São Bernardo de Claraval e as vocações

    Celebramos neste dia 20 de agosto a memória de São Bernardo de Claraval, que nos inspira considerar alguns aspectos de sua vida, especialmente no que diz respeito à sua vocação e seu trabalho com outros jovens por ele atraídos à vida monástica desde os inícios, pois muito pode nos transmitir em pleno século XXI. (Este artigo é inspirado no livro Monges e monjas cistercienses: pequena introdução à vida monástica [Ixtlan, 2015], do qual escrevi o Prefácio). Será interessante, neste mês vocacional, aprofundarmos um pouco a vida e missão desse abade cisterciense que tanto cativou jovens vocacionados para a vida monástica, tornando-se um mito no seu tempo.
    Bernardo nasceu em 1090, no castelo de Fontaine-les-Dijon, em uma família de sete filhos (uma menina e seis meninos), incluindo ele. Criança tímida, mas piedosa e autêntica, recebeu sua educação escolar dos cônegos de São Vorle, em Châtillon, respeitados intelectuais de então. Ali conheceu a Sagrada Escritura e autores clássicos como Virgílio, Cícero e Horácio, aprendendo, ao mesmo tempo, a ler e a escrever em Latim, de forma elegante e com um pensamento muito bem estruturado, tornando-se, desse modo, um dos maiores intelectuais da Idade Média.
    Terminada a fase de estudos em Châtillon, Bernardo levantou uma dúvida muito sadia quanto ao seu futuro: ser cavaleiro, rodeado ou não de moças, como a maioria de seus amigos, ou se fazer religioso em um dos tantos conventos ou mosteiros de então? – O escritor francês Charles Riché demonstra um pouco de quem era o inquieto Bernardo desse tempo: “Quando, aos 16 anos, retorna ao castelo da família, Bernardo é um rapagão robusto e espigado, perfeitamente talhado para exercer o ofício de cavaleiro. Reencontra seus amigos cobertos com longos mantos, facão em punho, prontos para partir para a caça ou envergando a couraça guerreira. Acontece, porém, que Bernardo se sente chamado para outra existência. Sua mãe acaba de morrer. Pois bem, dela recebeu ele o gosto pelo estudo e pela meditação. Durante certo tempo, hesita, sentindo-se sujeito a algumas tentações, pois as jovens buscam a companhia do garboso adolescente”.
    A primeira proposta que veio à mente de Bernardo foi a de estudar na Alemanha. Chegou a partir, mas, no caminho, lembrou-se de sua mãe, recém-falecida, entrou em uma igreja e ali rezou. Não só a ausência daquela que o trouxe ao mundo lhe preocupava, mas também a situação em que se encontrava a face humana de sua mãe espiritual, a Igreja que o gerou para a vida divina pelo Santo Batismo. Ele via a Igreja “muito comprometida com os assuntos do mundo secular, demasiados discursos, exageros de novidades e de dinheiro; era preciso buscar de novo o silêncio para encontrar a Deus”.
    Aquele jovem que aspirava a vida autêntica mudou, então, de rumo e foi para Borgonha, região cheia de mosteiros beneditinos, dentre os quais está Cluny, tido como “um império temporal e também espiritual”. No entanto, não é essa glória que deixava Bernardo extasiado. O que ele queria era apenas a glória de Deus para sua vida. Importava-lhe amar e servir ao Senhor como Ele deseja ser amado e servido. Nem mais, nem menos.
    Com esse nobre intento, Bernardo procurou o assim chamado “novo mosteiro” – fundado por Roberto de Molesmes, asceta apaixonado pela solidão, e por alguns companheiros –, que tem o nome de Citêaux e localizava-se em uma região de brejo e junco, propícia ao cultivo dos próprios alimentos dos monges. Ali os religiosos viviam (e vivem) “a pobreza, o silêncio e a oração”, se vestiam com simples hábitos de lã sem estampas, dormiam em colchões de palhas, alimentavam-se do que colhiam em suas férteis terras e – o mais importante para o espírito – rezavam (e rezam) sete vezes ao dia o Ofício Divino.
