Enraizada na experiência de um povo nômade e pastoril, a figura do Pastor aparece frequentemente na Bíblia para se referir a Deus. Ele revela-se como aquele que cuida de nós e de todas as suas criaturas, rebanho amado que lhe pertence.
Ninguém está mais interessado em nós e pela Criação do que o próprio Deus.
Podemos dizer com toda verdade: “O Senhor é meu Pastor, nada me falta… Ainda que eu passe pelo vale da morte, nada
temerei, porque o Senhor vai comigo… Ele me guia por bons caminhos e me fará morar em sua Casa por anos sem fim.” (Sl 22)
Este salmo nos faz transcender nossa problemática existencial, ao ponto de poder confessar: “Sim, felicidade e amor me acompanharão todos os dias da minha vida”. Este é o nosso único e verdadeiro otimismo.
Na antiga mitologia grega, a entidade Cuidado mostrava a figura do Pastor, que mais tarde seria revelada ao povo de Israel. O deus do céu, Zeus, pleiteava contra a deusa da terra, Gea, a propriedade sobre o ser humano. Não chegando a um acordo, interveio Cuidado para dirimir o conflito dizendo: Eu assumirei o compromisso de cuidar do Homem até o dia da sua morte. Nesse dia, sua alma será de Zeus e o seu corpo de Gea.
Heidegger em “Ser e Tempo” (1927) serviu-se deste mito, embora de maneira negativa e niilista, para mostrar a tragédia do ser humano, existencialmente ” atirado” (dasein) neste mundo, sem pastor e dono, cujo único horizonte é a morte, “sua última possibilidade de ser”. Albert Camus curtiu esta mesma tragédia, lamentando: “Para um homem como eu, sem pastor e dono, quão trágica é a vida”.
Emil Cioran em “Janela ao Nada” (“Ventana a la nada”),
mais recentemente publicado, diz: “Só a mera possibilidade de suicídio, janela para a nada, me mantém vivo”. Que sós ficam os que morrem por dentro ou ficam no inferno da solidão sem ter Deus como seu Pastor!…
A grande tarefa da filosofia, mais do que saber sobre o que são as coisas, consiste em encontrar alguma resposta racional à nossa vida, em si mesma problemática.
A História do pensamento, ou filosofia, mostra, pela multiplicidade de respostas que, humanamente, não temos a última fórmula que possa dar explicação e sentido à nossa existência. Nossa razão a postula, mas toda possível teoria ou explicação fica obscurecida pelo problema insolúvel da morte e, mais ainda, pelo sofrimento, muro onde a razão detém seu pensar, deixando nosso problema existencial em aberto até o Fim dos Tempos. Entre outras coisas, a razão tentou explicar o porquê do ser e da vida, construíndo ideologicamente várias teorias:
O ACASO: Tudo é fruto do azar (ou da sorte, nde). O princípio de indeterminação rege tudo quanto existe. Tudo pode acontecer sem qualquer explicação racional. Não existe relação entre causa e efeito, fundamento de todo saber científico e filosófico. Não há ordem ou plano estabelecido. Tudo carece de finalidade. Só cabe à mitológica e arbitrária “deusa Fortuna” como aleatória esperança. Não são poucos os que professaram e continuam a professar esta filosofia de vida.
O FATALISMO: Oposta à teoria anterior, propõe que tudo acontece fatal e necessariamente. Tudo está predeterminado. Não existe liberdade. Esta é mera ilusão. Resta-nos a resignação e a aceitação. A filosofia estóica (sec. IV a.C.) inspirou-se nesta maneira de entender a realidade, inclusive dela se nutriu, sob alguns aspectos, o cristianimo. A teoria da predestinação, segundo a qual, fomos destinados por Deus antes da Criação do mundo para a Vida Eterna. Isto seria um feliz fatalismo para nós, os que nascemos em um vale de lágrimas, em nome da liberdade, que nos constitui como humanos, mas esta filosofia foi obscurecida por muitos cristãos, entre eles os calvinistas, que afirmam não só sermos predestinados para o Céu como também sermos condenados ao inferno, sem saber ao certo quem pertence a cada um destes reinos. Esta dúvida existencial é mais trágica do que o acaso.
