Neste dia 3 de outubro, sábado, o Cardeal Angelo Amato, Prefeito da Congregação para a Causa dos Santos, beatifica, em Santander, na Espanha, dezoito religiosos cistercienses da estrita observância (trapistas) que foram martirizados na violenta perseguição religiosa de 1936.
Os monges beatificados são Pío Heredia (Álava), Amadeo García (León), Valeriano Rodríguez (León), Álvaro González (León), Antonio Delgado (Burgos), Eustaquio García (Palencia), Ángel de la Vega (León), Ezequiel Álvaro de la Fuente (Palencia), Eulogio Álvarez (León), Bienvenido Mata (Burgos), Marcelino Martín (Palencia), Leandro Gómez (Burgos), Eugenio García (Burgos), Vicente Pastor (Valencia), José Camí (Lérida), Micaela Baldoví (Valencia) e Natividad Medes (Valencia).
Segundo agência de notícias católicas, os acontecimentos anteriores ao martírio começaram no dia 8 de setembro de 1936 quando 38 monges do mosteiro de Viaceli, província de Santander, foram expulsos de seu mosteiro, colocados na prisão, mas logo liberados. Alguns deles então se refugiaram em residências de particulares, outros se dirigiram a Bilbao onde a perseguição religiosa não era tão violenta, mas os outros se reagruparam em Santander em três comunidades mantendo vida monástica às escondidas dos perseguidores.
No mesmo dia da expulsão, no entanto, ficaram detidos os sacerdotes Eugenio García Pampliega e Vicente Pastor Garrido, provavelmente porque os perseguidores desejavam apropriar-se do dinheiro do mosteiro. Pensavam que era rico. Ao dar-se conta do engano em que caíram, obrigam os sacerdotes a abandonarem a sua fé, aqueles que se negaram a fazê-lo foram assassinados na noite do dia 21 de setembro.
Em 1º de dezembro, foi preso um grupo composto por irmãos conversos (leigos que viviam no mosteiro sem serem propriamente religiosos). Os rebeldes acreditavam que esses homens conheciam de onde provinham seus meios de subsistência dos monges e por essa razão capturaram também o Padre Prior Pío Heredia Zubía, que acreditavam ser encarregado das finanças.
Por este motivo foi preso junto com outros companheiros monges, e obrigado a manifestar o nome de quem os ajudava. Como se negou a fazê-lo foi executado na noite do dia 2 de dezembro de 1936, e nos demais dias seus companheiros de vida monacal.
Junto à causa de beatificação dos monges da Abadia de Viaceli, também se uniu o processo das monjas cistercienses, martirizadas no mesmo contexto da Guerra Civil Espanhola. São elas as Madres María Micaela Baldoví Trull e María Natividad Medes Ferris, ambas de Algemesí, Valência, além das monjas de seu mosteiro de Fons Salutis.
Depois de um processo de Beatificação que teve início em 1964, no último dia 23 de janeiro de 2015, o Papa Francisco autorizou à Congregação para as Causas dos Santos, promulgar o decreto do martírio dos (das) Servos(as) de Deus. O desenrolar do assunto não foi tão simples, pois era preciso comprovar que, sobretudo, os monges não estavam envolvidos em política (aí já não seriam mártires propriamente), mas foram mortos realmente como mártires, ou seja, por ódio à fé e ódio à Igreja. Isso agora está, satisfatoriamente, demonstrado.
A notícia acima colhida, como dito, em fontes católicas do Brasil e do Exterior nos desperta algumas reflexões que servem de catequese ao nosso povo sempre ávido de melhor conhecer a Deus e sua fé.
A primeira questão levantada é como se define um autêntico martírio no sentido que a Igreja Católica o entende? A palavra mártir vem do grego mártys, mártyros e significa testemunha. Daí ter sido reservada, já na linguagem dos primeiros cristãos, para designar especificamente os homens e mulheres que deram testemunho (martyrion) de sua fé no Senhor Jesus por meio do derramamento do próprio sangue.
