ÉTICA DA FÉ – Cartas do Padre Jesus Priante

Diferente dos animais e plantas, que regem-se pelos instintos naturais para sobreviverem, o ser humano é dotado da consciência do dever para realizar-se como pessoa à procura de uma vida plena e feliz. O “ethos” do ser humano é ético, termo grego que alude ao desejo e esforço virtuoso por ter uma casa, símbolo do bem-estar. Hesíodo (séc. VIII a.C.) fundamentava a Ética humana na prática das virtudes. Ele a representava como uma escalada de uma íngreme montanha. Atingido seu cume, dizia, desfrutaremos da plácida e benfazeja brisa da nossa liberdade e paz. Aristóteles, quatro séculos depois, na sua Ética a Nicômaco (seu filho) adotou a filosofia de Hesíodo, afirmando que a finalidade do dever ético consiste em nos tornar felizes. A bondade visa o próprio bem. Kant (séc. XVIII) fez da Ética ou “razão prática” a via do pensar metafísico das realidades transcendentes, além de nossos sentidos. Ele partia do fato do ser humano possuir um “imperativo categórico” dentro de si que o impulsionava a proceder eticamente de tal maneira a tornar sua conduta lei universal de todos. Não é Deus quem nos dita o que temos a fazer moralmente, mas nossa própria consciência, de maneira autônoma. Entretanto, ele teve de reconhecer, como São Paulo, o fracasso dessa Ética da lei do dever, pois nunca o ser humano a pode cumprir plenamente. Daí que ele mesmo confessasse: “Tive de deixar a razão para dar lugar à Fé”. De fato, o dever ético tem por objeto a felicidade, e esta é impossível, se não formos imortais e se Deus não existir com dons e a Graça.

Felicidade, diz Santo Agostinho, é a posse de todo o bem de maneira eterna.

A imortalidade e a existência de Deus são postulados necessários para justificar o inato sentido do dever ético. Ninguém pode ser feliz por um tempo, curto ou longo, e sem a posse de todo bem, que só pode ser o próprio Deus. Se houvesse algum bem fora de Deus, Ele não seria Deus, nem seria feliz. Mas, em relação a nós, esse único Deus não pode ser juiz da nossa conduta a nos premiar ou punir segundo nossas obras, pois jamais poderemos merecer o bem supremo que nos faz felizes ou a Vida Eterna, tornando nosso esforço virtuoso e ético inútil e infrutífero. Neste sentido, com Kant, podemos afirmar que o inato sentido ético do ser humano, que nos configura como pessoas prova ou, ao menos, postula a existência de Deus e também da nossa imortalidade e Salvação, pois a vida só pode ser feliz, e se ainda não é na presente condição, necessariamente o será quando formos transformados pela Ressurreição em Cristo. Aqui a “razão prática” da Ética tem que dar lugar à Fé.

Kierkegaard (séc. XIX), pai da filosofia existencialista a refletir sobre o ser e o sentido da própria vida, distinguia três maneiras de se proceder eticamente: pela estética, pelo racional e pela fé. Somos eticamente estéticos quando conformamos nossa conduta aos costumes e formalidades que os diferentes momentos e culturas nos impõem. É o que o povo exprime ao dizer de alguém que é uma pessoa “legal”, “formal ou de bem”. Esta Ética é mutante. Os modos, costumes e maneiras de nos comportar socialmente mudam no decorrer dos tempos. Na década de 1960 usar biquíni era imoral e, assim, outras modas e atitudes, hoje socializadas, descaracterizadas eticamente.

A Ética do dever de consciência, em nível superior ao estético, rege-se pelo princípio universal imutável, presente em todo ser humano: “faz o bem e evita o mal”, conceitos poliédricos e múltiplos, mas sua norma ética é unânime e permanente em todos os tempos, ainda que o bem ou mal tenham diferentes maneiras de serem entendidos.

A Ética da Fé é a Ética da Vida Eterna, Ela só é possível na medida em que o próprio Deus age em nós e nos torna santos como Ele é santo. Kierkegaard encontrou o protótipo desta Ética, única possível para atingir seu objetivo que é a felicidade, em Abraão, chamado o pai da Fé, pois até ele, ninguém acreditava que a vida fosse dom gratuito de Deus e não a recompensa por nossos méritos ou fruto do acaso e mera composição molecular. Abraão professou durante um tempo a Ética Estética dos bons costumes e também do dever ditado pela própria consciência. Frustrado e fracassado existencialmente , subiu certa noite com seu filho Isaac ao monte Moriá (que significa loucura) para sacrificar, mais do que seu filho, sua própria razão e dar lugar à Fé num só e único Deus, fonte da verdadeira vida. Foi então que experimentou a imortalidade ao receber de volta o filho que, pela razão ou dever das suas crenças religiosas, lhe ordenavam o sacrificar a Deus, esperando a merecida recompensa das suas obras.

