Os esqueletos de aço balançam feito coqueiros num vasto terreno de Mata Atlântica devastada. Pilhas de tijolos, montanhas de areia, caminhões basculantes, bandeirinhas coloridas para atrair clientes. As placas anunciam ao tráfego veloz da BR-101: ‘Alfa Parque: lotes a partir de 450 m², em frente à praia do Cururupe’, Ilhéus, sul da Bahia.
A sedução do anúncio não revela que no Cururupe ocorreu a Batalha dos Nadadores, em 1559, chacina de indígenas comandada por Mem de Sá. Em memória dos mártires, todo ano ocorre a ‘Caminhada dos Índios Tupinambá de Olivença em Memória dos Mártires do Massacre do Rio Cururupe’.
O Alfa Parque é um dos vários empreendimentos em execução na porção norte dos limites da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. Pouco depois do Alfa está a mineradora Guanabara, já incidente no território indígena, e a grande cratera aberta para a retirada de areia e demais minérios. A entrada da aldeia Tucum fica diante do enorme buraco, que forma um vale sem vida.
Na aldeia a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz (na foto, de óculos) , chegou em visita oficial e antes mesmo de ouvir os indígenas Tupinambá já pôde constatar uma das violações a que o povo está submetido. “Pelas minhas observações iniciais, nenhuma das recomendações foram atendidas”, disse a relatora aos Tupinambá da aldeia Tucum.
Victoria se refere às recomendações feitas pelo seu antecessor, James Anaya, então relator durante visita ao Brasil, em 2009. A vinda da relatora tem como objetivo checar se tais recomendações foram atendidas pelo governo brasileiro, fazer novas e produzir um relatório a ser destinado aos trabalhos da ONU.
Tarefa que a relatora deverá cumprir sobre fatos determinados. Além da degradação ambiental, Victoria conheceu os Tupinambá torturados por agentes da Polícia Federal, em 2008, cujos responsáveis não foram punidos, a família de Pinduca, indígena assassinado em 2014, e logo após ter saído do Mato Grosso do Sul, estado que visitou antes da Bahia, o tekoha – lugar onde se é – Kurusu Ambá, onde a relatora esteve, foi atacado por pistoleiros. Já em território baiano, a relatora foi informada que o indígena Isael Reginaldo Guarani e Kaiowá foi alvejado por oito tiros durante ataque de fazendeiros ao tekoha Ita Poty.
“Devo recomendar que seja instalada uma investigação nacional de violações aos povos indígenas. Depois de ter ouvido reclamações padrões e constantes, acho mesmo que é o caso de uma investigação”, disse Victoria. A relatora afirmou que pedirá ainda a investigação dos casos de assassinatos, mortes e prisões abusivas.
Situação decepcionante
Os Tupinambá foram ouvidos por Victoria Tauli-Corpuz. No sábado, 12, na aldeia Tucum; no domingo, 13, na aldeia Serra do Padeiro. Os indígenas entregaram documentos, dossiês e relataram o histórico de violações e violências. “O governo federal se nega a demarcar nosso território. Pra gente essa é uma das principais razões de tudo o que estamos sofrendo. A demarcação só depende da assinatura do ministro da Justiça”, explicou o cacique Ramon Tupinambá.
Com cerca de 80% do território ocupado pelos indígenas, num total de 47.305 mil hectares, conforme o relatório circunstanciado da Fundação Nacional do Índio (Funai), os outros 20% seguem nas mãos de interesses privados, caso da Mineradora Guanabara. A espoliação dos recursos naturais do território impacta diretamente a vida dos Tupinambá. A retirada de areia, por exemplo, acaba com o filtro natural da terra e seca as fontes de água.
A decisão tomada pelos indígenas para impedir a degradação é de retomar estas áreas. Em algumas situações os Tupinambá conseguiram manter a retomada; em outras, a Justiça mandou retirá-los. Foram inúmeras reintegrações de posse violentas. O Ministério Público Federal (MPF) conseguiu fechar três vezes a Mineradora Guanabara, mas a Justiça Federal reabriu a mineradora nas três ocasiões.