INDIVIDUALISMO LIBERAL: Cada indivíduo cria seu mundo e seu destino. A modernidade nutre-se deste princípio. O indivíduo é o único absoluto, com poder de contestar tudo o estabelecido. Como o rei Luiz XIV, pode dizer: “O Estado sou eu”. Seu existencial é o conflito para defender seu próprio território ou apropriar-se do território alheio.Esta seria a teoria que o Dr. Kepper de São Paulo, chama “teomania” (querer ser deus), raiz de todo desequilíbrio mental. De alguma maneira, todos participamos desta filosofia de vida, inclusive religiosamente, colocando Deus não como pastor e senhor, mas como mero servo a fazer nossa vontade.
SOCIOLOGISMO: O sujeito da História e da existência não é o indivíduo, mas a sociedade, espécie de macroorganismo, regido pelo império da lei, dos costumes e da cultura, administrados pelo poder político. O globalismo inspira-se nesta teoria e pretende reduzir a pessoa a mero dígito estatístico. Magnatas do chamado Clube de Davos planejam um mundo no qual seremos felizes, despossuídos das coisas e de nós mesmos. Infelizmente a maior parte da população mundial é gregária, como ovelhas de pastores mercenários indiferentes e, muitas vezes, lobos do povo. Viver por viver ou simplesmente sobreviver, é tudo quanto podemos saber. Este sociologismo despersonalizante pode também se tornar presente na Igreja quando deixa de ser verdadeira comunidade de pessoas irmanadas pela Fé.
PERSONALISMO: É a via intermédia entre o individualismo e sociologismo. O ser humano é existencialmente relação. Somos os outros. Mas o sonho de viver em paz e comunhão com os outros é uma utopia que nos supera humanamente. Contra este idílico humanismo, o profeta Jeremias (17,5,) diz: “Maldito o homem que confia em outro homem”. O Comunismo e muitas tentativas fraternas ateias mostraram até nossos dias que todo humanismo ateu é um trágico humanismo.
CRISTIANISMO: Não somos com os outros mas em Cristo. Só Ele nos torna verdadeiramente humanos e fraternos e também pessoas livres, porque Nele somos filhos de um mesmo Pai. Sem esta convicção existencial, que nos transcende, toda possível teoria filosófica nos deixa numa interminável noite, como confessou Nietzsche ao proclamar a morte de Deus. Cristo desafiou todas as filosofias e crenças dizendo: “Eu sou a luz do mundo e da vida”, único sol sem ocaso que dissipa toda treva, ainda que ela, provisoriamente, por algumas horas, se oculte nas nuvens de nossos sofrimentos, pecados e da morte. Ele é também o Bom Pastor a guiar e cuidar de nós no meio de tantos perigos e males que nos afligem na presente condição humana. Ele nos garante um final feliz nesta aventura de cada pessoa e das gerações. Esta é a grande diferença do resto das religiões. Em Cristo, Deus vem a nós pessoalmente para nos levar consigo ao seu Reino. Nos outros credos, Deus não é Pastor, nem Pai, mas juiz a premiar ou punir o homem conforme suas obras. O Deus das religiões é um Deus de temor que, como afirmou Plutarco, seria melhor não existir.
“ASSIM DIZ O SENHOR: EU MESMO REUNIREI AS MINHAS OVELHAS DISPERSAS… E NENHUMA DELAS SE PERDERÁ.” (Jer. 23,1-6)
O profeta Jeremias denuncia no século VI a.C. a perniciosa governança do reis de Judá. Nada de novo até os nossos dias. Contra este mal sócio-político inerente ao ser humano, Cristo alertou seus discípulos: “Os que exercem o poder neste mundo dominam e oprimem seu povo. Entre vocês não será assim. Aquele que aspirar ser superior a outro, seja vosso servidor.” (Mt.20,25)
Jesus se autoproclamou como único, verdadeiro e Bom Pastor (Jo.10) qualificando os outros de assaltantes e mercenários. De fato, só Cristo nos pode dar e garantir a vida.