    Todavia, Bernardo, bastante ponderado, não entrou logo para o mosteiro. Queria e, talvez, precisaria aprender a viver a vida comunitária pobre e desprendida de Citêaux, ou fazer uma experiência para ver se conseguiria sustentá-la até o fim. Veio-lhe uma ideia brilhante: reunir cerca de 30 pessoas, incluindo familiares e amigos, que tinham o mesmo desejo que ele para morarem juntos, em uma casa em Châtillon-sur-Seine, antes de pedir admissão à vida monástica.
    No ano de 1113, já bem amadurecido, Bernardo pediu e foi acolhido junto com seus familiares e amigos homens no mosteiro de Citêaux, mas, apesar da experiência familiar anterior em comum, a vida ali não lhe seria fácil. A natureza, porém, muito o ajudava na contemplação, como ele mesmo confessa ao escrever: “Tu encontrarás mais coisas nas florestas do que nos livros; as árvores e as pedras te ensinarão mais do que qualquer mestre te poderá dizer”. O espírito contemplativo de Bernardo o fazia passar todo o período de noviciado absorto em Deus, de modo que nem prestava atenção ao que à sua volta pudesse distraí-lo da meta almejada: buscar ao Senhor na simplicidade, no silêncio e, sobretudo, na oração do Ofício e na meditação da Sagrada Escritura pela Lectio Divina, aspectos centrais da vida monástica cisterciense.
    No ano de 1115, Bernardo foi ordenado sacerdote e mandado por Santo Estêvão Harding, na época o novo superior do mosteiro, com outros doze monges, seus parentes e amigos que com ele entraram em Citêaux, para fundarem o mosteiro de Claraval (Clairvaux), o Vale Luminoso.
    Essa nova fase da vida do santo é bem retratada por Godofredo d’Auxerre, seu biógrafo, apenas 38 anos depois da fundação da nova Abadia. Mas por que a escolha do local? – Porque um vale isolado e percorrido por um córrego facilitava a ascese, a penitência, a oração e o trabalho de cultivo do campo para o próprio sustento. Nas palavras de Riché, “dizem que era ‘um lugar de horror e de vastas solidões’, isolado do mundo por colinas cobertas de bosques. Providencia-se a construção de alguns casebres de madeira, a cela do abade e uma capela de alvenaria. Bernardo se instala numa cela exígua. Já Plinio Solimeo registra: “A nova abadia ficava num lugar inculto e agreste, sendo por isso chamada de Vale do absinto”. “São Bernardo transformá-la-ia em Vale Claro ou Claraval, espalhando sua fama por toda a França e, depois, pela Europa”. (São Bernardo de Claraval, Catolicismo online, agosto de 2001, acessado em 16/08/16).
    Ele tinha o desejo de acolher bem a todos os que ali chegavam para uma experiência monástica. Não importa se traziam ou não uma carta de recomendação de seus respectivos Abades. Para ele o que mais importa era a pessoa que chegou, ávida de melhor servir a Deus na liberdade de sua consciência, sinais importantes na época, embora hoje tenhamos outros critérios a acrescentar.
    O mosteiro de Claraval se enchia de vocações, seja porque muitos procuravam Bernardo, seja porque eram por ele procurados. No primeiro quadro, estava “um senhor de nome Felipe, que se dirige em peregrinação a Jerusalém, não continua mais sua viagem e permanece definitivamente em Claraval”; e Bernardo escreve então ao bispo de Lincoln: ‘Quando se dirigia a Jerusalém, vosso Felipe encontrou um encurtamento do caminho e chegou mais cedo do que pensava. Em muito pouco tempo atravessou este imenso mar e, depois de uma feliz viagem, finalmente chegou à costa tão desejada’.
    No segundo exemplo, lê-se que, ao sair de viagem, Bernardo fazia pregações e sempre atraía muitos jovens ou adultos para o glorioso mosteiro, de modo que seu biógrafo “encontrou oitocentas e noventa cartas de promessas de monges que tinham vindo a Claraval, sem contar os irmãos, leigos e conversos, esses camponeses nas granjas que ajudavam os monges de coro a trabalhar os campos”.
