Os fiéis batizados que querem se apresentar ao escrutínio público das urnas deve discernir bem sobre os caminhos a percorrer, propostas a apresentar e onde se afiliar.
A Congregação para a Doutrina da Fé publicou, em 24 de novembro de 2002, Festa de Jesus Cristo, Rei do Universo, a “Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política”, endereçada aos Bispos e ao Povo de Deus em geral, especialmente àqueles que se interessam por tomar parte na vida pública e política da sociedade.
Trata-se, evidentemente, de um Documento resumido que, como ele mesmo diz, deseja apenas relembrar, sem a pretensão de ser completo, alguns princípios próprios da consciência cristã, que inspiram o empenho social e político dos católicos nas sociedades democráticas.
Sua razão de ser, no entanto, é deveras oportuna, dado que, “nestes últimos tempos, não raras vezes sob a pressão dos acontecimentos, apareceram orientações ambíguas e posições discutíveis, que tornam oportuna a clarificação de aspectos e dimensões importantes da temática em questão”, ou seja, a participação do verdadeiro fiel católico na vida pública e política de seu país, qual sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5,13-14).
Daí, não ser em vão que a Nota doutrinal tem início lembrando que os cristãos, sempre, ao longo da história, tomaram, enquanto cristãos e cidadãos, parte na vida pública e política de suas nações, segundo lembra, já no século II, a Carta a Diogneto, 5.5, com as seguintes palavras: “Os cristãos residem em sua própria pátria, mas como residentes estrangeiros. Cumprem todos os deveres de cidadãos e suportam todas as suas obrigações, mas de tudo desprendidos […]. Obedecem às leis estabelecidas, e sua maneira de viver vai muito além das leis… Tão nobre é o posto que lhes foi por Deus outorgado que não lhes é permitido desertar”.
Em outras palavras: os cristãos têm consciência de que estão neste mundo, mas que não são dele (cf. Jo 15,19). São concidadãos dos santos (cf. Ef 2,19). No entanto, enquanto vivemos em sociedade, não nos furtamos à submissão às autoridades legítimas – salvo se prescrevem o que é contrário às exigências da ordem moral, aos direitos fundamentais das pessoas e aos ensinamentos do Evangelho (cf. Catecismo n. 2242) – nem à corresponsabilidade para com o bem comum, que exigem de nós o pagamento dos impostos, o exercício do direito ao voto, a defesa do país e a oração pelas autoridades (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2240).
Portanto, a política não é, nem deve ser uma atividade estranha aos cristãos, de modo que “a Igreja venera entre os seus Santos, diz a Nota, numerosos homens e mulheres que serviram a Deus através do seu generoso empenho nas atividades políticas e de governo. Entre eles, São Tomás Moro, proclamado Padroeiro dos Governantes e dos Políticos, que soube testemunhar até ao martírio a ‘dignidade inalienável da consciência’. E, embora sujeito a diversas formas de pressão psicológica, negou-se a qualquer compromisso e, sem abandonar ‘a constante fidelidade à autoridade e às legítimas instituições’ em que se distinguiu, afirmou com a sua vida e com a sua morte que ‘o homem não pode separar-se de Deus nem a política da moral’ (São João Paulo II, Carta Apost. Motu Proprio dada para a proclamação de São Tomás Moro, Padroeiro dos Governantes e dos Políticos, n. 1, AAS 93 (2001) 76-80)”.
Pois bem, se no século II a Carta a Diogneto já registrava a participação dos fiéis na vida social e política de suas comunidades, muito mais essa missão é exigida e até melhor propiciada nos nossos dias, quando há, na maioria dos países, ao menos na teoria, a “liberdade democrática” a propiciar aos cristãos, fiéis aos ensinamentos da Igreja, e aos não cristãos, sua presença nos centros decisórios da sociedade.