A profecia de Jeremias será cumprida no fim dos tempos, quando “haverá um só Pastor e um só rebanho”, mas cada um de nós pode tornar presente este fim da História, acreditando que não está só, “atirado” e abandonado neste mundo de tantos perigos, dores, problemas e mesmo pecados. Os chamados 7G, agora 20G, colégio das nações, simulando cuidar dos povos, deixam um terço da humanidade excluídos do banquete da vida e um outro terço sem direito a ver a luz, ceifados no seio materno.
Hobbes (sec.XVII) disse: “o homem é lobo para o homem”. De fato, nada e ninguém fora de Cristo pode ser pastor de nossas vidas.
Por estes dias o parlamento Europeu declarou o aborto como um direito. Se matar é um direito, o ser humano nasce já morto. Se o aborto é direito, o médico, que jurou cuidar da vida das pessoas, é obrigado a matar para cumprir a lei da morte. A eutanasia legaliza igualmente o suicidio. Há outros pastores assassinos piores ainda contra os quais Jesus nos alertou dizendo: “Não temam aqueles que matam vosso corpo mas não podem matar vossa alma. Temam a estes”. Num mundo em que cada dia mais expulsamos Deus, nosso Pastor, de nossos lares, escolas, das ciências, do trabalho e da vida nos convertemos em lobos predadores, uns dos outros.
“EM CRISTO, TODOS, JUDEUS E GENTIOS, NUM SÓ ESPÍRITO DE VIDA,TEMOS ACESSO A DEUS PAI. ” (Ef.2,13-18)
Cristo é o grande “mutante” (genes diferentes) que permite a verdadeira evolução, pela qual nosy e o universo somos divinizados. “A Vida, morte e a Ressurreição de Cristo, disse São Máximo, o Confessor (sec.VII) ,
são acontecimentos cósmicos”.
A Encarnação de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré diviniza a própria matéria, afirma Teilhard de Chardin. Em Cristo, toda a criação torna-se seu corpo. São Paulo usa o termo “recapitular”, Cristo é a nossa cabeça e a do universo, vivificados por um só e mesmo Espírito de vida, que nos une a Deus. Este mistério que nos parece mentira só o podemos perceber pela Fé, que deve se tornar mentalidade em nós e não mero ato de confissão. Fomos educados moralmente a praticarmos o mandamento do amor, resumo de toda lei ou dever, mas penso que se nos tivessem incutido um espírito de unidade e
comunhão, o mesmo amor deixaria de ser mandamento para se tornar necessidade vital. Somos, vivemos e existimos em Cristo e, com Cristo, em Deus.
O “creio na Comunhão dos santos” abrange a comunhão de toda a Criação com Deus. A fraternidade que São Francisco percebeu para com todas as criaturas revela esta comunhão universal.
Nós, católicos, demos o sublime nome de “Comunhão” ao rito de recebermos Cristo na Eucaristia. Pena que, neste grande sacramento de nossa Fé, ainda não descobrimos a unidade e a comunhão com Deus, com a humanidade e com toda a Criação.
Santo Agostinho não foi muito feliz nos seus Solilóquios quando disse: “Eu só quero saber de Deus e da minha alma”. Por isso justificou a existência do inferno, absoluta diabólica separação de Deus de muitas das suas Criaturas, como veremos à continuação. Uma pessoa que apenas pensa na sua própria salvação, sem os outros, jamais saberá neste mundo que, de fato, Deus o salvou em Cristo.
“UMA MULTIDÃO SEGUIA A JESUS, E ELE FICOU TOMADO DE COMPAIXÃO, PORQUE ESTAVAM COMO OVELHAS SEM PASTOR.” Mc.6,30-34)
Em três momentos Jesus emprega o termo compaixão nos Evangelhos, ligado ao sentimento humano.
Em Mt.15,32, contemplando o povo faminto. Em Mc.5,19, após curar uma pessoa possuída pelo demônio, e no relato de hoje, diante de uma multidão abandonada à sua sorte, como ovelhas sem pastor. Sem palavras, este sentimento de compaixão de Jesus, até às lágrimas, manifestou após a morte de seu amigo Lázaro (Jn.11) .
