi revelado que Deus nos ama ao “extremo”, ao ponto de entregar sua própria vida em Cristo (Jo.13,1). Este amor reflete em nós, como o sol, na lua. Para amar a Deus, amemos os outros, todas Suas criaturas. Por isso, com a Fé e a esperança, o amor “ágape” ou a caridade, as chamamos de virtudes teologais (atributos divinos), que recebemos de Deus. Estas virtudes, exercitadas, dia a dia, vão crescendo em nós, na medida em que experimentamos nossa vida em Deus.

Maior a fé e esperança divinas em nós, maior certeza da nossa própria Salvação. Maior amor, nascido também de Deus, maior consciência de sermos filhos Dele e irmãos entre nós. Até Cristo este amor paterno e filial da nossa relação com Deus era desconhecido: Deus estava no céu. O “Deus conosco” (Emanuel) prometido através dos profetas permanecia no horizonte da esperança. Em Cristo, ainda que vivamos no pecado, na dor e na morte, cresce em nós a vida imortal e gloriosa da Ressurreição. Não o percebemos, como não percebemos o germinar e desabrochar das sementes, mas atua com o poder e amor invencíveis de Deus .Fato este meta-histórico, por isso impossível de constatar sensivelmente ou entender pela razão. Mistério da Fé que nos faz sentir a vida em Deus. Um céu, cidade de Deus, povoado de pequenos deuses, nós e os anjos, mesmo “afiliados”, nos tornaria apenas hóspedes e não seus verdadeiros filhos, consanguíneos, com a mesma vida Dele. A Salvação nos diviniza.
“Se alguém me ama”, reconhece Meu amor, o aprecia e O “guarda” como seu maior dom, experimentará a presença real de Deus na sua vida. Não apenas será ” imagem de Deus”, por ser criatura Dele com especial distinção no meio de toda a criação, mas Seu próprio Templo, morada. “Vosso corpo é Santuário do Espírito Santo” (1Cr. 6,19). Habitação de Deus” (Ef. 2,22). Esta maneira de entender nossa relação com Deus foi fonte da maravilhosa espiritualidade da “em-habitação”, vivida por muitos cristãos, que consiste em sentir Deus morando em nós. Ele diz que Santo Agostinho é mais íntimo do que nós mesmos. Embora vivida de maneira esteticamente religiosa, por isso a expressamos dizendo: Deus é “hóspede de nossas almas” , “temos”,”O levamos” “está dentro de nós”… mas não O percebemos misticamente em comunhão de ser e vida ao ponto de poder dizer com São Paulo: “Não sou eu quem vive, mas Cristo (Deus) Quem vive em mim” (Gl. 2,20). Depois de Cristo, matar uma pessoa ou tirarmos nossa própria vida, não é uma ofensa a Deus, por termos sido criados à sua imagem, mas verdadeiro deicídio.

Ver Deus em seu Irmão

Em Cristo, cada pessoa é o próprio Deus. Leônidas, pai do grande pensador da fé, Orígenes (séc. III) costumava se ajoelhar quando este era criança para lhe adorar. Vendo Deus em seu filho. Seremos plenamente humanos quando veremos a Deus no rosto de cada pessoa. De outra maneira, “o homem será lobo para o homem”, como disse Hobbes (séc. XVII). O amor de Deus leva à unidade. “Que todos sejam um como nós somos um” (Jo.17), a comunhão de ser e vida. Por isso, afirma K- Rahner, o cristianismo, Fé e vida em Cristo, só pode ser místico. Esta maneira de interpretar nossa Fé na clave de amor, nos leva a ver nossa existência e a existência do mundo não com as categorias mentais de pecado e de redenção, senão de criação.

Se Deus nos criou é porque nos ama e nos dá vida com tudo o que ela precisa para ser vivida neste mundo e no seu Reino. Na medida que amamos, cuidamos e promovemos a vida terrena, não só somos gratos a Deus como também esperamos nele a vida eterna e feliz. Os sofrimentos e doenças, vida e morte, assim como o pecado, integram o plano criador de Deus que terá sua plenitude na Ressurreição. Os males da vida presente têm sentido dentro do diálogo amoroso de Deus, pelo qual Ele nos salva e nós nos deixamos salvar por Ele. O amor é pascal: entrega da vida, para recebê-la em plenitude. “Sofrer por amor”, chamamos amor apaixonado, desejo “erotico” de viver em comunhão com Deus. Por isso, sua verdadeira expressão evangélica não é na forma de mandamento: “Amai” senão ôntica: “Permanecei no meu amor” (Jo.15,9). Isto é, sentirmo-nos amados por Deus, unidos a Ele: Se nos criou é porque nos quer e ama e, se nos ama é porque nos dará tudo quanto Ele tem: sua própria vida. “Prova de amor maior não há do que dar a vida pelos que amamos” (Jo. 15,13). Dom excessivo à nossa razão que exige uma grande dose de fé para ser vivido.

CRISTO NOSSA PÁSCOA.

Padre Jesus Priante, Espanha.

Edição e intertítulos por Malcolm Forest. São Paulo.

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