A graça da transfiguração
(cf. Gn 15,5-12.17-18;)
Caríssimos irmãos e irmãs,
O caminhar de Jesus na Terra é sempre um peregrinar para a Casa do Pai, da humilhação à exultação na luz divina. Com razão, seguir a Cristo implica refazer em primeira pessoa o mesmo caminho pascal: a semente que morre produz muito fruto. O percurso vai da cruz à glória, do sofrimento à plena alegria, nossa pátria definitiva (cf. Fl. 3,17-41), afinal somos chamados para as coisas do alto.
Eis o tempo favorável para a nossa conversão, tempo propício para deixarmos o homem velho e revestirmo-nos do “homem novo”. Visto que Jesus Cristo é o cumprimento do Antigo Testamento e o realizador do novo. Só em Jesus resplandece a fisionomia do “homem novo” em plena comunhão com Deus. Porquanto, a Transfiguração de Jesus no Monte Tabor, que o Evangelho do segundo domingo da quaresma nos recorda — Lc 9,18b-36 —, nos fala que do esforço e da penitência quaresmal por seguir Cristo na sua Paixão chegaremos também nós à alegria da sua Ressurreição gloriosa .
O cansaço, obscuridade, medos, incertezas do nosso peregrinar não podem nos confundir e nem nos enganar quanto à nossa meta luminosa da comunhão com Deus . A graça da transfiguração da vida, em força do ouvir o divino chamado, é o nosso testemunho da obra de Deus em nós. Tenhamos como modelo da fé a figura emblemática de Abraão – pai de todos os crentes, que sabe ouvir e mesmo sendo difícil, confia totalmente na promessa de Deus, e Ele jamais deixou de cumprir a Sua Palavra . A promessa de Deus a Abraão é gratuita e incondicional.
A exemplo de Jesus, temos a oração que nos alimenta e renova a nossa fidelidade à missão. Jesus passa noites e noites de solidão e medita sobre Moisés e os profetas. Nas suas noites escuras de angústias encontra consolo no Pai. Pedro, Tiago e João testemunham a agonia de Jesus no Getsêmani, ouvem a mesma voz do Monte Tabor. E por este testemunho não temos escândalo da Paixão. Afinal, é grande a tentação em rejeitar a Cruz e cedermos às coisas terrenas .
Deus se compromete com os homens e mulheres, como o fez com Abraão, e eis o nosso convite: construir a existência com serenidade e confiança; mesmo que haja ventos contrários e alguma tempestade, Deus nos sopra ao lugar certo pela inspiração do Espírito Santo de Deus. Assim Paulo, mesmo preso, entende e, por isso, é capaz de agradecer a preocupação dos filipenses. Não somos chamados para o corruptível e mortal, teremos um dia um corpo transfigurado pela ressurreição. No entanto, hoje temos que fazer esta transfiguração acontecer, principalmente no acolhimento do outro, mesmo que ele venha a nós como o Cristo Crucificado. Tenhamos a certeza de que precisamos acolher e abraçá-lo, pois só assim ele será transfigurado. Hoje, o Cristo crucificado se apresenta no irmão viciado, desprezado, marginalizado, excluído da sociedade e das famílias. É nestes que acolhemos e que, muitas vezes, chegam a nossas paróquias e comunidades e que serão transfigurados quando forem verdadeiramente acolhidos. Em nosso abraço, poderemos transfigurar estes irmãos excluídos, tornando momento de graça e de bênção, momento de misericórdia verdadeira.
Precisamos, mais do que nunca, nos tornar sinal de misericórdia neste mundo, homens novos que constroem uma nova civilização do amor – apregoado pelo Papa Paulo VI –, desde que tenhamos a coragem de nos entregar totalmente por amor, que muda o mundo egoísta, individualista e comodista. Precisamos mudar o nosso coração, seja por meio de um jejum verdadeiro que nos faça ver além das nossas necessidades. Só por meio desta radical mudança de coração é que poderemos ter a vida nova de homens novos, transfigurados pela ressurreição.
Transfiguração não acontece isolada ou solitariamente. Três dos amigos de Jesus partilham desta experiência, que se dá quando nos afastamos um pouco. Eis o momento propício para nos afastar um pouco: – a Quaresma! Transfigurar é anúncio da vida nova que nasce, ressurreição! Não transfiguramos para ficarmos no alto, mas para descermos e lutarmos até o fim para que todos tenham a vida. A religião não é ópio ou analgésico aos problemas e dores do dia a dia, mas compromisso com Deus, que se compromete com amor pelo mundo e pelos homens e mulheres.
Transfigurar significa unir-se, como a Campanha da Fraternidade propõe neste ano, ou seja, “unir igrejas de diferentes expressões religiosas e pessoas de boa vontade na promoção da justiça e do direito ao saneamento básico; estimular o conhecimento da realidade local em relação aos serviços de saneamento básico; incentivar o consumo responsável dos dons da natureza, principalmente da água; apoiar e incentivar os municípios para que elaborem e executem o seu Plano de Saneamento Básico; acompanhar a elaboração e a execução dos Planos Municipais de Saneamento Básico; desenvolver a consciência de que políticas públicas na área de saneamento básico apenas tornar-se-ão realidade pelo trabalho e esforço em conjunto; desenvolver a compreensão da relação entre ecumenismo, fidelidade à proposta cristã e envolvimento com as necessidades humanas básicas” . E atualmente acrescentamos todo o compromisso no combate contra o aedes aegypti que tantas doenças traz para a nossa população. Eis o transfigurar-se na concretude do dia a dia, quando teremos e temos de descer do monte Tabor e ir à missão, por conservar e cuidar deste mundo . Porquanto, não apenas cantamos o hino da CF/2016, mas vivemos:
“Eis, ó meu povo o tempo favorável, da conversão que te faz mais feliz; da construção de um mundo sustentável, “casa comum” é teu Senhor quem diz: Quero ver, como fonte, o direito a brotar, a gestar tempo novo: e a justiça, qual rio em seu leito dar mais vida pra vida do povo”.
