Neste dia 11 de julho, se não fosse domingo, teríamos a memória de São Bento, Abade, celebrada em todas as igrejas. Nos mosteiros e abadias que seguem a Regra de São Bento sempre é uma solenidade. Em meu coração é sempre solenidade, embora as celebrações na Arquidiocese sigam o calendário comum. Por isso, não posso deixar passar este dia, e, como busco fazer a cada ano, apresento esta reflexão sobre São Bento de Núrsia (480-547), patriarca dos monges do Ocidente, cuja memória celebramos no calendário romano dia 11 de julho, e no calendário monástico também no dia 21 de março, quando recordamos o seu “trânsito” ou o seu passamento deste mundo para a Jerusalém celeste.
Neste ano de 2021 vamos refletir sobre São Bento à luz dos ensinamentos do mais recente Papa que escolheu nosso santo como seu patrono, o Papa Bento XVI, hoje emérito. A razão dessa escolha se dá porque, no dia 29 de junho último, Joseph Ratzinger celebrou 70 anos de sacerdócio ministerial e é o 16º dos sucessores de Pedro a chamar-se Bento. Voltando, de modo breve, na história, gostaria, a título de contextualização, de recordar os “Bentos” que tivemos como sucessores de Pedro: Bento I (575-579), São Bento II (684-685), Bento III (855-858), Bento IV (900-903), Bento V (964-966), Bento VI (973-974), Bento VII (974-983), Bento VIII (1012-1024), Bento IX (1032-1044. Devido à sua ocupação da cátedra de Pedro por mais duas vezes, 1045 e 1047-1048, a lista pula Bento X), Beato Bento XI (1303-1304), Bento XII (1334-1342), Bento XIII (1724-1730), Bento XIV (1740-1758), Bento XV (1914-1922) (cf. Arlindo Rubert. Tudo sobre os Papas. Porto Alegre: Est, 2003, p. 9-18) e Bento XVI (2005-2013). Daí se vê que, depois de João, Bento é um dos nomes mais adotados pelos sumos pontífices.
Feita esta breve digressão histórica, volto-me a Bento XVI e a seus ensinamentos a respeito do Patriarca dos monges do Ocidente. Sua primeira referência a São Bento de Núrsia, enquanto sucessor de Pedro, foi, no dia 27 de abril de 2005, quando, na Audiência Geral, quis ele explicar a razão da escolha de seu nome. Diz o Pontífice: “Quis chamar-me Bento XVI para me relacionar idealmente com o venerado Pontífice Bento XV, que guiou a Igreja num período atormentado devido ao primeiro conflito mundial. Ele foi um profeta corajoso e autêntico de paz e comprometeu-se com coragem infatigável, primeiro, para evitar o drama da guerra e, depois, para limitar as consequências nefastas. Nas suas pegadas, desejo colocar o meu ministério ao serviço da reconciliação e da harmonia entre os homens e os povos, profundamente convencido de que o grande bem da paz é antes de tudo dom de Deus, dom frágil e precioso que deve ser invocado, tutelado e construído dia após dia com o contributo de todos”.
E prossegue: “Além disso, o nome Bento recorda também a extraordinária figura do grande ‘Patriarca do monaquismo ocidental’, São Bento de Núrsia, co-padroeiro da Europa juntamente com os santos Cirilo e Metódio e as mulheres santas, Brígida da Suécia, Catarina de Sena e Edith Stein. A expansão progressiva da Ordem beneditina por ele fundada exerceu uma influência enorme na difusão do cristianismo em todo o Continente. Por isso, São Bento é muito venerado também na Alemanha e, em particular, na Baviera, a minha terra de origem; constitui um ponto de referência fundamental para a unidade da Europa e um forte chamado às irrenunciáveis raízes cristãs da sua cultura e da sua civilização. Deste Pai do Monaquismo ocidental conhecemos a recomendação deixada aos monges na sua Regra: ‘Nada anteponham absolutamente a Cristo’ (Regra 72,11; cf. 4,21). No início do meu serviço como Sucessor de Pedro, peço a São Bento que nos ajude a manter firme a centralidade de Cristo na nossa existência. Que ele esteja sempre no primeiro lugar nos nossos pensamentos e em cada uma das nossas atividades!”.
