Marina Massismi é professora titular de História da Psicologia da USP – campus RIbeirão Preto e Ana Lydia Sawaya é professora titular de Fisiologia da UNIFESP – campus São Paulo e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
“Perde-se o Brasil, Senhor, porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm buscar nossos bens”
As palavras de Pe. Antonio Vieira, ditas ao Vice-Rei Marques de Montalvão, possuem uma impressionante atualidade. Na continuidade, Vieira define a origem do mal que assombra o Brasil: a atitude de “tomar o alheio”. O alheio é o bem comum que não pode ser instrumentalizado em benefício de um único indivíduo. E usa a analogia da medicina do corpo para definir este mal como uma doença que acomete o coração da república e cria aquela desordem do corpo social e político que por um lado leva à impunidade (faltando a justiça punitiva) e por outro à injustiça (faltando a justiça distributiva).
“El-rei manda-os tomar Pernambuco e eles contentam-se com o tomar. Este tomar o alheio é a origem da doença. Toma nesta terra o ministro da justiça? Sim, toma. Toma o ministro da república? Sim, toma. Toma o ministro da fazenda? Sim toma. Toma o ministro do Estado? Sim, toma. E como tantos sintomas lhe sobrevém ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao coração, que são as partes mais vitais, e todos os atrativos e contrativos do dinheiro, que é o nervo dos exércitos e das repúblicas, fica tomado todo o corpo, e tolhido de pés e mãos, sem haver mão esquerda que castigue, nem mão direita que premeie; e faltando a justiça punitiva para expelir os humores nocivos, e a distributiva para alentar e alimentar o sujeito, sangrando-o por outra parte os tributos em todas as veias, milagre é que não tenha expirado. (Bahia, 1641)
Aqui está um diagnóstico de como os males atuais do Brasil remetem a uma raiz longínqua em que as relações de poder e os vínculos sociais e econômicos entre os homens se configuraram numa forma “doentia”. Vieira retrata o estabelecer-se de uma relação predatória entre os homens, e entre os homens e as coisas, relação que se limita a “tomar o alheio” fora de qualquer vivência de interação, conhecimento, afeição. Em síntese: sem labor, sem ação verdadeiramente humana. Diante desta alteridade (significada pelo “alheio”), “eles contentam-se com o tomar”. E, com efeito, num sistema econômico baseado na mão de obra escrava, não poderia surgir uma cultura de amor ao trabalho.
Como bem explica Vieira, a doença não está curada e continua agindo e se espalhando no corpo…. E então, por que maravilhar-se de todo o sistema de corrupção endêmico que a Lava Jato está evidenciando? Pela falta de uma cultura do trabalho, consolidada ao longo de séculos, o Brasil carrega ainda hoje uma ferida profunda que continua sangrando: os fenômenos atuais de corrupção e a pilhagem política (em todos os níveis do funcionalismo), são o sinal grave de sua permanência.
O trabalho é inerente ao ser humano e não uma opção. Quem dispensa o trabalho, perde em humanidade; quem usa o trabalho do outro, omite-se do próprio empenho com o real, da possibilidade de deixar seus traços na história e de criar. O trabalho não é tomar o alheio, mas é cuidar do alheio, ou seja, de uma parte da realidade ao nosso alcance, como quem trabalha em casa cuida para que todos possam ali viver com dignidade.
Por isso, o amor ao próprio trabalho e a posse do significado e do valor daquilo que se realiza com o próprio trabalho, está na base da mudança que o Brasil necessita.
Fonte: Núcleo Fé e Cultura