1° DOMINGO DA QUARESMA- Cartas do Padre Jesus Priante

Mais um ano a caminho da Ressurreição, meta da história pessoal e da humanidade, na qual receberemos a vida que buscamos, almejamos e esperamos, somos chamados a tomar consciência da nossa existência, questionada pelo sofrimento, pecado e pela morte.

Desde o século VI, nossos antepassados cristãos nos legaram a pedagogia salvífica do Tempo Litúrgico, que nos faz viver de maneira crescente nossa Fé e esperança da Salvação. A cada ano que passa, afirma São Paulo em Rm.13,11, estamos mais próximos da nossa transformação gloriosa. Este otimismo que a fé nos brinda, esmorece quando somos vítimas da rotina, a repetição do mesmo, contra a natureza da História, sucessão de fatos irreversíveis.

Cícero afirmava que o passado apenas nos serve para não repetir seus erros. A História da Salvação, diferente da historia comum, que se ocupa do passado, é a memória do futuro. Importa não o que passou, mas o que está por vir. Passado e presente postulam uma nova vida. O que foi ou é tem de ser de outra maneira.

Nosso cérebro só concebe a felicidade em futuro. O grande princípio que rege a História da Salvação, da qual nos tornamos conscientes e protagonistas ao do longo ano litúrgico, de maneira sempre renovada, é a crescente necessidade e, ao mesmo tempo, a esperança da nossa ressurreição em Cristo. Sem essa gloriosa meta, a vida é o começo e o fim duma noite ou, como afirmava Drummond de Andrade, “a forma impura do silêncio”.

A Quaresma tem por finalidade um melhor conhecimento de nós mesmos. O Rito das Cinzas, que inaugura este tempo, reveste-se dum sublime sentido antropológico. Somos lembrados que “somos pó e ao pó temos de voltar”. Pena que , ao recebermos tão pobremente as cinzas nas nossas cabeças, privamos nossos olhos de vê- las, inclusive tenhamos desvirtuado seu verdadeiro sentido. Lembro que na Paróquia Santa Rosa de Lima, em São Paulo, o povo recebia as Cinzas na palma da mão, para serem contempladas durante alguns minutos enquanto cada um pedia a Deus: “Senhor, dai-me a vida”. Só desde o abismo do nosso nada, desde o pó inerte das nossas células, podemos gritar pela Salvação de nosso Deus .

Cioran, ilustre pensador romeno-francês, representava-se a si mesmo sepultado no cemitério dizendo aos que passavam ao lado da sua tumba : “Sou eu e, esse eu, é nada e esse nada sou eu”. Sem a consciência deste nosso nada existencial nos ignoramos a nós mesmos e a vida só pode ser vivida de maneira alienada ou suicida. A Quarta Feira de Cinzas teria de ser declarada Dia Mundial da Consciência Humana. Só sabendo que somos pó, nos sentiremos verdadeiramente humanos. Inclusive, na cultura latina, adotamos o nome de “homem”, do hebraico “Adão”, que significa lodo (húmus, barro) para nos identificar. A “humildade”, animal do silêncio, que tem a mesma raiz latina (húmus) é a virtude mais própria do ser humano.

O orgulho e a prepotência nos tornam lobos, como afirma Hobbes, a nos devorar mutuamente, como a História nos mostra ao longo dos tempos. Um pouco de cinza diante de nossos olhos, para nos lembrar que somos pó, dispensa todos os tratados de psicologia, sociologia e filosofia. Não só nos fará ver o ser humano como também a Deus.

Na Quaresma, “conversão” é a palavra que a define. Mas, como no rito das cinzas, essa palavra foi
destituída do seu verdadeiro sentido salvífico, revestindo-a de moralidade e não, como o termo sugere, uma nova orientação de vida para o futuro. Em grego , “metanoia (conversão) significa mudança de mentalidade ou maneira de entender a própria existência. Jesus inicia sua missão profética, no sulco deixado por João Batista, que também convidava ao povo para sua conversão, acrescentando a fé na Boa Notícia da Salvação. “Convertei-vos e crede no Evangelho”.

Consolação

Infelizmente, o moralismo de São João Batista impregna e empobrece o maravilhoso tempo da quaresma, que deveria ser não precisamente um tempo triste e nem sequer penitencial, mas de consolo, de segura e feliz esperança de Salvação, conscientes de nosso nada, pecado e morte. Na quarta-feira, o papa Francisco disse na celebração do rito das cinzas: “Na Quaresma é o piloto que conduz nossa vida que tem de mudar de direção, tendo como meta o Reino de Deus. Nossa esperança de Salvação não habita no passado,
nem fica no presente, ela nos faz ver nosso amanhã”. Essa esperança, nos diz São João, apaga nossos pecados. Para quem tem um projeto de eternidade, tudo torna-se relativo neste mundo, assim como alegrias e tristezas, dor, pecado e morte revestem-se de sentido.

