Convocado pelo papa Francisco em 2015, o Sínodo da Amazônia foi o primeiro teste do modelo que se ia repetir na Caminho Sinodal Alemão e no Sínodo da Sinodalidade, inciado em 2021 que deve se estender até o ano que vem. Assim como no processo alemão e nas fases já realizadas do Sínodo da Sinodalidade, depois de processos de escuta, discutiu-se no Sínodo da Amazônia o fim do celibato sacerdotal, a ordenação de mulheres e uma inculturação radical que aceita a visão do mundo em que se vai evangelizar, os mesmos temas de reforma que se propõem à Igreja desde antes do Concílio Vaticano II.
“Atendendo o desejo de algumas Conferências Episcopais da América Latina, assim como ouvindo a voz de muitos pastores e fiéis de várias partes do mundo, decidi convocar uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região Pan-amazônica”, disse o papa ao convocar o sínodo em 2015. “O objetivo principal desta convocação é identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus, especialmente dos indígenas, frequentemente esquecidos e sem perspectivas de um futuro sereno, também por causa da crise da Floresta Amazônica, pulmão de capital importância para nosso planeta”.
A Amazônia “é um extenso território com uma população estimada em 33.600.000 habitantes, dos quais entre 2 e 2,5 milhões são indígenas. Esta área, composta pela bacia do rio Amazonas e todos os seus afluentes, estende-se por 9 países: Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Brasil, Guiana, Suriname e Guiana Francesa”, sendo que a maior parte está em território brasileiro. Dos habitantes não indígenas da Amazônia, 68% vivem em cidades.
Participaram do sínodo em outubro de 2019, no Vaticano, entre outros, bispo dos nove países cujos territórios abrangem partes da Amazônia. O maior número foi do Brasil, com 58, seguido por Colômbia (17), Bolívia (12), Peru (11), Equador (7), Venezuela (7) e Antilhas (4). De 6 a 27 de outubro de 2019, no Vaticano, reuniram-se bispos dos países que partilham a Amazônia, cardeais da cúria e outros escolhidos pelo papa para discutir o tema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e por uma ecologia integral”.
Já no Instrumentum laboris (IL) que serviu de base para as discussões do sínodo se propunha a ordenação de homens casados: “Afirmando que o celibato é uma dádiva para a Igreja, pede-se que, para as áreas mais remotas da região, se estude a possibilidade da ordenação sacerdotal de pessoas idosas, de preferência indígenas, respeitadas e reconhecidas por sua comunidade, mesmo que já tenham uma família constituída e estável, com a finalidade de assegurar os sacramentos que acompanhem e sustentem a vida cristã”.
A maioria dos bispos, 58, eram do Brasil, país que abriga sozinho a maior parte da Amazônia.
O relator geral o arcebispo emérito de São Paulo (SP) e então presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), cardeal Cláudio Hummes, confidenciou que o papa incentivou os bispos a ousarem em suas propostas. Assim, no documento final, publicado em 26 de outubro de 2019, o sínodo pediu a ordenação de homens casados, a ordenação de mulheres para o diaconato e a criação de um rito amazônico.
Para muitos críticos, por trás dessas propostas havia algo mais do que o interesse na evangelização da Amazônia.
Em um artigo oferecido a CNA Deutsch, agência em alemão Grupo ACI, e a outros meios de comunicação, em julho de 2019, o prefeito emérito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Gerhard Müller, chamou atenção para a atuação da REPAM na organização do IL e como “os autores da chamada Theologia India (Teologia indígena), no texto, citam primordialmente a si mesmos”.
“É uma sociedade fechada de pessoas com o mesmo ponto de vista sobre o mundo”, disse Müller, destacando a presença “de um número desproporcional de europeus de língua alemã” nos encontros pré-sinodais.
“Entre eles, não todos conhecem a América do Sul e só estão presentes porque acreditam que os temas estão alinhados com a estratégia oficial e podem servir para dominar os temas do atual caminho sinodal que empreenderam a Conferência Episcopal Alemã e o Comitê Central dos Católicos Alemães (entre eles: a abolição do celibato, acesso das mulheres ao sacerdócio e a posições chave contra o clericalismo e fundamentalismo, adaptar a moralidade sexual revelada à ideologia de gênero e apreço pelas práticas homossexuais)”, disse o cardeal Müller meses antes do início do sínodo na Vaticano.