São Paulo dirá que Abraão foi salvo não pelas obras da lei mas pela sua Fé (Rm.4). A Ética da Fé, que nos brinda gratuitamente a Vida Eterna, não nos dispensa dos “bons modelos”, cívicos e religiosos da Ética Estética, assim como do dever ético da consciência; mas nenhuma destas condutas nos tornam felizes. Esteticamente podemos ser pessoas educadas e até admiradas pelos outros, mas dentro de nós carregaremos o sentimento de “culpa” por não poder fazer devidamente o bem e evitar o mal que queremos.

A culpa, não é uma neurose, como pensou Freud, mas nosso existencial ou maneira de experimentar nossa vida. Nascemos em pecado e morreremos pecadores. Daí a necessidade da Fé que, ao nos conceder, como dom e graça de Deus, a Vida Eterna e feliz, nos capacita para sermos, interior e exteriormente, melhores pessoas.

Quem tem por certo possuir em Deus a vida, tudo deste mundo pode dar ou perder, confessando com Santa Teresa de Ávila: “Quem a Deus tem, nada falta. Só Deus basta”. A ética da Fé não é, pois, passiva, mas verdadeira virtude ou força para escalar a Montanha das Bem-Aventuranças, que tem seu cume no amor aos inimigos, meta impossível de atingir pelo caminho do dever ético ou moral.

“QUE POVO TEM LEIS TÃO SÁBIAS E JUSTAS E UM DEUS TÃO PRÓXIMO, COMO JAVÉ, NOSSO DEUS?” (Dt.4,1- 8)

Moisés faz uma apologia aos Dez Mandamentos, Constituição do Povo de Israel, inspirada por Deus, que identifica-se com a Lei Natural, fundamento de toda lei humana.

Outros povos também a exprimem de diferentes maneiras. Assim o povo Inca baseia sua conduta etica em três mandamentos: Não mentir, não matar e não ser ocioso. No Budismo, o desapego e a compaixão lhes configura eticamente.

H. Kung fez um estudo das diferentes culturas, buscando um consenso ético universal, e chegou à conclusão de não existir unanimidade nos princípios ou leis que regem a conduta dos povos. Apenas, o mal feito a uma criança indefesa é considerado pecado universal, que repugna a toda consciência. Dostoievski, fundamenta o ateísmo na sua
novela “Os Irmãos Karamazov”, nos sofrimento das crianças.

Jesus identificou-se com elas: “Quem recebe uma criança, recebe a mim”.

Poderíamos concluir que o último reduto do humanismo está na nossa conduta ética com as crianças, mesmo as recém nascidas ou as por nascer. Se as crianças são abandonadas e mortas, toda moral ou Ética carece de fundamento e nós, deixamos de ser humanos.

Relativismo

Moisés pode sentir-se orgulhoso da Lei dos Dez Mandamentos. De fato, é o código mais humano e completo de todos os povos e culturas. Ele recebe força e sabedoria de Deus, sem o qual, toda lei e Ética humanas perderiam autoridade. “Se Deus não existe, tudo será permitido”, diz Dostoievski. É o que é chamado de “relativismo moral”, que vinga na presente cultura secular ou ateia.

A grandeza do povo de Israel no contexto dos povos consiste não tanto na Lei, “sábia e justa”, mas na “proximidade” do Deus que lhe foi revelado em Abraão, “Javé”. Ele não fica preso às leis ou mandamentos, é amigável e familiar a todos aqueles que o invocam. Israel é um povo chamado a professar a Ética da Fé e não a mera Ética dos bons costumes ou da consciência do dever. Infelizmente esse povo enveredou-se pelo legalismo, multiplicando seus mandamentos até o absurdo de serem elencados 613 normas éticas nos tempos de Jesus, que se para decorá-las era difícil, para cumpri-las era impossível.

São Paulo, fanático seguidor da Lei de Moisés, percebeu a incapacidade de se salvar pelo caminho da Ética da Lei e, logo que conheceu a graça de Cristo, que a Ética da Fé lhe brindava, afirmou para os povos e gerações de todos os tempos: “Somos salvos pela Fé e não pelas obras da lei” (Rm.5).