DEUS É NOSSO ALIADO : Gn,9,8-15.

“Este é o sinal de aliança que estabeleço entre mim e vós, e com todos os seres viventes por todas as gerações: ponho o meu arco-íris nas nuvens… e nenhum dilúvio destruirá toda criatura”.

Aliança é a palavra chave para entender a história da nossa Salvação. Ela alude ao compromisso de amizade e união de forças na luta. Deus age conosco. Nossa história é humano-divina. Como o povo costuma dizer, Deus e nós, juntos estamos “no mesmo barco”, garantido nosso futuro vitorioso e feliz. Partilhamos derrotas e vitórias mutuamente. Jamais o ser humano poderia pensar ou imaginar assim se Deus não nos tivesse revelado esse mistério. Na Bíblia aparecem quatro momentos nos quais se nos revela a Aliança de Deus conosco:
Aliança com Noé, após o chamado Dilúvio Universal, do qual constam 68 narrativas em diversas culturas e povos, teria certo fundamento real. Mas, na narrativa bíblica reveste-se de um sentido meta-histórico, relacionado com nossa Salvação. Deus escolheu uma família de sobreviventes nesta mais do que possível catástrofe geológica, para comunicar a todos os povos que o mal do mundo não nos leva ao caos.

Apocalipse

O Apocalipse não é uma catástrofe, mas uma promessa. A história não é um caminho de ruínas, mas dinamismo de Deus transformador. A geologia tem registrado 5 grandes extinções de espécies vivas neste planeta que habitamos. A última faz 65 milhões de anos pela queda de um grande meteorito no México, cuja poeira escureceu o sol por vários anos, extinguindo boa parte da floresta e, com isso, também a grande fauna. Hoje não são poucos os que anunciam a possível 6a. extinção, que poderia acontecer pelo degelo dos glaciares, a queda de meteoritos (
temos mais de 500.000 só no sistema solar) ou pela loucura duma guerra nuclear. Contra esses prognósticos apocalípticos, a Aliança feita por Deus com Noé, nos garante que nosso planeta permanecerá azul e vivo até a vinda gloriosa de Cristo. Como sinal e garantia, Deus nos deixou o arco-íris, que não é apenas simples fenômeno natural da refração da luz através das gotas de água suspensas no ar após a chuva, mas um verdadeiro sacramento ou sinal da Salvação de Deus. Por esse sinal Deus promete que nem nós, nem sua Criação está fadada ao extermínio. Sobre as águas diluvianas do pecado, sofrimentos e mortes, neste pequeno barquinho da terra ou de nosso frágil corpo pessoal, navegaremos ilesos ao Reino de Deus.

Aliança com Abraão. Faz menos de 4.000 anos, também foi uma família particular, protagonizada por Abraão quem experimentou a Aliança de Deus. Aqui a história está mais perto dos nossos olhos. Foi escolhido para receber o dom da fé num só e único Deus, criador e salvador do mundo. Até Abraão, e mesmo até nossos tempos, são muitos os povos que invocam múltiplos deuses e, se são muitos, nenhum deles é Deus. Um rato, como vemos nestes dias na China, no seu novo “ano do rato”, pode ser Deus. Pela fé num só Deus, a salvação é certa e segura, pois a Ele nós pertencemos. “Se Deus é por nós, quem será contra nós? (Rm.8). Ele é nosso aliado, sem requerer de nós nada a não ser que acreditemos nele.

Aliança com Moisés. Embora as alianças anteriores continuem vigentes, Deus quis nos fazer partícipes através de nossos atos na tarefa da sua Salvação.

Fazer o bem e evitar o mal nos enobrece, nos faz mais humanos e também mais de Deus.

A Aliança com Moisés

Infelizmente, o povo de Israel, esqueceu a aliança de Deus com Noé e Abraão, e fixou-se na aliança com Moisés, através da Lei. Com isso, enfraqueceu e até pôs em dúvida a Salvação de Deus, interpretando a Aliança de Deus conosco como um contrato de direitos e deveres mútuos. Alguns profetas anunciaram que viria um Messias a realizar pessoalmente a salvação que, de fato, pelos nossos méritos, jamais poderíamos alcançar.

