O filósofo espanhol Julián Marías derruba a manipulação de palavras que tenta justificar o absurdo da “interrupção da gravidez”
O filósofo espanhol Julián Marías (Valladolid, 17 de junho de 1914 – Madri, 15 de dezembro de 2005), pai do escritor Javier Marías, autor de mais de 50 livros e de uma monumental História da Filosofia editada pela mítica “Revista de Occidente”, faz uma análise antropológica do aborto que pode prescindir da visão religiosa nesse complexo debate.
O pequeno ensaio de Marías aborda as implicações da “aceitação social do aborto” e a qualifica como “o que de mais grave aconteceu neste século que vai se aproximando do fim”. Ele se referia ao século XX, mas, tragicamente, o fenômeno vem piorando no século XXI.
Virando as costas para a realidade
As posições irredutíveis em torno ao aborto são todas, de alguma forma, posições “de fé”, seja de fé religiosa (“todo ser é querido por Deus”), seja de fé na ciência (“os dados mensuráveis são os únicos que contam”).
O filósofo espanhol procura superar esta discussão mediante uma visão antropológica, “fundamentada na mera realidade do homem, em como ele vê, vive e compreende a si mesmo”. É preciso, para isso, abrir os olhos em vez de virar as costas para a realidade.
Mediante o uso da linguagem cotidiana, Marías parte de uma distinção elementar, livre de qualquer peso ideológico: não são iguais uma coisa e uma pessoa. Em todos os lugares, da ilha mais remota ao centro de Manhattan, o homem distingue entre “o quê” e “quem”; entre “algo” e “alguém”; entre “nada” e “ninguém”.
Não existe possibilidade de confusão: são conceitos-chaves arraigados em nossa linguagem, e, portanto, em nosso pensamento sobre o essencial.
Esta distinção mostra que o filho não é uma “coisa” dos seus pais: não é um “o quê”, e sim um “quem”, um “alguém” que pode ser chamado de “você” e que, ao passar do tempo, chamará a si mesmo de “eu”. Esse alguém é vivo e dinâmico: poderá ser um idoso assim como, antes, terá sido um adulto, um jovem, um adolescente, uma criança, um feto, um embrião – e terá sido sempre o mesmo, sem nunca ter sido uma “coisa”. Nenhuma coisa chega a virar pessoa. Assim como em qualquer outra fase da vida, esse alguém, quando ainda feto, não “pertence” à mãe; nem ao pai; nem a ninguém; ele está sendo gestado no ventre da mãe, onde já é alguém desde que foi concebido como um ser humano absolutamente novo e único. A mulher nunca dirá “meu corpo está grávido”, mas “eu estou grávida”. A mulher diz “vou ter um filho” e não “tenho um tumor”.
Eliminados como coisas
A simples experiência cotidiana nos permite constatar que, assim como nós mesmos, o bebê ainda não nascido é uma realidade humana vivente. Ah, mas ele ainda não está pronto! E algum de nós está? O pequeno alguém que já vive no ventre da mãe é alguém que será – como nós também sempre seremos, mesmo quando já somos e fomos; e, assim como nós, ele também já é.
É incrivelmente falacioso apelar para o critério da autonomia no comer, no andar, no viver para dizer que alguém é. Se fosse assim, seriam “coisas” não só o bebê no ventre materno, mas também o bebê já nascido, o bebê de vários meses, o adulto em estado de coma, o adulto que apenas dorme profundamente, o idoso que depende do próximo para comer, andar, viver… E todos poderiam ser “eliminados” como coisas que não são autônomas. Realmente podemos levar a sério esse tipo de argumentação apelativa e irresponsável?
Voltando à linguagem, Marías “recomenda” que o enforcamento seja chamado de “interrupção da respiração”. Se, afinal, o aborto pode ser chamado de “interrupção da gravidez”, por que não? Talvez porque a verdade precisa imperar. E a verdade derruba esses recursos a eufemismos que tentam manipulá-la.
A verdade informa que, quando se aborta ou se enforca alguém, não só se “interrompe” a gravidez ou a respiração: em ambos os casos, assassina-se alguém (por mais que, na maior parte das vezes, o assassinato é mascarado de morte “necessária”: para melhorar a raça, para evitar a superpopulação, para evitar o sofrimento…).
Negando a pessoa humana
Marías conclui que o núcleo do problema é a negação do caráter pessoal do homem. No aborto, “desaparece” a paternidade, considera-se a mãe como alguém que sofre o crescimento de um “intruso”, transforma-se falaciosamente “alguém” em “algo” – para assim poder eliminá-lo. Trata-se, objetivamente, de uma monstruosidade.
Ao se eliminar o pai, a mãe, o filho, ao se desumanizar a relação do casal, o que resta de humano em tudo isso?
Para Julián Marías, a aceitação social do aborto foi, sem exceção, o que de mais grave aconteceu no século XX.
E nós sabemos que também no XXI.
Fonte: Aleteia