Santo Agostinho chamava “esplêndidos vícios” as virtudes apenas humanas que pretendiam alcançar a vida pelos próprios méritos.

“Porque sem mim, nada podeis fazer” (Jo.15). A Ética do Dever que curtem todas as religiões e culturas tornam a Deus distante e temeroso, e a Salvação insegura e incerta. E se Moisés experimentou Deus próximo, oculto na nuvem, desde onde falava ao seu povo, quanto mais próximo o tornou Jesus Cristo, ao ponto de podermos nos sentar à sua mesa como filhos Seus.

A Eucaristia nos torna comensais de Deus. Só o cristianismo tem mesa na sua relação com Deus. O resto dos povos tem montanhas sagradas ou altares onde sacrificar suas vidas para torná-lo (o povo) propício e não receber o merecido castigo pelo dever não cumprido.

“TODO DOM E OBRA PERFEITA VEM DE DEUS” (Tg. 1,17- 27)

A Ética da Fé leva-nos a reconhecer que, tanto os talentos ou capacidades que temos, como as boas obras que possamos fazer, são dom e graça de Deus.

Uma pessoa de Fé não atribui a si mesmo mérito algum. É Deus que age e realiza o bem em nós. Não somos nós quem nos salvamos, mas Deus é quem nos salva.

Inclusive, diz São Francisco de Salles, Deus se serve dos nossos pecados e misérias, como fertilizante, para nos santificar. É assim que São Paulo também interpreta o pecado, inerente ao ser humano, dizendo: “Onde está o pecado, aí está a Graça”. É claro que não significa que tenhamos de pecar a priori (propositalmente) para sermos agraciados por Deus, mas a posteriori (após termos pecado), o pecado torna-se meio e oportunidade para Deus nos revelar Sua Misericórdia e sua Salvação.

A Ética da Fé que nos brinda a Salvação de Deus, nos liberta da tortura da “culpa” que nos condena, próprio da Ética do Dever e da Religiosidade Natural que nos faz temer o castigo de Deus. Também nos cura da angústia e da depressão, frutos de nossos fracassos, assim como da falsa ilusão alienante de felicidade de nossos êxitos e méritos, que a Ética Estética nos promete.

No texto desta carta, Tiago identifica a Ética da Fé com a audição e prática da Palavra (promessa de Deus) qualificando-a de “lei perfeita e lei de liberdade” que nos faz experimentar a felicidade em tudo quanto fazemos. Pela Ética da Fé, tudo neste mundo, coisas, atos e fatos, ficam relativizados mas relacionados com Deus. O mandamento adquire o sentido de “ordem” que, para Santo Agostinho, traz Paz. Pela Fé ordenamos sabiamente nossa vida de maneira sensata e significativa à espera da Vida Eterna.

Erich Fromm

Para elucidar nossa reflexão sobre a Ética da Fé, mencionamos e comentamos brevemente a Ética Humanitária ou da produtividade do filósofo e psicólogo americano da segunda metade do seculo XX, Erich Fromm. Ele distinguia a Ética Autoritária, imposta por Deus ou outra autoridade, que considera o ser humano incapaz de discernir e decidir o bem e o mal por si mesmo, da Ética Humanitária ou da produtividade, que faz cada pessoa responsável pela sua própria realização e bem-estar. A Parábola dos Talentos lhe inspirou esta Ética humanista. Cada um de nós recebemos determinados talentos ou potencialidades que devemos desenvolver para merecermos melhor vida neste mundo e na Eternidade. A primeira-ministra Margaret Thatcher partilhava desta filosofia ética de Erich Fromm. Comentando a parábola do Bom Samaritano, dizia: ele não foi bom por ter socorrido aquele homem ferido, mas por ter “meios”, fruto do seu responsável desenvolvimento dos talentos que lhe foram dados, para poder ajudar aos necessitados.

O Peixe antes

Confúcio, de outra maneira, também sintonizava-se com a Ética da produtividade dos talentos dizendo: “melhor dar a cana para pescar do que o peixe”. O problema é que, sem o peixe comido antes, o potencial inerte do pescador não conseguirá pescar seu peixe. Mais uma vez temos de concluir: Todo humanismo secular ou ateu é um trágico humanismo. Nenhum esforço ou progresso humano poderá construir o paraíso que sonhamos. A um doutor da Lei que confessou serem os mandamentos do amor a Deus e ao próximo o resumo de toda lei, Jesus lhe disse: “Não estás longe do Reino de Deus”. E se não estava longe, significa que não estava ainda dentro, revelando-lhe que pelo caminho da Ética da lei ou dos méritos, não entraremos no Céu. O que é um consolo para todos, pois todos morreremos pecadores e culpados, mas salvos por Deus.