Eis um gesto pessoal para a Quaresma: evite o consumismo, o desperdício dos alimentos, façamos o jejum, mas doando aos mais pobres o que iríamos consumir neste dia de jejum. Assim acolheremos o outro e o ajudaremos a transfigurar, como cada um de nós foi acolhido por Deus, e aí seremos a beleza eterna de Deus, sem desfigurações, mas transfigurados. O encanto do primeiro acolhimento logo nos primeiros capítulos, o livro do Gênesis mostra-nos como e quanto Deus é acolhedor das suas criaturas. É com uma exclamação cheia de encanto e de deslumbramento, terna e amorosa, que Deus acolhe o homem e a mulher, a obra-prima da sua criação, à sua imagem e semelhança: “E Deus viu que era muito bom e belo” (Gn 1,31)! E o capítulo segundo, num estilo narrativo-simbólico, põe-nos a contemplar Deus como o Artista divino que modelou o homem e lhe “soprou um alento de vida” (Gn 2,7). O verbo “soprar”, na língua original (naphah), admite também o significado de “dar um beijo”: a criatura humana recebe no seu rosto um beijo de Deus, símbolo de ternura e intimidade, tal como o primeiro beijo da mãe ao acolher, em seus braços, o filho que acaba de dar à luz!
Em seguida, é-nos apresentado o homem na sua solidão existencial: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Esta solidão prepara-o para o acolhimento da mulher, o seu semelhante, que não encontrara no mundo infra-humano. E como que despertando de um sono e de um sonho ansiado, o homem acolhe-a com um hino de júbilo: “Finalmente, esta é carne da minha carne, osso dos meus ossos” (Gn 2,23). O ser humano adverte que, só acolhendo o outro, se torna plenamente humano. Criando-os à Sua imagem e semelhança, Deus inscreveu no coração de cada homem e de cada mulher a capacidade e a vocação de amar, de acolher. Deus continua a acolher o homem ao longo da história, com as suas alegrias e tristezas, com as suas fragilidades e fadigas. Jesus, o Filho de Deus feito homem, é um ser de acolhimento.
Portanto, tudo que fizermos façamos inspirados pelo Espírito Santo, lutando por dignidade, justiça e lealdade, a fim de que preservemos a beleza da criação de Deus e que tenhamos um saudável ambiente como Deus nos ofereceu na criação. Eis o grande desafio da transfiguração que hoje somos chamados. Não deixemos de rezar, pois é questão de vida. Uma vez que quem reza, quem realmente se entrega e confia plenamente a Deus com amor filial, poderá entrar na vida eterna que se inicia no hoje, no aqui e agora.
Não estamos sós, como Jesus não estava só quando rezava. Tenhamos esta certeza certa, e ouçamos o Filho, como nos pede a voz que vem da nuvem. Tenhamos ouvidos para ouvir e colocar em prática este mandamento. Ouvir o outro é algo bem difícil em nossos tempos! Acolher o que o outro diz, sem preconceitos ou filtros, mais difícil ainda. Só existe diálogo verdadeiro se houver escuta, e escutar aqui é ter paciência no que o outro diz, fazer-se e ter-se um pouco de silêncio para ouvir mesmo. Como é difícil termos silêncio hoje para ouvirmos; estamos como Pedro, falando e falando, muitas vezes sem sentido. Diríamos, hoje, estamos teclando e teclando com muitos, falando, mas pouco ou nada ouvindo, e o mais difícil silêncio que não praticamos é o silêncio interior. Quaresma é tempo de ouvirmos Jesus, na Lei (Moisés) e nos Profetas (Elias). Precisamos nos tornar mais presentes, como Jesus se fez e faz, pois sua presença se torna uma palavra de fato. Toda a Revelação tem o seu cumprimento em Jesus, daí “escutar o Filho” é preciso, porque n’Ele encontramos tudo o que Jesus quer dizer-nos hoje. Aproveitemos o tempo da Quaresma para fazer também silêncio interior e escutar a Palavra de Deus. Fiquemos atentos a Jesus, a cada um(a) dentre nós.
Neste domingo, pois, brotemos para um tempo novo, dando mais vida, oferecendo a água viva, como veremos na próxima vez, quando falaremos da água pura. Durante este tempo quaresmal peçamos a Maria, mãe da máxima ternura, mãe e mestra da vida espiritual, que nos ensine a rezar como fazia o seu Filho, a fim de que nossa existência seja transfigurada pela luz de sua presença.
Rezemos: “Pai Santo, Pai querido, Pai Amado, que jamais descuidais daquilo que criastes, escutai nossa oração: concedei-nos conhecer a profundidade do mistério pascal de Cristo, vosso Filho e nosso Irmão Maior, para que, renovados nos pensamentos e obras, o sigamos com fiel docilidade e o amemos sinceramente nos nossos irmãos e irmãs”.