Dom Antonio Luiz Catelan – bispo auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro
Joseph Ratzinger / Bento XVI, um dos maiores teólogos cristãos, deixa um legado teológico e magisterial de referência para a teologia católica. Sua obra teológica, que, reunida na edição oficial, soma vinte e um grossos tomos, o qualifica entre os maiores teólogos da Igreja de todos os tempos. Seu rico Magistério se destaca pela clareza, profundidade e sensibilidade espiritual. A relação com a confissão batismal da fé confere à sua teologia a característica principal. Primeira e fundamental referência de sua ampla produção teológica e de seu profundo magistério, a profissão batismal oferece contexto, forma e conteúdo a seu ensinamento.
A “graça de Cristo”, comunicada no batismo, segundo o Teólogo Papa, modelam a vida e o pensamento do cristão. A referência à pessoa Jesus Cristo é o núcleo do pensamento teológico de Joseph Ratzinger e de seu trabalho pastoral, como o é também de seu pontificado e de toda a sua vida. O encontro com Cristo, a conversão, o discipulado e a relação de amizade com Ele vêm antes de tudo e a tudo conferem a marca específica. Nada antepor a Seu amor, segundo a Regra beneditina, pode ser considerado uma divisa da vida e da missão de Joseph Ratzinger / Bento XVI. Segundo seu constante ensino, isso é o que está no início do cristianismo e é isso sua essência. Continuamente, J. Ratzinger insiste que ser cristão é aderir a Cristo e dele viver; estar a serviço dele, permanentemente, e a Ele consagrar toda a existência. Em sua primeira audiência geral, pedia a Deus “manter firme a centralidade de Cristo na nossa existência. Que ele esteja sempre no primeiro lugar nos nossos pensamentos e em cada uma das nossas atividades!” (27 de abril de 2005).
Participando do Mistério Pascal de Cristo, no qual é mergulhado espiritualmente, na medida em quem seu corpo é sepultado no lavacro batismal, o cristão, com Cristo, participa da comunhão da Trindade. A busca da face de Deus e da comunhão com Ele passa a ser a dinâmica fundamental de sua vida. A noção teológica de comunhão caracteriza também a teologia e o magistério de Bento XVI de modo central. O conjunto de sua obra teológica pode justamente ser caracterizado como uma teologia sacramental da comunhão. Suas meditações teológicas sobre a cristologia e sobre o Sábado Santo, em grande medida, põem as bases para os desenvolvimentos teológicos a respeito de temas atuais e candentes na Igreja e no mundo. Em Cristo se dá o encontro com Deus. Ele é, em pessoa, o sacramento originário da comunhão.
O encontro batismal com Cristo se dá na Igreja. Nela Cristo está presente e vivo, nela se deixa encontrar e acolhe a todos, insere em seu mistério e confere à vida novos e insuspeitados horizontes. A Igreja, corpo de Cristo, é sujeito vivo, que cresce e se desenvolve na história. Nela o conhecimento de Jesus Cristo não é simples exercício de estudo a respeito de um personagem. Nela se dá o encontro, ao mesmo tempo pessoal e comunitário, com aquele que nela está presente e atuante. Como no Batismo, a Igreja é que acolhe o catecúmeno, interroga-lhe, marca seu corpo e sua alma com o sinal da Cruz, unge-o e o marca com o selo do Espírito, mergulha-o no Mistério Pascal de Cristo, transmite-lhe sua fé e o nutre com o Corpo de seu Esposo e Senhor. A marca eclesial é característica igualmente central na teologia de Joseph Ratzinger e no magistério de Bento XVI.
O Batismo se dá em contexto dialógico. São três interrogações que levam o catecúmeno à consciência do mal e do que lhe poderia vir a descaracterizar como cristão e outras três lhe levam a professar a fé recebida. Assim também, o pensar a fé e o transmiti-la se dá, para Joseph Ratzinger, em contexto dialógico. Fazer teologia em companhia com os grandes teólogos da história e em diálogo com o seu tempo, é o estilo do teólogo bávaro. S. Agostinho e S. Boaventura são duas referências maiores. Mas um simples olhar no índice de autores citados em seus escritos revelam com quanto respeito e liberdade ele se posiciona entre os teólogos e teólogas e com eles dialoga. Às vezes discordando com franqueza, outras, assumindo com respeito sua contribuição. Não só com teólogos ele dialogou. São célebres seus debates com J. Habermas e com P. F. d’Arcais. Já como emérito, seu carteio com P. Odifreddi mostra que mesmo no recolhimento monástico que escolheu, o diálogo com nosso tempo não cessou. A Ladainha batismal de todos os santos pode ser tomada como um ícone de seu modo de fazer teologia.
O contexto e o rigor acadêmico não limitam sua teologia, embora a caracterizem cientificamente. Fundamentalmente, a teologia, para J. Ratzinger, é parte da missão eclesial de transmitir a fé e de ensinar a vive-la coerentemente. Para ele, pensar a fé com rigor é exigência teologal e antropológica. Teologal, porque Deus quer uma relação humana livre conosco. Antropológica, porque a racionalidade é parte integrante de um ato humanamente integral. A irracionalidade não faz parte do ato de fé, e não é digna nem de Deus e nem do homem, como Bento XVI recordou no célebre discurso universitário em Regensburg. A missão da Igreja é transmitir a fé em todos os contextos e em todos os tempos. A essa missão a teologia serve humilde, mas indispensavelmente. A palavra de que a Igreja necessita para evangelizar, nasce de uma relação vital com a fé e se expressa numa forma renovada que brota dessa relação. Assim, a fé recebida da Igreja, continha sendo a “razão de nossa alegria, em Cristo Jesus, Nosso Senhor”. A teologia de J. Ratzinger é, a pleno título, uma teologia missionária.
Menção especial merece a carta apostólica Porta Fidei. Texto breve mas de altíssima densidade, com o qual, proclamando um Ano da Fé, Bento XVI quis ajudar a Igreja a confessar a fé plenamente e com renovada convicção. E isso para ajudar os contemporâneos a, como a Samaritana, encontrar-se com Cristo e a beber de sua fonte, pela fé. Em continuidade com essa intenção, em sua última audiência geral, quase que a modo de testamento, deixa como palavras finais: “Queridos amigos! Deus guia a sua Igreja; sempre a sustenta mesmo e sobretudo nos momentos difíceis. Nunca percamos esta visão de fé, que é a única visão verdadeira do caminho da Igreja e do mundo. No nosso coração, no coração de cada um de vós, habite sempre a jubilosa certeza de que o Senhor está ao nosso lado, não nos abandona, está perto de nós e nos envolve com o seu amor (27 de fevereiro de 2013).
As três encíclicas queridas por Bento XVI respondem às encíclicas trinitárias de S. João Paulo II. O pontífice polonês dedicara uma trilogia ao mistério de Deus: Redemptor hominis, Dives in misericórdia, Dominum et vivificantem. Bento XVI, “simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor”, quis dedicar os textos pontifícios mais solenes à relação com Deus: Deus caritas est, Spe salvi e, projeto inacabado: Lumen Fidei. Desse modo, seu Magistério é solenemente marcado pela continuidade com os pontificados de seu predecessor e de seu sucessor, Papa Francisco, que herdou o projeto e o levou a brilhante termo.
Entre os mais brilhantes teólogos a servir na cátedra de Pedro, Bento XVI recorda, por seu estilo, os Padres da Igreja, bem como, pela amplitude e pela profundidade, os seus Doutores.