A Isenção de Culpa

O perdão dos pecados teria de ser entendido como isenção de culpa e não propriamente do pecado, que permanecerá conosco até o dia da Ressurreição, ainda que nos confessemos duas vezes por minuto.

A verdadeira religião ou Ética, continua Tiago na sua carta, consiste em socorrer os necessitados e manter-se
livre da corrupção (pecado e morte) do mundo. Meta impossivel de atingir sem a Ética da Fé, que nos faz melhores na vida presente e santos eternamente.

“Uma pequena dose de Missa, diz Victor Hugo, nos faz melhores”. O papa Paulo VI, na encíclica “Desenvolvimento dos Povos”, entende a Ética humana como aquela que nos faz mais humanos, mais de Cristo e mais de Deus. Sem esta correlação, toda Ética carece de sentido e nos conduz a profunda frustração existencial.

“É DE DENTRO DO CORAÇÃO QUE SAEM AS MÁS INTENÇÕES E QUE TORNAM A PESSOA IMPURA” (Mc. 7,1-23)

Neste relato evangélico encontramos as tres Éticas que comentamos acima.

Jesus desmascara a Ética Estética dos fariseus, falso verniz da própria justificação, que oculta não só a verdadeira Fé como o dever ético da consciência. Para eximir-se de ajudar os próprios familiares, bastava consagrar seus bens a Deus. Com o qual, não pertencendo mais a eles, não tinham direito a doa-los, quebrantando os mandamentos da Lei Natural.

Tem-se dito que uma religião sem Ética é pura magia, mas também temos de afirmar que uma Ética sem Fé é uma tortura. De fato, como nos diz São Paulo, a Lei ou a Ética do dever delata nossos pecados e nos condena. Jesus não é contra a Ética Estética dos “bons costumes” e formalidades cívicas e religiosas que performam nossas culturas.

Parece fazer parte do ser a mulher do Cesar… Jesus não nos diria que é pecado irmos nus pela rua, mas sim, se não vestirmos àquele que carece de abrigo, mesmo quebrando a sagrada Lei do Sábado.

Sermos humanos estética e moralmente pelo cumprimento dos bons costumes e do dever ético da consciência nos aproxima do Reino de Deus, mas, entrarmos Nele só é possivel pela Ética da Fé, isto, acreditando ser o mesmo Deus quem nos salva e faz santos.

O texto evangélico que lemos neste domingo teria de dar continuidade com o relato da cura milagrosa da filha de uma mulher cananéia a nos revelar a Ética da Fé, pela qual recebeu aquela graça. Jesus provoca e suscita sua Fé dizendo-lhe: “Não ser justo dar o pão dos filhos aos cachorros”. Cananéia vem de “cão”, descendentes da raça maldita de Cam, filho de Noé. Mas a mulher diz a Jesus: “Também os cachorrinhos comem as migalhas que as crianças deixam cair da mesa”, palavras que os protestantes usam antes de receberem o Pão Eucarístico, como nós, Católicos, recitamos as palavras de um centurião romano: “Senhor eu não sou digno…”

Deus nos Salva Porque Somos Seus Filhos

A Ética da Fé está além de toda religião e dever ético, assim como de todo merecimento. Deus nos salva não porque tenha pena e Misericórdia de nós, brindando-nos sua graça à maneira de dádiva ou esmola ao pobre e necessitado, mas porque somos seus filhos, com direito à Vida Eterna, divina e feliz.

O Céu não será recompensa meritória, mas “herança” a partilhar e desfrutar com Cristo. Quando vivemos neste mundo com esta Fé, tudo podemos dar ou perder, pois temos garantida a Vida e uma vida feliz e gloriosa. A Fé torna-se, assim, também Ética operante de maneira gratuita, experimentando maior abundância no próprio dom, “pois é dando que se recebe”.

A água que satisfaz nossa sede de vida e felicidade torna-se fonte jorrante , como disse Jesus à mulher samaritana. (Jo.4.).

Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição e intertítulos por Malcolm Forest. São Paulo.)

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