Indulto do Peru

            As festas de final de ano, em especial o Natal, revitalizam o coração humano com sentimentos de alegria renovada, solidariedade. Faz parte da nossa natureza encerrar um ciclo com perspectivas mais otimistas diante do novo. Hora de avaliar erros e redesenhar projetos. No campo das relações humanas reciclar amizades, reconstruir laços afetivos, familiares ou mesmo profissionais. Nesse clima de renovação, com vistas a novas investidas em perspectivas pessoais, projetos ainda por se executar ou comportamento a ser corrigido, rumos novos, condutas refeitas, redimensionadas, o coração de muitos se abre às próprias fraquezas e aceita o perdão como atitude essencial ao bom termo dos sonhos ainda borbulhantes na vida de todos. Perdoar é lavar a alma, as sujeiras que a todos contaminam durante o ano.

    Os americanos criaram um rito que lhes é próprio: “perdoar” a vida de um peru, às vésperas do Dia de Ação de Graças, sob as graças presidenciais. Como se esses pobres galináceos possuíssem alguma grave falta senão aquela de servir-se como prato principal nos banquetes glamourosos e ostensivamente nababescos que suas festas de final de ano exibem ao mundo. Enquanto a miséria campeia nas periferias existenciais da desigualdade global. Enquanto na Síria os morteiros ainda sibilam sobre telhados vazios de cidades fantasmas. Enquanto na África central e meridional os povos fogem da fome em travessias tresloucadas rumo à Europa. Enquanto na Venezuela a insanidade do poder acima dos deveres a favor de um povo oprimido dispersa esse povo sem rumo. Enquanto na Coréia se busca o consenso entre norte e sul, sob a mira de canhões do leste e do oeste. Enquanto no México se armam arquibancadas fronteiriças de famintos hondurenhos ou qualquer latino suburbano, para espiar ou invejar o quintal onde o peru da casa branca vai ciscar livre e solto…

    Incongruências das nossas incoerências. Aqui falamos em indulto de natal, visando a liberdade de alguns poucos. Quando muito, eis que nossa generosidade samaritana permite aos nossos presos a famosa “saidinha”, oportunidade ímpar para se afundar no mato ou na selva urbana e voltar à carga de uma vida criminosa, sem outro remorso senão aquele de uma sobrevivência atrelada às faltas de oportunidades, de justiça social, de um perdão verdadeiramente construtivo. Ciscar no velho terreiro é chover no molhado, sem um aparato de solidariedade que ofereça novas oportunidades. Isso não é falar de indulto, perdão verdadeiro. Fiquemos então com nossas singelas saidinhas, um alívio governamental para desobstruir nossas carceragens abarrotadas.

    O Dia do Peru, de uma forma ou de outra, nos lembra a necessidade do perdão. Condenado ou não, sentenciado pelas leis humanas ou leis da própria consciência, todos temos necessidade da prática reconciliadora. Com Deus ou com os amigos, com a sociedade ou conosco mesmo, o perdão há de nos oferecer um lenitivo de graça e renovação. Tanto que se estende a todos, até às criaturas mais insignificantes – como o peru condenado ao banquete. “Pois tudo o que Deus criou é bom e nada há de reprovável quando se usa com ação de graças, Porque se torna santificado pela palavra de Deus e pela oração” (1 Tim 4,4-5). Ora, se a ironia de um gesto farisaico é capaz de nos oferecer lições, que estas criem novas raízes e se aprofundem em nossas vidas. Não é o pobre peru o grande vencedor dessa história dos nossos indultos natalinos. A este se reserva um passeio pela Disney e um final de vida em territórios bem demarcados e protegidos. Já aqueles que excluímos do grande banquete da solidariedade, fraternidade e comunhão que caracterizam uma sociedade verdadeiramente humana, como ficam? Isso sim é do peru…

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