No Apocalipse 6,9 vemos a descrição do conceito de mártir nestes termos: “Vi sob o altar as vidas dos que tinham sido imolados por causa da Palavra de Deus e do testemunho que dela tinham prestado”. Ver também Ap 1,13; 17,16 e At 22,20.
Certo é que os judeus já valorizavam muito os que preferiam morrer a trair a sua fé. Daí os elogios que se lê a Eleazar (2Mc 5,18-31) e aos irmãos macabeus (2Mc 7,1-42) martirizados por preferirem obedecer antes a Deus que aos homens.
No entanto, é na fé cristã que o martírio ganhou contornos novos ao ser apresentado como desdobramento dos sacramentos do Batismo e da Eucaristia. Ambos levam, de um modo muito especial, à participação ritual na morte e ressurreição do Senhor Jesus (cf. Rm 6,1-11; 1Cor 11,26); participação que precisa se desenvolver ou desabrochar na vida do fiel como um holocausto agradável a Deus e culminar com a entrega da própria vida, se preciso for (cf. Fl 2,17; 3,3; 4,18; Rm 1,9; 15,16; At 13,2; 2Tm 1,3; 4,6; Hb 9,14; 12,28; 13,15;1Pd 2,5).
Quem morre mártir realiza, portanto, plenamente em si o que viveu, de modo ritual, nos sacramentos do Batismo e da Eucaristia. É o martírio o ato supremo de amor ao Pai despertado e nutrido pela participação sacramental no sacrifício de Cristo, Nosso Senhor, na cruz do Calvário.
Isso posto, vale a pena transcrever um trecho elucidativo da recensão que fez Antônio Carlos Santini da revista La Civiltá Catolica (15/07/00) no qual se lê que para existir o verdadeiro martírio na Igreja “além da passagem pela morte, o motivo deve ser o ódio à fé cristã ou às verdades e virtudes do cristianismo. Mais: a morte deve ser sofrida como testemunho de fé com um ato exterior de aceitação livre e consciente, recusando toda oportunidade oferecida para evitá-la, abandonando a fé. E a mesma morte deveria ser aceita em espírito de fé e de amor a Jesus Cristo”.
“Para Santo Agostinho, ‘martyres non facit poena, sed causa’. O que conta é a motivação da morte, não o sofrimento em si mesmo. Logo, não se considera mártir o cristão que foi morto por motivos políticos ou ideológicos, por razões raciais ou por outros motivos que não são estreitamente conexos com a fé, por mais nobres que possam ser. A essência do martírio está no motivo pelo qual ocorreu a morte do fiel.”
“Como se tudo isso fosse ainda pouco, espera-se do mártir a disposição de perdoar os agressores e a capacidade de amar ao extremo. ‘Sine charitate non valet’ (S. Tomás. Suma Theol. II-II, q. 124, a2. ad 2). O martírio não tem valor sem a caridade. Sem o amor extremado de Estevão que perdoa seus lapidadores, a exemplo de Cristo no Calvário” (Atualização, n. 290, março/abril de 2000, p. 143, apud Refletindo online n. 73, julho de 2015).
O segundo ponto é o que é a Beatificação? Beatificar é celebrar, em Roma ou fora dela, um ato solene no qual o Papa, pessoalmente ou através de um legado seu, declara que o (a) Servo(a) de Deus pode ser venerado(a) como Bem-Aventurado(a) ou Beato(a) por meio de uma festa em lugares delimitados como, por exemplo, as cidades em que viveu, atuou ou morreu. Já canonizar é a ação pela qual o Papa declara que o (a) Bem-Aventurado(a) é Santo(a) ao inscrevê-lo no cânon (catálogo) dos santos, por isso se fala em canonização.
Tanto a beatificação quanto a canonização são funções reservadas ao Santo Padre – especialmente, de modo formal, a partir do século XII, com o Papa Alexandre III (1159-1181) –, embora as cerimônias correspondentes possam ser oficiadas por um delegado papal. Requer-se, para se declarar que alguém é beato(a) ou santo(a), a comprovação das virtudes heróicas do(a) candidato(a) nesta vida, de modo que ele (ela) mereça, por graça divina, gozar, atualmente, da visão de Deus face a face no céu. De lá, pode interceder por nós e nos servir de modelo enquanto caminhamos nesta Terra rumo à Pátria definitiva.