Em 10 de julho de 2005, no Angelus, voltou a São Bento com estas palavras: “Celebra-se amanhã a festa de São Bento Abade, Padroeiro da Europa, um Santo que me é particularmente querido, como se pode intuir pela escolha que fiz do seu nome. Nascido em Núrsia por volta do ano 480, Bento fez os primeiros estudos em Roma, mas, desiludido com a vida da cidade, retirou-se para Subiaco, onde permaneceu por cerca de três anos numa gruta o célebre ‘sacro speco’ dedicando-se totalmente a Deus. Em Subiaco, servindo-se das ruínas de uma enorme vila do imperador Nero, ele, juntamente com os seus primeiros discípulos, construiu alguns mosteiros dando vida a uma comunidade fraterna fundada sobre a primazia do amor de Cristo, na qual a oração e o trabalho se alternavam harmoniosamente com o louvor a Deus. Alguns anos mais tarde, em Monte Cassino, deu forma concreta a este projeto, e escreveu-o na ‘Regra’, a única obra sua que chegou até nós. Entre as cinzas do Império Romano, Bento, procurando antes de tudo o Reino de Deus, lançou, talvez sem se aperceber, a semente de uma nova civilização que se teria desenvolvido, integrando por um lado, os valores cristãos com a herança clássica e, por outro, as culturas germânica e eslava”.
E reforça: “Há um aspecto típico da sua espiritualidade, que hoje gostaria de realçar de modo especial. Bento não fundou uma instituição monástica finalizada principalmente à evangelização dos povos bárbaros, como outros grandes monges missionários da época, mas indicou aos seus seguidores como finalidade fundamental, aliás única da existência, a busca de Deus: ‘Quaerere Deum’. Mas ele sabia que quando o crente entra em relação profunda com Deus não pode contentar-se com viver de maneira medíocre seguindo uma ética minimalista e uma religiosidade superficial. Nesta luz, compreende-se, então, melhor a expressão que Bento tirou de São Cipriano e que sintetiza na sua Regra (IV,21) o programa de vida dos monges: ‘Nihil amori Christi praeponere’, ‘Nada antepor ao amor de Cristo’. Consiste nisto a santidade, proposta válida para cada cristão que se tornou uma verdadeira urgência pastoral nesta nossa época na qual se sente a necessidade de ancorar a vida e a história em referências espirituais firmes”.
Foi, no entanto, em sua Audiência Geral de 9 de abril de 2008, dedicada, de modo exclusivo a São Bento – vale a pena lê-la e meditá-la na íntegra a cada ano – que Bento XVI muito se aprofundou na vida do nosso santo: “O nascimento de São Bento é datado por volta de 480. Provinha, assim diz São Gregório, ‘ex provincia Nursiae’, da região da Núrsia. Os seus pais abastados enviaram-no para Roma para a sua formação nos estudos. Mas ele não permaneceu por muito tempo na Cidade eterna. Como explicação plenamente credível, Gregório menciona o fato de que o jovem Bento sentia repugnância pelo estilo de vida de muitos dos seus companheiros de estudos, que viviam de modo dissoluto, e não queria cair nos mesmos erros deles. Desejava aprazer unicamente a Deus; ‘soli Deo placere desiderans’ (II Dial., Prol. 1). Assim, ainda antes da conclusão dos seus estudos, Bento deixou Roma e retirou-se na solidão dos montes a leste da cidade. Depois de uma primeira estadia na aldeia de Enfide (atualmente Affile), onde durante um certo período se associou a uma ‘comunidade religiosa’ de monges, fez-se eremita na vizinha Subiaco. Ali viveu durante três anos completamente sozinho numa gruta que, a partir da Alta Idade Média, constitui o ‘coração’ de um mosteiro beneditino chamado ‘Sacro Speco’. O período em Subiaco, marcado pela solidão com Deus, foi para Bento um tempo de maturação. Ali tinha que suportar e superar as três tentações fundamentais de cada ser humano: a tentação da autossuficiência e do desejo de se colocar no centro, a tentação da sensualidade e, por fim, a tentação da ira e da vingança. De fato, Bento estava convencido de que, só depois de ter vencido estas tentações, ele teria podido dizer aos outros uma palavra útil para as suas situações de necessidade. E, assim, tendo a alma pacificada, estava em condições de controlar plenamente as pulsões do eu, para, deste modo, ser um criador de paz em seu redor. Só então decidiu fundar os seus primeiros mosteiros no vale do Anio, perto de Subiaco”.
