A terra: irmã, filha e mãe

Carlos María Galli, da Universidade Católica da Argentina e membro da Comissão Teológica Internacional, comenta na edição desta terça-feira do jornal L’Osservatore Romano, o terceiro capítulo do Documento de Aparecida de 2007, redigido pela Comissão presidida pelo então cardeal Jorge Mário Bergoglio, em cujo texto se encontram os ensinamentos do Papa Francisco contidos na encíclica Laudato sì e muitas questões tratadas no último Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia.

Carlos María Galli

Em 2007, realizou-se no Santuário de Aparecida, Brasil, a V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe sobre o tema “Discípulos e Missionários de Jesus Cristo, para que nele nossos povos tenham vida”. Tive a graça de ser um dos peritos teólogos daquela assembleia e de colaborar com a Comissão para a redação do Documento conclusivo presidida pelo cardeal Jorge Mario Bergoglio, SJ. O seu terceiro capítulo ilustra a alegria de ser discípulos missionários que anunciam o Evangelho e, entre as boas novas nascidas da Boa Nova, anuncia “o destino universal dos bens e da ecologia”. Um parágrafo significativo pertence a esta seção.

“Com os povos originários da América, louvemos ao Senhor que criou o universo como um espaço para a vida e a convivência de todos os seus filhos e filhas, deixando-nos como sinal de sua bondade e da sua beleza. A criação é também uma manifestação do amor providente de Deus; foi-nos dada para que a cuidemos e a transformemos numa fonte digna de vida para todos. Embora hoje uma cultura de maior respeito pela natureza tenha se espalhado, percebemos claramente de quantas maneiras o homem ainda ameaça e destrói o seu habitat. ‘Sora nostra matre terra’ é a nossa casa comum e o lugar da aliança de Deus com os seres humanos e com toda a criação. Não levar em consideração as mútuas relações e o equilíbrio que o próprio Deus estabeleceu entre as coisas criadas, constitui uma ofensa ao Criador, um atentado contra a biodiversidade e, em última análise, contra a vida. O discípulo missionário a quem Deus deu a criação deve contemplá-la, conservá-la e utilizá-la, respeitando sempre a ordem que lhe foi dada pelo Criador” (Documento de Aparecida, n. 125).

Neste texto, e em outros parágrafos do documento (nn. 83-87, 470-475), há uma antecipação dos ensinamentos do Papa Francisco contidos em sua encíclica sócio-ambiental Laudato si e dos temas tratados na Assembleia especial do Sínodo dos Bispos para a região amazônica sobre o tema “Amazônia: Novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. No cuidado da casa comum vemos que Bergoglio cooperou com Aparecida e que Aparecida coopera com Francisco.

No precioso parágrafo acima mencionado, gostaria de chamar a atenção apenas para a frase “Sora nostra madre terra”. Estava já presente no projeto do segundo esboço desse documento. Uma dos mais de 2.400 modos ou propostas de modificação que chegaram à Comissão pediam que a frase fosse eliminada, porque, dizia, continha uma ideologia indígena ecologista, hostil à Igreja Católica, que idolatrava a mãe terra na figura da Pachamama. A comissão rejeitou o modus apresentado por um prelado latino-americano e decidiu colocar em nota a fonte da frase entre aspas. Portanto, a nota de rodapé 58 do documento diz: “Francisco de Assis, Cântico do Irmão Sol, versículo 20″.

Lembro-me deste episódio pouco conhecido, que aconteceu há doze anos, porque na fase de preparação do sínodo sobre a Amazônia, foram ditas e lidas afirmações semelhantes às do modus citado pelos prelados que questionavam os parágrafos do Instrumentum laboris sobre a mãe terra (nn. 17 e 84). Então me perguntei se esses detratores, devido a uma inexplicável falta de cultura cristã, ignoraram o Cântico ou o iludiam em sua dialética ofensiva. Durante o sínodo, no qual participei como perito, pensei muito sobre o conteúdo dessa expressão franciscana. O documento final não menciona o Cântico e se refere a São Francisco somente no número 17 como “exemplo de conversão integral vivida com alegria e alegria cristã”, sem mencionar que foi nomeado patrono da assembléia. Em vez disso, ele faz duas referências à mãe terra na busca de uma ecologia integral (nn. 25 e 101).

