Um dos atributos ou nomes, entre os mais de 300, que podemos encontrar na Bíblia referindo-se a Deus, é o Amor. “Deus é Amor”. Por isso, ao longo dos séculos, tornou-se popular o slogan latino: “Ubi caritas ibi Deus”, onde está o Amor, aí está Deus. Da mesma maneira que, como verdade fundamental da nossa Fé, confessamos: “E o Verbo (Deus) se fez homem”, também podemos dizer com toda propriedade: O Amor se fez carne e habita entre nós. Teilhard de Chardin percebe este Amor divino na própria matéria. “O Universo, dizia, está ‘amorizado’”, impregnado de Amor. De fato, nada existe sem essa atração amorosa em todos e cada um dos entes. As partículas atômicas e subatômicas que constituem fisicamente as coisas abraçam-se magneticamente. O mesmo acontece na imensidão estelar das galáxias. A força da gravitação que as atraem mutuamente são mais do que frias cordas de sujeição. Assim como acontece no mundo subatômico, no mundo sideral tudo se move ou está vivo, porque é feito de Amor. “A vida é movimento”, afirma Aristóteles. “E a vida é Deus” (Jo.1). São João une o Amor à vida dizendo: “Quem ama vive, e quem não ama permanece na morte”, no seu próprio nada. A vida é Amor imortal. O Amor não mata nem pode morrer. “Amar, afirma Gabriel Marcel, é dizer: você não morrerá”. Ninguém pode amar realmente o que caduca e morre. A Psicologia chega também a esta conclusão. Se uma pessoa estivesse absolutamente convicta de não amar nem ser amada, fatalmente se suicidaria. O desamor, como o ódio, produz morte.
Ultimamente temos criado o conceito sociológico da “Civilização do Amor”, a única cultura que nos torna humanos e preserva a vida das pessoas e dos povos. “Ama e faz o que quiserdes”, diz Santo Agostinho.
O Amor cumpre toda lei, nos revelou Jesus, e nos torna filhos de Deus. Entretanto, a história particular e das nações mostra-nos desamor, guerras, ódio e morte. Tragédia esta que se radica em pretender desvincular o Amor da sua fonte, que é Deus. Sem Ele é impossível a paz.
Nenhuma fraternidade é possível sem uma e a mesma paternidade divina. O politeísmo foi e continua a ser origem de guerras e conflitos, assim como sem espírito fraterno é impossível invocar um Deus verdadeiro. Um Deus que não seja Pai de todos não existe, e uma fraternidade sem este Pai comum é impossível, assim como todo humanismo ateu é um trágico humanismo. Tese confirmada pela Revolução Francesa e o alienante Comunismo.
Na década de 1940, Jacques Maritain, contra Sartre, afirmava: “Só o Cristianismo nos faz verdadeiramente humanos”, pois só Cristo nos revelou um só Deus e Pai de todos. Sem o Deus de Jesus Cristo, nem sequer conseguimos ter consciência de uma “espécie humana”, o que significa que, no propalado “progresso”, não superaremos o nível existencial das plantas e dos animais, irmanadas cada uma na sua espécie para preservarem sua vida. O ser humano é a única espécie vivente capaz de se autodestruir. Sequioso de imortalidade, pois não se pode pensar a vida racionalmente como mortal, entre todos os entes vivos, é o único que, para viver, precisa conhecer e invocar o Deus Amor, Pai e Mãe de todos nós e de toda a Criação.
Um Novo Mandamento
Nascidos do Amor, vivemos em e por Amor. O Amor não é mandamento, mas necessidade existencial. Cristo o sublimou introduzindo um “mandamento novo”, um amor que era desconhecido na cultura de todos os povos: o Amor aos inimigos, cume de todo humanismo e identidade dos filhos de Deus.
O Amor aos inimigos, afirma o antropólogo Cowbell, consta só na cultura cristã. Ele é meta impossível de atingir pelo ser humano, mas a ela somos predestinados, para amar como Deus nos ama, e termos a Vida que Ele tem.
