UM CORAÇÃO PETRIFICADO

                Nada é mais odioso e socialmente incômodo às relações humanas do que a presença de um coração empedernido, insensível, indiferente, petrificado. Quem o possui não merece respeito, mas temor. A pessoa assim descrita certamente tem em seu currículo um histórico de mando e desmando, posturas autoritárias, características ditatoriais. Imaginem esse coração pulsando num peito de um líder, um governante, um imperador! Imaginem essa pessoa pública conduzindo uma nação, tentando impor suas vontades, suas ideias e ideários políticos, seus tentáculos de ordem social completamente avessos aos interesses e necessidades populares. Um coração desse naipe jamais conduziria um povo à santa e sonhada liberdade.

                Pois imaginem que, ironicamente, para comemorar nossa bicentenária independência, trouxemos de Portugal o coração petrificado de D. Pedro, aquele que um dia fez ecoar entre nós seu brado de “Independência ou Morte”! Nada é mais sintomático e oportunamente sádico, tétrico, fúnebre que esse mórbido símbolo da nossa independência. Aquele coração que um dia pulsou de amor pelo seu povo, que rasgou seus laços familiares e pátrios com a terra-mãe, essa que nos governou por séculos e nos ensinou os primeiros passos como civilização douta e culta, que nos deixou a língua como identidade de um povo unido em seus ideais… aquele coração não merecia ser incomodado em seu silencio no exílio que sofreu! Não. Nem na violação de sua urna sepulcral! Nem no desrespeito por tudo que sonhou de bom para nosso país. Não tínhamos esse direito!

                Se hoje podemos contemplar os contornos daquele coração enrijecido pelo formol da história, lembremo-nos que estamos diante de um músculo que um dia foi carne e sangue, que ajudou a construir nossa história de liberdade e nos fez sonhar com ela ao romper seus laços com a tirania, a escravidão, a exploração injusta contra nossa soberania mais que merecida. Agora, decorridos duzentos anos, pouco temos a comemorar se considerarmos os passos ainda inseguros dessa república de contradições. Um país de contrastes não somente territorialmente, mas também social. Os sonhos de liberdade continuam sonhos. Nossa soberania campeia. “Desafia o nosso peito a própria morte”. Então esse coração petrificado, do peito de Pedro, o Imperador insubordinado, inquieto e rebelde à sua monarquia anárquica, torna-se símbolo de nossas comemorações cívicas. Não poderia ser mais irônico no momento!

                Esse é nosso reino! Uma nação não se constrói com símbolos, nem desenterra seu passado para aviltar uma soberania ainda imberbe e insegura. Ao contrário, o reino que buscamos é outro, bem diferente dos cenários mórbidos que hoje contemplamos. Deixemos de lado a imagem tétrica desse coração enrijecido no formol de muitos interesses escusos. Lembremo-nos de nossa origem, como Terra da Santa Cruz, da mesma cruz que melhor representa nossos anseios de liberdade! Um dia, como povo religioso e cristão que ainda somos, haveremos de contemplar esse símbolo com mais amor e respeito. É dessa cruz que fluem nossos sonhos de um novo Reino, pois ali sucumbiu um coração verdadeiramente amoroso, que derramou seu sangue pelo seu povo. O banquete desse novo Reino ainda nos aguarda. “Vinde, benditos do meu Pai”. Não é hora de velar o passado. Mas de convidar nosso povo a celebrar sua liberdade, com mais igualdade e respeito entre nós. “Então tu serás feliz! Porque eles não te podem retribuir” (Lc 14,14). Então poderemos cantar nosso Hino com o coração nas mãos…

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