Neste tempo sagrado da Oitava de Natal, a Liturgia da Igreja, com a sua pedagogia milenar, retira-nos suavemente da contemplação silenciosa da Gruta de Belém para nos colocar diante da teologia profunda e do testemunho vibrante de São João Evangelista. Se ontem celebrávamos o protomártir Estêvão, aquele que derramou o sangue por Cristo, hoje celebramos João, aquele que sofreu o martírio do amor e da longevidade, preservado por Deus para ser a testemunha ocular que conecta a Encarnação à Ressurreição, o Natal à Páscoa.
A figura de São João é, para nós, a águia que voa alto, fitando o sol da divindade sem ofuscar a vista. Ele é o Teólogo por excelência, aquele que no prólogo do seu Evangelho nos ensinou que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). E é sobre este mistério da ‘carne’ de Deus e da unidade da Igreja que desejo refletir convosco nesta solene celebração.
A Primeira Leitura, (1Jo 1,1-4), é um manifesto contra qualquer tentativa de espiritualizar o Cristianismo a ponto de o desencarnar. João escrevia numa época em que já surgiam as primeiras heresias gnósticas, que desprezavam a matéria e diziam que Cristo tinha apenas um corpo aparente.
Contra isso, o Discípulo Amado ergue a voz com uma força jurídica de testemunha: ‘O que nós ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos tocaram da Palavra da Vida, nós vos anunciamos’.
Observem, caríssimos, a insistência nos sentidos: ouvir, ver, contemplar, tocar. A fé cristã é histórica. Ela acontece na realidade crua da vida. O Natal que celebramos não é um mito poético, mas a entrada de Deus na história humana, assumindo a nossa fragilidade.
Em nossos tempos, marcados por uma cultura muitas vezes virtual e desumanizante, onde a vida humana é descartada e a violência assola nossas comunidades — realidade que conhecemos bem em nossa grande cidade —, a mensagem de João é um imperativo ético. Se Deus assumiu a carne humana, toda carne humana é sagrada. Tocar no pobre, no doente, no nascituro, no idoso abandonado, é, misteriosamente, tocar na ‘Palavra da Vida’. O realismo joanino nos compromete com a defesa da dignidade humana desde a concepção até o seu declínio natural.
O Santo Evangelho (Jo 20,2-8) nos transporta para a manhã do ‘primeiro dia da semana’. Ainda estava escuro. A notícia trazida por Maria Madalena provoca uma reação imediata nos apóstolos. E aqui, a Providência Divina nos desenha um ícone perfeito da Santa Igreja.
O texto sagrado narra: “Saíram, pois, Pedro e o outro discípulo e foram ao sepulcro. Corriam os dois juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro”.
A tradição patrística e a exegese espiritual sempre viram nesta corrida a dinâmica entre o amor e a autoridade. João representa o carisma, o amor místico, a profecia, a urgência da evangelização. O amor, por sua natureza, é veloz; ele intui as realidades divinas antes mesmo que a razão as processe. O amor não suporta a separação e anseia pelo reencontro. Por isso, João chega primeiro.
Contudo, o detalhe crucial vem a seguir: “Inclinando-se, viu as faixas de linho no chão, mas não entrou”. Ele espera Pedro. Pedro, a Rocha, aquele a quem o Senhor confiou as chaves do Reino, caminha com o passo da responsabilidade pastoral, carregando o peso da instituição e da unidade.
João, embora tenha chegado antes pelo amor, submete-se à ordem da comunhão. Ele sabe que não pode haver ‘visão’ completa sem a unidade com a Cabeça visível do colégio apostólico. “Chegou, pois, Simão Pedro, que o seguia, e entrou no sepulcro”. Só então João entra.
Este gesto é uma lição perene para a Igreja. Carisma e Instituição são coessenciais, como nos ensinou o Concílio Vaticano II e o pontificado de São João Paulo II. O carisma sem a instituição pode tornar-se desordem; a instituição sem o carisma pode tornar-se fria. Mas quando caminham juntos, quando o amor espera pela fé confirmada e a fé confirmada acolhe o amor, então a Igreja testemunha a Ressurreição em sua plenitude.
Num mundo fragmentado, onde a desobediência e a ruptura são muitas vezes exaltadas como virtudes, nós católicos somos chamados a viver esta “mística da comunhão”. A nossa unidade em torno do Sucessor de Pedro e dos Bispos em comunhão com ele não é meramente disciplinar; é teológica, é sacramental, é testemunho de que Cristo não está dividido.
O Evangelho conclui dizendo: “Então entrou também o outro discípulo… e viu e acreditou”.
Santo Agostinho, refletindo sobre este trecho (In Ioannis Evangelium), questiona-nos: o que significava acreditar naquele momento? João viu os sinais da ausência (o túmulo vazio) e os sinais da ordem (o sudário dobrado). Diferente de Lázaro, que saiu do túmulo ainda amarrado pelas faixas — pois morreria novamente —, Cristo deixou as faixas para trás. Ele entrou numa nova dimensão de existência, a Vida definitiva.
João ‘viu e acreditou’ porque o seu coração estava purificado pelo amor. O amor é o órgão da visão espiritual. Como dizia o Papa Bento XVI, em sua encíclica Deus Caritas Est, o programa do cristão é um ‘coração que vê’. João viu além da morte porque amou Aquele que é a Vida.
Hoje, a tradição popular da Igreja realiza a bênção do vinho, recordando a lenda de que João, desafiado a beber um cálice envenenado, traçou sobre ele o sinal da cruz e o veneno saiu em forma de serpente, tornando a bebida inofensiva.
Esta piedosa tradição nos recorda que o Amor de Deus é o antídoto contra os venenos do mundo: o veneno do ódio, da indiferença, do secularismo e da divisão. O “Amor de São João” (Johannesminne) que celebramos não é um sentimento passageiro, mas a caridade teologal que tudo suporta, tudo crê, tudo espera.
Peçamos, pois, nesta Eucaristia, que o Senhor nos conceda a graça de sermos, como João, discípulos amados. Que tenhamos a ousadia de reclinar a cabeça sobre o Coração de Jesus na oração, para depois corrermos ao encontro do mundo com a notícia da Ressurreição.
Que a Virgem Maria, entregue aos cuidados de João aos pés da Cruz — e nela, todos nós fomos entregues como filhos —, nos ensine a fidelidade até o fim.



