Muitos mistérios rodeiam o acontecimento do nascimento de Jesus: quanto é lenda e quanto é história?
Autor do livro “Jésus et Marie-Madeleine” (Perrin), Roland Hureaux faz uma leitura histórica da vida do Messias, iluminado por seu conhecimento do primeiro século d.C. e seu contexto social e político. Para ele, uma das provas mais fortes da historicidade dos Evangelhos é seu realismo na descrição do comportamento dos personagens da época.
Aleteia: Sua abordagem é histórica. Ao contrário de outros biógrafos de Jesus, você dá grande importância à infância de Jesus. Por que você faz isso?
Roland Hureaux: Quando falamos de uma abordagem histórica de Jesus, muitas pessoas imaginam que você vai fazer um trabalho incansável de desconstrução. Curiosamente, se você trabalha na Guerra Gálica, ninguém espera que você desconstrua o testemunho de Júlio César. Parti do fato de que os autores dos quatro Evangelhos, nossa única fonte, eram judeus escrupulosos, conhecendo o nono mandamento: “Não dirás falso testemunho”, e que, portanto, o testemunho deles deve ser levado a sério. É difícil argumentar que os chamados Evangelhos da infância (Mateus e Lucas) colocam mais problemas de credibilidade do que aqueles relacionados à sua vida adulta. Lucas diz que ele fez sua pesquisa. De quem? Antes de mais nada, pode-se pensar, Maria que “guardava todas as suas memórias fielmente em seu coração”, nós diríamos “em sua memória”.
Qual é a importância desta infância junto à mensagem central dos Evangelhos (as Bem-aventuranças, as parábolas, etc.)?
Maria pronuncia o Magnificat, que prefigura os anúncios da vida pública mesmo antes do nascimento de Jesus. É em grande parte uma “colagem” do Antigo Testamento. A aparição de Jesus no palco público dá origem a um grande debate: este é o Messias? O debate é sobre suas origens. Acredita-se que ele tenha nascido na Galiléia, portanto não poderia ser o Messias, pois, segundo o profeta Miquéias, ele deve ter nascido em Belém, na Judéia.
Há alguma evidência do nascimento de Jesus fora do cristianismo?
Não. Vários séculos depois, o Alcorão relata o nascimento de Jesus. Ele nasceu sob uma palmeira, o que não é contraditório: a palmeira, como o curral, implica em um lugar de rega. Os militantes que perseguem os presépios certamente não sabem que o nascimento de Jesus é também um acontecimento para os muçulmanos.
Alguns suspeitam que o nascimento em Belém pode ter sido uma adição posterior para se encaixar na profecia.
Se era uma questão de confirmar o caráter real e, portanto, messiânico de Jesus, por que teriam inventado esta história de um presépio num redil, um lugar que deixo para vocês imaginarem, frio, úmido e malcheiroso? E acima de tudo, o anúncio foi feito aos pastores, uma profissão de má reputação, à margem da cidade e, portanto, em contato com tudo o que era problemático: ladrões, muito presentes nos Evangelhos, marginalizados de todo tipo. No ano 6, cinco irmãos pastores fomentaram uma revolta contra os romanos; seu líder, Athronges, fez-se rei; eles foram impiedosamente esmagados. Todos nós conhecemos o alto valor simbólico deste humilde nascimento, mas acho difícil acreditar que ele tenha sido inventado.
E os reis magos?
Lembro-lhes que no Evangelho de Mateus, o único a mencioná-los, eles não são nem reis nem três. A Judéia era uma rota de trânsito entre a Mesopotâmia e o Egito. Aquela grande gente que passou por ali não era surpreendente. Eles provavelmente vieram da Pérsia, onde a casta dos magos era poderosa, talvez fossem judeus da deportação. Os primeiros autores cristãos se perguntavam por que Maria os recebeu sozinha quando os pastores viram Maria com José. A profecia da vinda de uma pessoa extraordinária, nascida de uma Virgem, era conhecida em todo o Oriente. Se os magos tivessem encontrado José com Maria, eles não teriam tido algumas dúvidas?
E o burro e o boi?
Esta lenda piedosa vem de Isaías (1, 3). Os estudiosos assumiram que o burro era usado para transportar Maria e que o boi representava o imposto que a santa família teria que pagar. Para o Censo era principalmente uma operação tributária. A classe à qual José pertencia era a mais tributada. Os mais ricos escaparam, como muitas vezes acontece, do imposto. Os pobres, que eram muito numerosos, talvez metade da população, não podiam pagar nada; isso deixava a classe média trabalhadora, à qual José pertencia, esmagada pelos impostos.
Quando nasceu Jesus?
Antes da morte de Herodes, sem dúvida. Herodes morreu por volta da primavera de 4 aC. Jesus teria nascido um pouco antes. As tradições cristãs mais antigas deram este nascimento no dia da Epifania, ou seja, no dia 6 de janeiro do ano 4 aC.
Será que Herodes existiu mesmo?
Naturalmente, ele foi um personagem importante que reinou por 40 anos sobre os judeus, sob o protetorado romano. Quando jovem, ele foi até cortejado por Cleópatra, segundo Flávio Josefo, o único historiador não cristão da época. Ele tinha tido três de seus filhos, uma de suas esposas e tudo o que restava da dinastia anterior, a dos Macabeus, assassinados. Dizer-lhe que uma criança de uma dinastia mais antiga e ainda mais prestigiosa, a de Davi, foi relatada como estando nas proximidades, só poderia preocupá-lo. Quer fosse ou não um herdeiro genuíno, os insurgentes poderiam reivindicá-lo. Para ele, este era um perigo mortal. O chamado Massacre dos Inocentes é uma reação política muito provável. Segundo um falecido autor latino, o imperador Augusto soube disso e ficou indignado.
Também se pergunta sobre o Censo de Quirino, que não é encontrado nos anais nesta data.
É possível que houvesse dois, um conhecido em 6 dC, o outro mais antigo, de 5 ou 4 aC.
E a estrela?
Cuidado! Em seu livro sobre a infância de Jesus, Bento XVI aponta que um observador chinês teria visto um objeto celestial incomum em torno de 4 aC. O Evangelho não diz que se trata de um fenômeno natural.
Como era o mundo na época do nascimento de Jesus?
Estava muito conturbada, em transição. A “paz romana” estava sendo estabelecida. Pela primeira vez, as pessoas poderiam passar pela vida sem ver a guerra. Mas a sociedade foi perturbada pelo que parecia ser a primeira globalização: o poder do imperador estava longe, as diferenças de riqueza estavam aumentando, a tributação estava esmagando as pessoas, a pobreza e os criminosos estavam se espalhando. As populações, perturbadas, esperavam eventos sem precedentes.
Entrevista de Philippe de Saint-Germain