A Nova e Eterna Aliança

A Nova e Eterna Aliança em Cristo. Nele Deus se hospedou em nós. Mais do que isso, nos tornou consanguíneos, seus próprios filhos, tornando nossa Salvação um direito de herança. O que antes era promessa e amizade, agora é realidade e comunhao.

A Transformação

Em Cristo, nós e o universo fomos divinizados, afirma Teilhard de Chardin. “Depois de Cristo, todos somos cristãos e, se somos de Cristo, também de Deus” (Benedetto Croce).
“Cristo morreu uma vez por todas pelos pecados do mundo, a fim de nos conduzir a Deus”: 1Pe.3,18-22.
O texto desta carta diz que Cristo foi procurar os próprios incrédulos nos dias de Noé. No Credo foi dito, com maior propriedade do que agora, “desceu aos infernos” e não à mansão dos mortos. Antes de Cristo as gerações ficaram retidas na morte. No dia em que Ele ressuscitou, “tendo subido aos céus” levou consigo todas as gerações passadas e, nós, afirma São Paulo, os que nascemos depois de Cristo, não morreremos, seremos transformados. Este futuro feliz de Vida Eterna a celebramos e dela nos tornamos conscientes pelo rito do Batismo, que só teria de ser celebrado por aqueles que professam esta esperança. Sem o Batismo sacramental, seremos também salvos, pois Cristo veio salvar a todos, mas, como nos tempos de Noé, permaneceríamos sepultados nas águas, até Cristo vir no dia de nossa morte nos tirar delas para não sermos sepultados.

“Convertei-vos e crede no Evangelho”: Mc. 1,12-15

Esta é a mensagem singular que Cristo trouxe ao mundo. A Salvação passou de ser promessa a ser notícia e uma notícia boa , isso significa em grego Evangelho. Toda notícia é fato. O futuro se faz presente. Se diz que Jesus começou suas missão dizendo que “o tempo está realizado e o Reino de Deus está próximo”. Os evangelistas situam este início evangélico após ter passado uma quaresma no deserto na qual Jesus, como homem, se conheceu a si mesmo, sendo tentado pelo demônio a resolver seu problema existencial fora de Deus. Tentação tem o sentido de tentativa. Todos viemos a esta vida problemática “tentando” dar uma resposta à mesma. Três tentativas humanamente todos temos:
-A tentaçao do pão. A vida é uma questão de satisfazer nossas necessidades através do consumo de tudo quanto nos apetece. “Comamos e bebamos porque amanhã morreremos”, dizia Epicuro (sec. IV a.C). Cristo percebeu esse engano dizendo que o homem não vive só de pão, mas de toda Palavra (promessa de Salvação) que sai da boca de Deus. Em Jo.6, dirá: “trabalhem não pela comida que perece, mas pela que permanece para sempre”. Ele mesmo declarou-se ser o Pão da Vida. Que adianta termos pão se morremos de tédio, diziam alguns jovens universitários em Paris nos anos 1968.

– A tentaçao da História. A Jesus o demônio propõe a possibilidade de se realizar tornando-se famoso atirando-se desde o pináculo do Templo de Jerusalém, pois como Deus podia voar sem sofrer na sua queda. O povo, que costumava estar naquele lugar esperando seu Messias, o aclamaria imediatamente, sem necessidade de passar pelo fracasso da cruz. Não é fácil vencer esta tentação que todos temos. Fazemos de tudo para fugir de nossa história real, sempre sujeita a sofrimento e limitações. A Fé só é grande e verdadeira na própria história, que torna-se salvífica na medida que nela esperamos a Salvação de Deus. Caímos nesta tentação quando apelamos aos milagres a qualquer custo, mesmo que seja através de deuses falsos ou quando duvidamos que estamos sós na luta árdua de cada dia, particularmente quando a doença e o sofrimento grudam em nosso corpo.

-A tentação dos ídolos. A Jesus o demônio lhe propõe a posse de bens materiais se lhe prestar adoração. Fama, coisas, pessoas, sonhos, saúde e, particularmente, o dinheiro se postam diante de nós ao longo de nossa vida a nos prometer uma vida feliz. Mas, quando mais necessitamos da vida que buscamos e queremos, esses ídolos, eles nos abandonam e nos deixam sós. Converter-se e acreditar no Evangelho significa que só em Deus temos a vida imortal e gloriosa, a nós concedida de maneira gratuita em Cristo ressuscitado.

Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição, e intertítulos por Malcolm Forest. São Paulo.)

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