A proposta de ordenação dos viri probati foi parar no documento final do sínodo, após receber 128 votos a favor e 41 contra. O numeral 111 do documento propõe “estabelecer critérios e disposições de parte da autoridade competente […] para ordenar sacerdotes a homens idôneos e reconhecidos da comunidade, que tenham um diaconado permanente fecundo e recebam uma formação adequada para o presbiterado, podendo ter uma família legitimamente constituída e estável, para sustentar a vida da comunidade cristã através da pregação da Palavra e a celebração dos Sacramentos nas zonas mais remotas da região amazônica”. Diz ainda que, “a este respeito, alguns se pronunciaram por uma abordagem universal do tema”, mostrando que, para muitos, o fim do celibato não era mesmo uma preocupação gerada exclusivamente pela carência de padres na Amazônia.
A proposta de fim do celibato gerou a mais forte reação vinda de fora do Sínodo. Em janeiro de 2020 foi publicado o livro sobre o sacerdócio, “Des profondeurs de nos cœurs” (“Do fundo de nossos corações”), assinado, na primeira edição pelo então prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, cardeal Robert Sarah, e pelo papa emérito Bento XVI.
“Da celebração cotidiana da Eucaristia, que implica um estado permanente de serviço a Deus, surge espontaneamente a impossibilidade de um vínculo conjugal”, disse Bento XVI no livro. “Sem a renúncia aos bens materiais, não pode existir um sacerdócio” e acrescenta que “o chamado para seguir Jesus não é possível sem esse sinal de liberdade e renúncia a todos os compromissos”.
O então secretário particular de Bento XVI, dom Georg Gänswein, confirmou, mais tarde, que o papa emérito sabia que o cardeal Sarah estava escrevendo um livro sobre sacerdócio e que o tinha autorizado a usar seu texto “como o desejasse”.
Mas pediu que o cardeal tirasse o nome de Bento XVI como coautor do livro e colocasse “escrito com a contribuição de Bento XVI”.
Diante da controvérsia gerada pelo livro, o diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni, disse que a posição do papa Francisco “sobre o celibato é conhecida”. Ao voltar do Panamá, em 2019, Francisco citou uma frase de são Paulo VI para se referir ao assunto: “Prefiro dar a vida antes que mudar a lei do celibato”.
No mês seguinte, fevereiro de 2020, foi publicada a exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia, em resposta ao documento final do sínodo. Na exortação, o papa Francisco não abriu as portas para os sacerdotes casados.
Francisco recordou que o caráter exclusivo recebido na Ordem capacita unicamente ao sacerdote “para presidir a Eucaristia. Esta é a sua função específica, principal e não delegável”. Pediu ainda para encontrar “um modo para assegurar este ministério sacerdotal” nas selvas e lugares mais remotos da Amazônia.
O papa disse na exortação que, para ajudar os padres, os leigos “poderão anunciar a Palavra, ensinar, organizar as suas comunidades, celebrar alguns sacramentos, buscar várias expressões para a piedade popular e desenvolver os múltiplos dons que o Espírito derrama neles”.
Mas, ressaltou que há a necessidade de mais sacerdotes: “Necessitam a celebração da Eucaristia porque ela ‘faz a Igreja’”. Por isso, pediu aos bispos, especialmente aos da América Latina, para “promover a oração pelas vocações sacerdotais e também a ser mais generosos, levando aqueles que demonstram vocação missionária a optarem pela Amazônia”.
O documento final do sínodo falou em uma “Igreja em saída missionária”, uma “Igreja samaritana, misericordiosa, solidária”, uma “Igreja em diálogo ecumênico, interreligioso e cultural” que “leva-se a cabo especialmente com as religiões indígenas e os cultos afrodescendentes”.
“A evangelização que hoje propomos para a Amazônia, é o anúncio inculturado que gera processos de interculturalidade, processos que promovem a vida da Igreja com uma identidade e um rosto amazônico”, disseram os bispos sinodais.
Em Querida Amazônia, o papa Francisco disse que “sem dúvida, há que apreciar esta espiritualidade indígena da interconexão e interdependência de todo o criado, espiritualidade de gratuidade que ama a vida como dom, espiritualidade de sacra admiração perante a natureza que nos cumula com tanta vida”. Mas, “trata-se também de conseguir que esta relação com Deus presente no cosmos se torne cada vez mais uma relação pessoal com um ‘Tu’, que sustenta a própria realidade e lhe quer dar um sentido, um ‘Tu’ que nos conhece e ama”.