    “A atração mais estrondosa foi a de Henrique de França, irmão do Rei Luís VII. Esse príncipe foi a Claraval tratar de um importante assunto com São Bernardo. Quando ia sair, pediu para ver todos os monges, a fim de se recomendar às suas orações. Bernardo disse-lhe que logo experimentaria a eficácia dessas orações. No mesmo dia, Henrique sentiu-se tão tocado pela graça que, esquecendo-se de que era então o sucessor da coroa, quis ficar em Claraval. Mais tarde foi Bispo de Beauvais, e depois Arcebispo de Reims”.
    Diz-se, inclusive, que, ao saberem que o santo iria passar por uma região, as mulheres cuidavam de trancar em casa seus filhos e maridos, com medo que abandonassem tudo e seguissem Bernardo, tamanho era seu poder de persuasão ao falar do Reino de Deus e da vida monástica.
    É, no entanto, no mosteiro, escola de serviço do Senhor, como ensina a Santa Regra de São Bento, que o monge deve aprender a mortificar seus sentidos e a desconfiar do diabo, grande inimigo dos amigos de Deus, pois o maligno inspira murmurações contra a própria Ordem religiosa, queixas contra os irmãos, desleixo para com os compromissos diários, doenças imaginárias, satisfação dos próprios desejos, tédio, desânimo etc.
    Certo é que o mundo vê os monges com admiração, mas nem sempre os consegue compreender bem. Isso para Bernardo pouco importa: deve o monge buscar o autoconhecimento, a fim de reconhecer as suas misérias e não ter vergonha delas, nem do seu modo pessoal de ser e agir naturalmente, como ele próprio agia, por exemplo, ao se emocionar e chorar, no meio de um Capítulo, por Geraldo, seu irmão recém-falecido, e explicar aos demais monges que não tem “a dureza de uma rocha e seu coração não é de bronze”.
    É esse lado humano, mas invadido pela graça de Deus, que faz dos mosteiros cistercienses verdadeiras escolas de caridade, no sentido do ágape, o amor fraterno, serviçal, desinteressado, capaz de ajudar o homem a chegar aos mais altos degraus da santidade em uma vida sóbria e escondida em Cristo e que, por isso, ainda, em pleno século XXI, continua a atrair não só visitantes, mas também vocações, ou seja, homens e mulheres que se sentem chamados(as) à doação à causa do Reino em uma vida orante e silenciosa.
    No fim de sua vida terrena, declarou: “Subi à parte superior de mim mesmo e ainda mais alto reina o Verbo Explorador curioso que sou, desci ao fundo de mim mesmo e o encontrei ainda mais baixo. Olhei para fora e o percebi no além de tudo. Olhei para dentro, e pareceu-me muito mais íntimo do que eu mesmo. Quando ele entra em mim, o Verbo não trai sua presença por nenhuma sensação. É somente o secreto estremecimento do meu coração que o patenteia. Meus vícios fogem, minhas afeições carnais são dominadas, minha alma se transforma, o homem interior se renova, e em mim está como que a sombra de seu Esplendor”.
    São Bernardo, “no dia 20 de agosto, em sua querida Claraval, cercado de seus monges, entregou sua alma a Deus. Sua reputação de santidade e taumaturgo, difundida entre seus contemporâneos e atestada por seus biógrafos, levaram a um rápido processo de canonização. Já em 1174, decorridos apenas vinte anos de sua morte, o papa Alexandre III o proclamou santo”. (Pe. Luiz Alberto Ruas Santos, O. Cist. Um monge que se impôs a seu tempo: pequena introdução com antologia à vida e obra de São Bernardo, 2001, p. 58).
    Possa o belo exemplo de São Bernardo de Claraval inspirar muitas e santas vocações à Igreja de nossos dias, não só à vida monástica, mas a outros gêneros de vida consagrada, cujo testemunho o mundo muito necessita. Que tenhamos a autenticidade e o entusiasmo de Bernardo de Claraval a propor aos jovens de hoje a alegria da entrega a Deus no serviço aos irmãos e irmãs.

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