A compaixão tem na Biblia um significado diferente de misericórdia. Esta, (rahamim) alude às entranhas maternas que recriam o ser e a vida perdida pelo pecado. A misericórdia é um atributo exclusivo de Deus, pois só Ele pode criar e dar vida. Ela é objeto fundamental da nossa Fé e esperança de salvação. É o “plus” do amor de Deus que abraça seus inimigos e vence o pecado e a morte. Mas Deus é também compassivo, sofre conosco nossas dores, doenças, angústias e misérias. Deus nos comunicou esse sentimento de compaixão que, segundo o Dalai Lama, é a maior virtude humana que nos preserva do próprio extermínio. Sem um mínimo de compaixão , seríamos de fato lobos uns aos outros. Um Deus compassivo, entretanto, questiona Sua existência. Se Ele é todo poderoso e bom e se compadece de nós, por que nos deixa sofrer? O poeta espanhol, exilado no
México, León Felipe (+1968) justificava por essa razão seu ateísmo, dizendo: “Partirei deste mundo sem saber o porquê de uma lágrima. Por isso, quero que ninguém me desperte do sono da morte”. O sofrimento, de fato, é o problema limite da nossa razão. Até para a morte poderíamos dar uma explicação, mas para o
sofrimento não.
Também a Fé não encontra uma justificação racional, como pretendem as religiões dar.
Santo Anselmo (sec.XI) nos legou a Teoria da Satisfação, na qual até nossos dias fomos educados como católicos, justificando religiosamente o sofrimento como a maneira de satisfazer à justiça de Deus lesada pelos nossos pecados. Como nossa dívida para com Deus era infinita, teve o mesmo Deus de se tornar homem e pagar ao Pai com seus sofrimentos na morte de cruz. Essa maneira de pensar é absolutamente anticristã e antievangélica, obscurecendo a graça de Deus. Santo Agostinho foi mais longe, justificando a existência do inferno porque Deus carecia de sentimentos de compaixão. A dor e o sofrimento dos condenados não lhe afetam. Mas o que é pior, também nós careceremos desse sentimento que nos humaniza em Cristo.
Negar a Deus, Sua Misericórdia e Compaixão é um insulto ou blasfêmia contra o Espírito Santo.
Porque Deus é compassivo, temos certeza de que o sofrimento da vida presente é provisório, e porque Ele é misericordioso, temos por certa uma vida nova, eterna e gloriosa com Deus. Ambos atributos se complementam. Cristo limitou-se a interpretar o sofrimento como caminho necessário para nossa Salvação. Só no fim desta vida entenderemos este mistério vedado à nossa razão.
No século III d.C. , o filósofo Plotino deu uma explicação mais “racional” ao sofrimento do que o
próprio Santo Anselmo. Plotino concebia a criação como emanação do UNO. À maneira de uma estrela que perde seu fulgor , à medida que se distancia do seu foco, até se perder na absoluta escuridão da matéria, também a bondade de Deus desvanece-se até se perder no abismo do nada ou do inferno. Para isso não acontecer, todas as criaturas, atraídas irresistivelmente pelo UNO, que seria Deus, empreenderam viagem de retorno. Nós cristãos, vemos mais lúcida esta explicação do mal e a vitória sobre ele. Nós e o universo estamos voltando para Deus, sendo Cristo o caminho e a Salvação. “Viemos de Deus e a Deus voltamos” é a melhor tradução da nossa existência. Nunca deveríamos ter mudado as palavras do Credo: “Creio em Jesus Cristo que desceu aos infernos” e não à mansão dos mortos. Ao cemitério todos podemos descer, mas ao inferno, somente Deus porque Ele é compassivo e também misericordioso, cumprindo Sua missão de Pastor que busca a ovelha perdida e ferida e a traz ao seu rebanho, o Reino de Deus. Só um Deus compassivo pode ser crucificado, e só um Deus misericordioso, ser o Criador e Salvador de todos. Para quem busca uma fórmula ou filosofia de vida, nada mais sublime e salutar do que repetir a toda hora:
“O SENHOR É MEU PASTOR, NADA ME FALTA. ELE ME CONDUZ POR BONS CAMINHOS. AINDA QUE PASSE PELO VALE DA MORTE, NADA TEMEREI PORQUE ELE VAI COMIGO. E HABITAREI NA CASA DE DEUS POR ANOS SEM FIM”.
Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)
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