Sobre a proposta das diaconisas, vista por muitos como um primeiro passo rumo à ordenação de mulheres para o sacerdocio, Francisco disse na Querida Amazônia que as mulheres “realizam um papel central nas comunidades amazônicas” e que em uma Igreja sinodal “deveriam poder ter acesso a funções e inclusive serviços eclesiais que não requeiram a Ordem sacra e permitam expressar melhor o seu lugar próprio”. Disse também que “tais serviços implicam uma estabilidade, um reconhecimento público e um envio por parte do bispo”.
Antes do sínodo, o papa Francisco já havia negado a ordenação de diaconisas. Após receber, em 2016, uma consulta por parte da União Internacional de Superioras Gerais (UISG), Francisco ordenou a criação de uma comissão de estudos sobre o diaconato das mulheres. Em maio de 2019, em coletiva de imprensa no voo no qual regressou da Macedônia do Norte para Roma, o papa disse que, uma vez concluídos os trabalhos da comissão, a possibilidade de ordenar diaconisas na Igreja “até este momento não vai”.
Em abril de 2020, depois do Sinodo da Amazônia, portanto, o papa Francisco decidiu instituir uma nova comissão para estudar o diaconato feminino.
O documento final do sínodo também propôs, entre outras coisas, a criação de uma Universidade Católica Amazônica e de um novo “Organismo Eclesiástico Regional Pós-sinodal para a região amazônica”. Este último pedido, concretizou-se em outubro de 2021, quando o papa Francisco erigiu canonicamente a Conferência Eclesial da Amazônia, vinculada à presidência do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM).
A conferência eclesial da Amazônia tem a finalidade de “promover a ação pastoral comum das circunscrições eclesiásticas da Amazônia e de incentivar uma maior inculturação da fé no referido território”.
Outro fato que, posteriormente, foi visto como fruto do sínodo foi a criação cardinalícia do arcebispo de Manaus (AM), dom Leonardo Steiner, em agosto de 2022. Trata-se do primeiro cardeal da Amazônia brasileira.
Dom Steiner não participou do sínodo em outubro de 2019, no Vaticano. Na época ele era bispo auxiliar de Brasília (DF). Além disso, ate maio daquele ano, ele havia sido secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Um mês após o encerramento do Sínodo da Amazônia, dom Leonardo Steiner foi nomeado arcebispo de Manaus (AM). Quando o papa Francisco anunciou, em maio de 2022, que dom Steiner estava entre os novos cardeais, o arcebispo disse que essa nomeação “talvez” fosse “a expressão do sínodo que celebramos. E, talvez mais, o papa esteja pedindo a nossas igrejas que assumam o sínodo, especialmente o texto Querida Amazônia e o documento final do sínodo dos bispos para a Amazônia”.
Pachamama
Dias antes do início do sínodo, em 4 de outubro, dia de são Francisco de Assis, o papa Francisco participou de uma cerimônia nos Jardins do Vaticano, em que plantou uma árvore, junto com o cardeal Hummes. O evento foi organizado pela REPAM, o Movimento Católico Mundial pelo Clima e a Ordem dos Franciscanos Menores. Participaram representantes de povos indígenas do Brasil e do Peru, que fizeram gestos identificados pela imprensa como um ritual indígena e entregaram a Francisco um colar, uma imagem de uma mulher grávida descrita pelo canal de Vatican News em português como “Nossa Senhora da Amazônia” e um anel negro que parecia ser o conhecido anel de tucum.
Dias depois, o prefeito do dicastério para a Comunicação da Santa Sé, Paolo Ruffini, disse que a imagem da mulher grávida não era Nossa Senhora, mas uma estátua que representava a vida.
Esta mesma estátua, identificada posteriormente como Pachamama, esteve presente “Amazônia Casa Comum”, uma iniciativa paralela ao sínodo, que aconteceu na igreja de Santa Maria em Traspontina, promovida, entre outros, pela REPAM. Nesta iniciativa aconteceu um evento diário de caráter sincrético chamado “Momentos de espiritualidade amazônica”, no qual se misturaram tradições indígenas da Amazônia com referências cristãs.
A Pachamama, ou mãe terra, é na verdade uma divindade inca cultuada pelos povos originários dos Andes e não tem qualquer ligação com a Amazônia. É celebrada anualmente em 1º de agosto por comunidades quechua e aimara dos Andes da Argentina, Bolívia, Colômbia, Chile, Equador e Peru.
Durante os dias do sínodo, cinco esculturas da imagem feminina grávida foram roubadas de dentro da igreja de Santa Maria em Traspontina e jogadas no rio Tibre. Após o ocorrido, o papa Francisco pediu “perdão às pessoas que se sentiram ofendidas por este gesto” e informou que as imagens tinham sido encontradas sem danos.