Daí ensinar o Concílio Vaticano II que “os fiéis leigos não podem de maneira nenhuma abdicar de participar na ‘política’, ou seja, na multíplice e variada ação econômica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover de forma orgânica e institucional o bem comum” (São João Paulo II, Exort. Apost. Christifideles laici, n. 42), que compreende a promoção e defesa de bens, como são a ordem pública e a paz, a liberdade e a igualdade, o respeito da vida humana e do ambiente, a justiça, a solidariedade etc.
Há aqui, no entanto, um paradoxo muito bem lembrado pelo Documento da Santa Sé: se, por um lado, a humanidade tem seus ganhos nos vários segmentos, por outro, apresenta graves perigos como aqueles propostos por certas tendências culturais que tentam orientar as legislações e, por conseguinte, os comportamentos das futuras gerações. Fundado nesta falsa liberdade, tenta-se sufocar a Lei Natural e, com ela, a presença cristã nas instituições, em nome de uma “tese relativista, segundo a qual não existiria uma norma moral, radicada na própria natureza do ser humano e a cujo ditame deva submeter-se toda a concepção do homem, do bem comum e do Estado”, em favor de uma liberdade aparente, mas que, no fundo, é ditatorial.
Sim, ditatorial, pois – conforme a Nota doutrinal – “invocando, erroneamente, o valor da tolerância, pede-se a uma boa parte dos cidadãos – entre eles, aos católicos – que renunciem a contribuir para a vida social e política dos próprios Países, segundo o conceito da pessoa e do bem comum que consideram humanamente verdadeiro e justo, a realizar, através dos meios lícitos, que o ordenamento jurídico democrático põe, de forma igual, à disposição de todos os membros da comunidade política”.
Caímos, assim, nas mãos de um Estado que, embora se diga laico e, portanto, aberto à pluralidade de pensamento, é, em essência, laicista, logo, defensor de uma ideologia bem definida contrária à Religião e contra os que a professam.
Tem-se, desse modo, mais ou menos o seguinte “diálogo” do cidadão que se arvora em “liberal” para com o cidadão religioso: “Como você tem uma convicção religiosa, não pode impô-la a mim. Mas eu, que sou agnóstico ou ateu, posso impor a minha a você. Nós divergimos, mas quem tem razão sou eu, que tenho a mente livre e não atada por dogmas religiosos. Trata-se de um estranho Estado de Direito, dito democrático e pluralista, no qual somente os ateus e agnósticos têm o direito de falar e modelar as leis segundo seus princípios” (Pe. David. Francisquini. Catecismo contra o aborto. São Paulo: Artpress, 2009, p. 35).
Como se vê, tal modo de pensar, muito presente na sociedade de nossos dias, pode fazer com que o político católico seja considerado um cidadão de segunda classe por não pactuar com o laicismo reinante sob capa de “liberdade de pensamento”. Afinal, “se o cristão é obrigado a ‘admitir a legítima multiplicidade e diversidade das opções temporais’ (Concílio Vaticano II, Const. Past. Gaudium et spes, n. 76), é igualmente chamado a discordar de uma concepção do pluralismo em chave de relativismo moral, nociva à própria vida democrática, que tem necessidade de bases verdadeiras e sólidas, ou seja, de princípios éticos que, por sua natureza e função de fundamento da vida social, não são ‘negociáveis’”.
Em suma: o fiel católico sabe que nos assuntos temporais a Igreja admite muitas saídas possíveis para um mesmo problema. É o que chamamos de pluralismo de opiniões. No entanto, nenhuma dessas saídas possíveis pode chocar-se com os princípios éticos que norteiam a Doutrina Social da Igreja, cuja base está na Lei Natural Moral, compreensível pela razão a todos os homens, e, para os que creem, também na Revelação Divina, contida na Escritura e na Tradição, interpretada pelo Magistério da Igreja.
Eis, pois, um ponto complexo que merece ser aprofundado pelo povo de Deus em geral, segundo deseja a Nota doutrinal da Santa Sé.