O ARCO ÍRIS E O FIM DOS TEMPOS

Domingo passado fazíamos um breve comentário das Alianças através das quais nossa relação com Deus nos foi revelada como amizade e comunhão de luta e vida com Ele. Na pessoa de Noé, salvo duma catástrofe climática, Deus prometeu à humanidade que a vida, presente neste planeta, onde Ele quis realizar seu projeto de Salvação em favor de toda a Criação, será preservada até o fim dos tempos. O Arco-íris é mais do que um fenômeno natural da refração da luz através das gotas de água suspensas no ar após a chuva. Ele é sinal e sacramento da ação salvífica de Deus a nos revelar: “A criatura não será jamais destruída”, ainda que tenha de passar por todo tipo de tempestades, humanas e cósmicas, que constantemente nos ameaçam. Precisamos recuperar o sentido salvador do Arco-íris, para viver em paz, num mundo tão inseguro e incerto.

Essa meia circunferência ou anel brilhante de Deus que abraça céu e terra é sinal de Deus estar conosco. Quando tudo é reduzido ao puramente natural, nosso conhecimento de Deus e do nosso espírito é insignificante. As culturas mostram e celebram os ritmos da natureza, mas a História das Salvação, de Deus agindo nos tempos, revela o advento do seu Reino. Essa é a outra realidade à qual toda a Criação é destinada.

Neste segundo domingo da Quaresma, ratifica-se a Aliança e o compromisso de Deus em favor da vida que atravessa o vale escuro da morte através da Fé, da qual Deus dotou a humanidade, na pessoa de Abraão, chamado “pai da fé” porque foi o primeiro ser humano a receber esse dom, ainda que de maneira incipiente, até a vinda de Cristo. Por isso, em Jo.8, Jesus disse que Abraão almejou por ver esse dia. O Arco-Iris, escondendo seu brilho no chão da morte, postulava os olhos da fé a nos brindar a vida imortal, que nos viria de Cristo Ressuscitado. Em Abraão apenas se nos revelava a prolongação da vida no decorrer das gerações, mas não a subsistência individual de cada ente, particularmente do ser humano que, na condição de pessoa, só pode ser em si mesmo, para ser em Deus e na universalidade do universo. Abraão foi escolhido por Deus para, deixando de lado sua razão, dar lugar à fé.

O SACRIFÍCIO DA RAZÃO DE ABRAÃO: Gn. 22,1-18

Este relato é uma das páginas mais sublimes da Bíblia. Por isso, faz parte das nove leituras proclamadas na Vigília da Páscoa, na qual condensa-se a História da Salvação do mundo. Alguns biblistas têm interpretado este texto como sendo uma crítica e um repúdio aos sacrifícios humanos, praticados por muitos povos aos seus deuses para evitar seus castigos ou tornar mais propícia a vida. Além de não ser certo que Deus quer a morte do pecador e sim que ele viva, essa interpretação empobrece a grande mensagem deste relato, que visa introduzir a visão supra-racional da fé, da qual Abraão foi pioneiro. Ele tinha feito um caminho de 25 anos à procura do verdadeiro Deus que lhe desse uma resposta ao seu problema existencial e de todo ser humano: a morte, que nem os deuses das religiões, nem a razão lhe davam. Seu problema ainda era maior, porque, carente de uma descendência para prolongar sua vida, carecia de uma terra própria onde ser sepultado à espera de um possível retorno a este mundo, como boa parte dos povos acreditava. Daí o costume de enterrar e guardar os mortos, muitas vezes de forma fetal, esperando renascer. Abraão percebeu que seus dias progressivamente iam encurtando o horizonte da sua existência. Precisava romper a barreira do tempo e do espaço para se sentir imortal, que só a Fé lhe poderia conceder. Num primeiro estágio, Deus lhe deu, como sinal da sua imortalidade, um filho, Isaque, contra toda expectativa racional, pois ele e sua esposa Sara eram idosos, sem
possibilidades humanas de procriar. Também adquiriu uma terra própria onde “dormir” após esta vida à espera de um futuro despertar. Cemitério, precisamente, em grago significa dormitório. Deus, porém, lhe convidava a ir mais longe pelo caminho da Fé. Era preciso “sacrificar” seu único e próprio filho, no qual depositava sua esperança de vida, para recebê-la, imortal e gloriosa, do mesmo Deus. Certo dia, Abraão saiu de casa com seu filho, ja adolescente, caminhando tres dias (alusão aos três dias de Cristo no cemitério, antes de Ressuscitar) rumo ao monte Moriat, o mesmo monte calvário no qual Jesus seria mais tarde crucificado, onde, para subir a
ele, é preciso deixar a razão para dar lugar à Fé.

O menino carregava um feixe de lenha, como Jesus carregou a cruz, para ser imolado a Deus.

O idoso Abraão, seu pai, escondia o cutelo no seu manto, como o manto do tempo nos esconde a morte. Silêncio e mistério lhes acompanhavam no absurdo da noite. Na loucura daquele monte, Abraão se dispôs a sacrificar seu filho Isaque, entregando seu futuro nas mãos de Deus. A Fé exige descartar toda outra possível esperança de vida fora de Deus. Até não darmos esse passo, carecemos de Fé.
São Paulo diz: “Abraão acreditou e esperou contra toda esperança” (Rm.4,18). “A razão deu lugar à Fé e a Fé deu lugar à graça” (Rm.4,16). Este será o estágio pleno da Fé que nos veio em Cristo. A Fé nos dá gratuitamente a vida eterna.