“Nas cidades que ficam ao redor do nosso território ninguém pode dizer que é índio não. Se disser, leva tapa na cara. A Funai está largada aos ratos, escorpiões e baratas. Escola e posto de saúde o governo diz que não pode construir aqui porque a terra não está demarcada. Sem demarcar, ficamos expostos a tudo o que é de ruim”, disse Jovanilda Tupinambá. A fala nervosa e emocionada desencadeou na indígena um derrame cerebral. Os primeiros socorros foram dados com a ajuda de Victoria Tauli-Corpuz, enfermeira de formação.
“A situação de discriminação e racismo no Brasil é muito decepcionante. O Brasil é percebido de forma muito boa internacionalmente, um país que fala sobre as várias leis avançadas, mas a realidade que vejo aqui me diz que existe outra história”, declarou Victoria aos indígenas.
Estado anti-indígena
Cacique Babau Tupinambá falou durante quase duas horas. Não houve quem conseguisse bocejar, porém. Com uma verve típica e tiradas engraçadas, Babau fez a relatora da ONU rir e se emocionar. Babau fez um panorama histórico desde o início da luta pela terra indígena, e lembrou de um dos momentos mais tensos a que foi submetido: quando policiais federais invadiram a sua casa e apontaram as armas para a cabeça de seu filho.
“Tupinambá é 80% Encantado e 20% gente, de carne e osso. Tudo isso que aconteceu nos fortaleceu porque a guerra fortalece o Tupinambá. Nós somos a essência da guerra. Não negociamos o nosso território. Os Encantados nos deram a missão de cuidar da criação, dos animais. Tupinambá faz guerra pra cuidar. Os pequenos produtores não tiramos daqui não, só fazendeiro. Vamos cuidar deles até o governo reassentar”, disse cacique Babau.
Victoria ouviu a torrente de violências e violações, intercaladas pelo Ser Tupinambá e pelo poder do riso afeito a este povo. “As questões levantadas pelo senhor expõem o Estado ridículo que viola os direitos indígenas. Lamento a dor que teve de passar. Caciques como o senhor persistem e sabem que estão fazendo a coisa certa. O seu jeito guerreiro diz que você quer o seu povo na terra ancestral”, disse a Babau a relatora da ONU.
Para ela os Estados-nações “foram construídos para promover os interesses dos poderosos, das elites. Desenvolveram programas antiéticos e com projetos contrários aos povos indígenas ou ao jeito que eles pretendem usar as terras que são suas por direito”. Victoria se mostrou contrária a forma como as reintegrações de posse ocorrem no Brasil. Durante a sua visita, duas foram despachadas pela Justiça Federal: uma, derrubada, contra o tekoha Taquara, no Mato Grosso do Sul, e outra contra a Terra Indígena Cumuruxatiba, do povo Pataxó, no extremo sul baiano, que pode ser executada a qualquer momento.
“Vocês também têm o direito de protestar e agir quando eles estão tentando tomar as suas terras. Eu cumprimento vocês pelo esforço da luta de retomada de seus territórios. Eu acredito que para muitos povos indígenas as retomadas são uma forma de fazer valer os direitos, porque o Estado não tem feito”, declarou Victoria.
A relatora da ONU afirmou que abarcará em seu relatório questões envolvendo as precariedades na saúde, educação e assistência social. “Eu ouvi claramente a mensagem que compartilharam comigo. Para mim fica bem claro que os direitos civis, econômicos, políticos e territoriais estão sendo violados. Vocês têm o direito de ter uma educação relevante, um sistema de saúde relevante e apropriado, e é claro que vocês também têm o direito de serem donos e controlar as suas terras e os recursos naturais”, pontuou.
Visita da ONU
Antes da Bahia, a relatora esteve no Mato Grosso do Sul e em audiências com as comissões de Direitos Humanos da Câmara e Senado federais. No domingo, 13, Victoria partiu para o Pará onde visitará a região de Altamira para conversar com os povos indígenas afetados pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
Na próxima quinta-feira, dia 17, a relatora da ONU concederá uma entrevista coletiva onde pretende relatar aos jornalistas o que viu e ouviu durante as visitas, além de entregar ao governo brasileiro uma versão resumida do relatório, que deverá ter sua versão aprofundada finalizada em setembro. “É preciso que a imprensa passe a falar sobre a verdade do que vem acontecendo no Brasil com os povos indígenas. Por isso a coletiva”, explicou Victoria Tauli-Corpuz.
Fonte: POM