A terceira e última questão é quem são os cistercienses trapistas? Entende-se por cisterciense a Ordem composta por monges fundados, no ano de 1098, em Cister (daí o nome cisterciense), por São Roberto de Molesmes, Santo Alberico e Santo Estêvão Harding. Essa Ordem, como o correr dos tempos, passou a aceitar também, em mosteiros próprios, as monjas, mulheres que desejavam se consagrar a Deus, mas não, contudo, em uma segunda Ordem, porém como integrantes da única Ordem de Cister com suas várias Congregações, dentre as quais temos no Brasil a Congregação Brasileira com três mosteiros masculinos (Itaporanga e Itatinga (SP) e Jequitibá (BA)) e três femininos (Itararé (SP), Monte Castelo (PR) e Campo Grande (MS)), a Congregação de São Bernardo, em São José do Rio Pardo (SP) e a Congregação de Casamari, em Claraval (MG), ambos masculinos. Além desses, temos dois mosteiros da estrita observância (esses, sim, chamados de Trapistas por terem surgido a partir da região da Trapa, na França, no século XVII, e aprovados pelo Papa Leão XIII no século XIX): Campo do Tenente (PR), masculino, e Rio Negrinho (SC), feminino. Todos eles, praticamente, têm, cada um a seu modo, leigos(as) que, sem deixar a sua vida digna na sociedade, se ligam a um mosteiro masculino ou feminino pelo vínculo da oblação: tornam-se, após a devida preparação, oblatos seculares fazendo, assim, parte da Ordem Cisterciense se bem que de um modo diferente dos monges e monjas.
Os religiosos da Ordem Cisterciense em geral desejavam – e desejam – viver “uma síntese feliz e atraente dos três elementos que predominavam nos movimentos de reforma monástica. Os mosteiros da Ordem ofereciam um alto grau de solidão, seja pelo afastamento da sociedade e da trama de seus relacionamentos, seja pela estrita disciplina de silêncio que neles vigorava, com longas horas dedicadas à lectio – leitura orante e meditada da Palavra de Deus – e à oração privada, ao mesmo tempo em que o consolo de uma comunidade fraterna. Por outras palavras, havia na vida cisterciense uma boa dose de eremitismo dentro de um quadro de comunhão fraterna própria ao cenobitismo e ao ideal de vida apostólica. Enfim, os cistercienses quiseram ser pauperes Christi, pobres de Cristo, ou seja, pobres com o Cristo pobre e, com isso, encontraram a terceira tendência do monaquismo reformado do século XI” (Pe. Luis Alberto Ruas Santos O. Cist. Um monge que se impôs a seu tempo. São Paulo: Musa / Rio de Janeiro: Lumen Christi, 2001, p. 47).
Que o exemplo desses monges da Espanha possa ensinar-nos a pedir a Deus a graça da perseverança, especialmente nos momentos mais difíceis ou mesmo de extremas perseguições físicas e/ou morais ou ainda o próprio martírio a que todos os seres humanos estamos sujeitos em qualquer parte do mundo. Em umas é o clássico martírio de sangue, em outras é o “martírio branco” da ridicularização pela coerência com a fé que desejamos, apesar de nossas limitações, professar firmemente em uma sociedade algumas vezes hostil ou intolerante. Aversa, sobretudo, para com quem contraria a “cultura do descarte” das crianças não nascidas, dos jovens sem emprego, dos idosos abandonados etc. sempre tão denunciada pelo nosso querido Papa Francisco.
Em todo caso, não nos desanimemos e acreditemos sempre na célebre máxima de Tertuliano (aproximadamente 225) de que “o sangue dos mártires é semente de novos cristãos”. Que esses mártires espanhóis intercedam junto a Deus por nós a fim de bem cumprirmos a missão a que todos fomos chamados em virtude do nosso Batismo: ser santos como o Pai celeste é santo (cf. Mt 5,48). Coragem!