“No ano de 529, Bento deixou Subiaco para se estabelecer em Monte Cassino. Alguns explicaram esta transferência como uma fuga das maquinações de um invejoso eclesiástico local. Mas esta tentativa de explicação revelou-se pouco convincente, dado que Bento não regressou para lá depois da morte repentina do mesmo (II Dial. 8). Na realidade, esta decisão impôs-se-lhe porque tinha entrado numa nova fase da sua maturação interior e da sua experiência monástica. Segundo Gregório Magno, o êxodo do vale remoto do Anio para Monte Cassino, uma altura que, dominando a vasta planície circunstante, se vê ao longe, reveste-se de um carácter simbólico: a vida monástica no escondimento tem uma sua razão de ser, mas um mosteiro tem também uma finalidade pública na vida da Igreja e da sociedade, deve dar visibilidade à fé como força de vida. De fato, quando, em 21 de março de 574, Bento concluiu a sua vida terrena, deixou com a sua Regra e com a família beneditina por ele fundada um patrimônio que deu, nos séculos passados e ainda hoje continua a dar, frutos em todo o mundo”.
Depois de discorrer sobre a vida do grande patriarca dos monges do Ocidente, importa recordar algo sobre a sua Regra, que o venerável Papa Pio XII também explanou em sua encíclica Fulgens radiatur, Fulgurante de luz, de 21 de março de 1947, especialmente em seus números 13 a 19. É, no entanto, uma vez mais, Bento XVI quem nos ajuda ao escrever o que segue: “Bento qualifica a Regra como ‘mínima, traçada só para o início’ (73,8); mas, na realidade, ela pode oferecer indicações úteis não só para os monges, mas também para todos os que procuram uma guia no seu caminho rumo a Deus. Pela sua ponderação, a sua humanidade e o seu discernimento entre o essencial e o secundário na vida espiritual, ele pôde manter a sua força iluminadora até hoje. Paulo VI, proclamando, em 24 de outubro de 1964, São Bento Padroeiro da Europa, pretendeu reconhecer a obra maravilhosa desempenhada pelo Santo mediante a Regra para a formação da civilização e da cultura europeia. Hoje a Europa, que acabou de sair de um século profundamente ferido por duas guerras mundiais e depois do desmoronamento das grandes ideologias que se revelaram como trágicas utopias, está em busca da própria identidade. Para criar uma unidade nova e duradoura, são sem dúvida importantes os instrumentos políticos, econômicos e jurídicos, mas é preciso também suscitar uma renovação ética e espiritual que se inspire nas raízes cristãs do Continente, porque de outra forma não se pode reconstruir a Europa. Sem esta linfa vital, o homem permanece exposto ao perigo de sucumbir à antiga tentação de se querer remir sozinho, utopia que, de formas diferentes, na Europa do século XX causou, como revelou o Papa João Paulo II, ‘um regresso sem precedentes ao tormento histórico da humanidade’ (Insegnamenti, XIII/1, 1990, p. 58). Procurando o verdadeiro progresso, ouvimos também hoje a Regra de São Bento como uma luz para o nosso caminho. O grande monge permanece um verdadeiro mestre em cuja escola podemos aprender a arte de viver o humanismo verdadeiro”.
Ainda, em 11 de julho de 2010, Bento XVI voltou a tratar, de forma breve, da Regra de São Bento, no Angelus, que ocorreu no Palácio Apostólico de Castel Gandolfo, residência de verão dos Papas nestes termos: “‘Escreveu uma Regra para os monges… reflexo de um magistério encarnado na sua pessoa: de fato, o santo não pôde de modo mais absoluto ensinar diversamente da forma como viveu’ (Ivi, II, XXXVI, cit., p. 208). O Papa Paulo VI proclamou São Bento Padroeiro da Europa, em 24 de outubro de 1964, reconhecendo a sua obra maravilhosa desempenhada para a formação da civilização europeia”.
Diríamos que estas palavras de Bento XVI servem também a cada um de nós aqui no Brasil a necessitarmos ardentemente dos valores eternos que a vida e a Regra de São Bento nos apontam. Sejamos-lhe sempre dóceis com a graça de Deus.