Desejo recordar aqui a bonita estrofe, porque ilustra a sabedoria cristã no que diz respeito à terra.

“Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa mãe Terra,

que nos apoia e governa,

e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas.”

A oitava estrofe do Cântico é mencionada pelo Papa Francisco no início da Laudato si porque liga familiarmente o ser humano à terra. A nossa casa comum é como uma irmã, com quem partilhamos a nossa existência, e como uma bela mãe que nos acolhe nos seus braços. Na poesia do Pobrezinho ouvimos o eco do canto dos três jovens mártires que louvavam a Deus pelas suas maravilhas, narrado em um fragmento do livro de Daniel, conservado em traduções gregas (cf. Dn 3, 53-90). Este hino de bênção é fonte de inspiração para o cântico de São Francisco.  Em dois versículos desse texto bíblico lemos: “Abençoa a terra, o Senhor, louvai-o e exaltai-o ao longo dos séculos” (v. 74). A terra participa no coro de todas as criaturas que, através da voz humana, louvam o Criador. Ela contém todos os seus frutos: “Abençoai, todas as criaturas que germinam na terra, o Senhor” (v. 76).

Neste horizonte sapiencial podemos identificar três relações do ser humano com a terra, duas das quais são expressas em ambos os cantos de louvor. A estes acrescento um terceiro, o filial.

A terra é como uma irmã, porque nós, criaturas, viemos do único Deus, Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. A criação é um livro aberto – o clássico liber  creaturae – que comunica ou revela, à sua maneira, a Verdade, a Bondade e a Beleza de Deus. Contemplando a obra de arte conhecemos um pouco do Artista, o seu Autor (cf. Sabedoria 13,5). O Pobrezinho de Assis dava a todas as criaturas o doce nome de irmãs e as convidava a louvar a Deus.

A Terra é como uma mãe, porque alimenta nós seres que nascemos e crescemos neste mundo e, em particular, aqueles que dela germinam. A terra recebe a luz, o calor e o carinho do irmão sol, da irmã lua e do irmão fogo. É fecundada pela irmã água e, por sua vez, fecunda o irmão vento, ar em movimento. A sabedoria da Palavra de Deus e de todos os povos abençoa o Senhor, dizendo-lhes: “com o fruto das tuas obras enche a terra” (Sal 103, 13).

A terra nos precede e nos é confiada. É também como uma filha para o ser humano, que é o único a ter sido criado na terra à imagem e semelhança de Deus, a quem o Senhor ama de modo pessoal e a quem entrega a obra das suas mãos (cf. Sl 8, 4-7). O irmão mais velho tem a missão de cultivar e conservar a natureza (cf. Gn 2, 15), de a cultivar sem a abandonar e de a salvaguardar sem a destruir, como infelizmente acontece hoje nas bacias do Amazonas, do Congo e de muitas outras zonas do habitat natural e humano. Por isso, o Papa recorda a nossa responsabilidade diante de Deus pela terra: “Isto implica uma relação responsável de reciprocidade entre os seres humanos e a natureza” (Laudato si, n. 67).

A Igreja invoca São Francisco de Assis, o irmão universal, para encontrar uma ecologia integral na qual se aprende e se ensina a amar e cuidar da terra como irmã, mãe e filha. Os povos amazônicos nos ensinam a cultivar essa teia de relações culturais em um momento crítico da história porque, como lemos na introdução do documento sinodal, a destruição do bioma amazônico terá um impacto catastrófico em todo o planeta. Esta é outra lição que nós, não amazônicos, recebemos do Sínodo, ao celebrarmos a iniciativa do Papa Francisco de colocar esta periferia das periferias no centro da Igreja, porque é sempre no coração de Deus.

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