A maior parte dos povos e pessoas, inclusive cristãs, vivem neste mundo sem atingir esse
estágio da Fé. Por isso apegam-se aos seus Isaques ou seguranças terrenas ou esperam sua Salvação, como os descendentes de Abraão antes de Cristo, como recompensa dos próprios méritos, tornando mais do que incerta a própria salvação. Abraão sacrificou sua paternidade, cumprindo antecipadamente as palavras de Jesus: “Só Deus é vosso Pai” (Mt.23,9), mas lhe faltou encontrar a vida na própria morte ou, como disse São João da Cruz, não querer ser algo em nada, para ser todo em Deus. Todos daremos esse sublime passo da Fé na nossa morte para Ressuscitar. O amor floresce quando deixamos livre a pessoa amada. No fundo tudo quanto queremos é a Deus, nosso supremo bem. Por isso, a Fé, afirma Lutero, deriva em confiança, que nos
relaciona não com as coisas que esperamos, mas com o próprio Deus. Esta ideia exprimimos ao cantar: “Eu confio em nosso Senhor, com Fé, esperança e amor”. “Ele é quem salva nossa vida da morte” (Sl.115).

SE DEUS ESTÁ CONOSCO, QUEM ESTARÁ CONTRA NÓS?” : Rm.8,31-34.

O papa Paulo VI, dizia que o capítulo 8 da carta de São Paulo aos Romanos lhe dispensava o resto da Bíblia. O projeto salvífico de Deus em favor da humanidade e de toda a Criação será indefectivelmente realizado. “Nada nos pode separar do amor de Deus”. Ele mesmo é quem nos santifica e salva. Depois do Concilio Vaticano II (1964), a tese da Salvação universal é patrimônio da teologia, assim como é o maior argumento para provar que Jesus de Nazaré é, de fato, o próprio Deus. Não seria Deus se uma só das suas criaturas ficasse excluída do seu Reino. São Paulo dirime toda dúvida: “Quem condenará? Acaso Cristo Jesus, aquele que morreu, ou melhor, aquele que ressuscitou, que está à direita de Deus?” No credo, incorporamos esta figura de Cristo “sentado à direita de Deus” para significar que seu reinado sobre o pecado, o mal e a morte, já está garantido, apenas temos de esperar sua manifestação gloriosa após a morte pessoal e no fim dos tempos para toda a Criação. Nesse ínterim, entre “o já e ainda não”, diz São Paulo: “Cristo intercede (reza) por nós”.

Deus pede a Deus Pai nossa Salvação. Em Cristo , a Aliança de Deus conosco e, por extensão, com a Criação, se fez plena comunhão de ser e de vida.

JESUS LEVOU CONSIGO PEDRO, JOÃO E TIAGO PARA UM ALTO MONTE E ALI FOI TRANSFIGURADO DIANTE DELES” : Mc. 9,1-9

Este acontecimento da historia da Salvação é celebrado anualmente no dia 6 de agosto, assim como também no segundo domingo da quaresma, como um antecipação da Ressurreição. Jesus preparava pedagogicamente o viver a noite da Fé que, passando pela morte, lhe conduz à luz da Ressurreição. Humanamente, entretanto, era impossível cruzar esse vale escuro, antes de Cristo ressuscitar, pois a Fé fundamenta-se unicamente na Ressurreição de Cristo. Nenhum milagre, nem mesmo este acontecimento da Transfiguração que Pedro, João e Tiago presenciaram ou se a nós fosse possível presenciar, contemplando uma réstia do Céu, nos brindaria a verdadeira Fé, pela qual temos certeza de uma vida eterna e feliz com Deus. Há um velho provérbio dos sábios do povo de Israel que diz: “Não confie nos milagres”. De fato, todo milagre é apenas um sinal do Reino de Deus, mas não é o mesmo Reino.

Há muitos prodígios e fenômenos que nos revelam a existência de Deus e de uma outra realidade além de nós mesmos e do mundo que habitamos. A Transfiguração, como fenômeno sensível e físico a nos revelar o Reino dos Céus, até superou a própria Ressurreição, pela qual Jesus mostrou que tinha vencido a morte, aparecendo aos seus discípulos à maneira humana.

Na Transfiguração, Ele se deixou ver, na medida que os olhos humanos podiam contemplar, de maneira divina e gloriosa. O transcendente tornou-se transparente por alguns momentos. A luz de Deus irradiou através da matéria opaca do corpo de Jesus, à maneira como a luz do sol irradia no fenômeno do Arco Iris transformando as moléculas de água. Aquela maravilha deixou seus discípulos expectantes em estado de êxtase, ao ponto de não mais querer sair do lugar: “É bom estarmos aqui”. disseram. Mas Jesus lhes recomenda não darem a conhecer o que viram até Ele Ressuscitar dos mortos. Ninguém pode correr o véu da Eternidade até sermos transformados pela Ressurreição. Nesse dia, cessarão os milagres ou sinais do Reino de Deus para participarmos dele. Nesse dia, nossas lágrimas serão estrelas e o silêncio das rochas e das montanhas melodias de eternidade. Que pena que a custosa e árdua aventura de pousar estes dias em Marte, não levasse a feliz notícia de que também seu solitário deserto é chamado Av ser vivificado e divinizado por Cristo. A vida que ali pretendem encontrar, como a vida que todos buscamos, virá para toda Criação no Fim dos Tempos em Cristo ressuscitado. Tudo será em Deus e Deus em tudo.

Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.) Copyright 2021 Padre Jesus Priante. Direitos Reservados. Compartilhe sempre mencionando o nome do autor.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here