As águas do Amor que tanto precisamos beber neste mundo para viver, se tornarão fonte inesgotável em nós para dar, como Deus faz conosco, vida feliz aos outros.
“Não mais haverá sede”, pois seremos fonte que “jorra a Vida Eterna”(Jo.4). O Reino de Deus é um Reino de Amor, que se faz presente neste mundo na medida em que amamos a Deus e ao nosso próximo, assim como todas as criaturas, frutos do Amor de Deus.
A beleza salvará o mundo, diz Dostoievski. Nada é belo sem Amor para dar e receber. A beleza é o eros do Amor imortal.
“NÃO É BOM QUE O HOMEM ESTEJA SÓ” (Gn. 2,18-24)
‘Ninguém faz uma festa sozinho’.
“Só existe um inferno: a solidão”, afirma Gabriel Marcel. Aristóteles (séc. IV a.C) dizia que um homem solitário ou é Deus ou é uma besta. Errava nesta afirmação, pois nem Deus é solitário nem as bestas vivem isoladas. A vida, como a felicidade, só é possível se for partilhada. Ninguém faz uma festa sozinho.
Uma das penas mais terríveis é encerrar alguém numa cela solitária. Tudo o que existe está relacionado e é interdependente. Dependemos indiretamente de toda a humanidade para tomar uma xícara de café. Não somos indivíduos, mas comunidade, relação e Amor. O próprio Deus, Trindade, não quis viver sem nós e seus anjos. A “paixão e morte de Cristo” a nos dar Sua Vida encontra seu verdadeiro sentido não como preço da nossa “redenção”, mas como apreço e Amor por nós. Nenhum Amor romântico é tão sublime como a paixão e morte de Cristo, que tendo nós amado nos amou até o extremo de dar Sua Vida. Só esse Amor é capaz de cruzar a fronteira do pecado e da morte. O que nos assemelha e faz-nos filhos de Deus é o Amor.
A estrutura sexual das plantas e dos animais, incluindo o ser humano, tem de ser entendida como reflexo do Amor de Deus em nós.
Ao longo dos tempos, influenciados por Santo Agostinho (séc. V) , a relação sexual era interpretada como fonte de reprodução, preterindo e, até, considerando pecaminoso o Amor prazeiroso do sexo. 90% dos pecados que ocupavam a consciência do povo no passado eram de caráter sexual. Eram
isentos desse pecado os sacramentalmente casados, não importava tanto se sua relação sexual era fruto de autêntico Amor. As prostitutas, disse Jesus, vos precedem no Reino dos Céus. Há mais pecado no sexo sem Amor do que no sexo com Amor…O Concílio Vaticano II devolveu o Amor ao sexo, afirmando que sua finalidade não é apenas de reprodução, como também de Amor. Por isso, nem toda relação sexual é reprodutiva naturalmente.
Os dez por cento dos homossexuais encontram aqui também seu lugar no Amor. O Amor é reprodutivo porque produz vida, a começar, fisicamente, trazendo ao mundo um filho ou uma filha, mas também mais vida em toda pessoa amada. Com maior força e generosidade, de maneira mais sublime e plena, quando esse Amor nos une a Deus e a toda a humanidade. O Amor sexual é mais “erótico e apaixonado” naqueles que, renuciando ao casamento, dedicam todo seu Amor a tornar conhecido o Amor Eterno de Deus, que nos faz imortais, irmãos uns dos outros e filhos de Deus.
O Amor aos mais pobres de maneira desinteressada, pode gerar sentimento mais erótico e prazeiroso do que o Amor mais encantador e romântico. Inclusive este Amor não sexual, mas nem por isto menos Amor, produz ocitocina, hormônio do mesmo Amor ligado à vida.
O capítulo segundo do Gênese, escrito cinco séculos antes que o capítulo primeiro, narra-nos de maneira grandiosa a Criação do ser humano. Tendo criado Adão do barro (irmanado com a matéria cósmica) Deus infundiu nele um profundo sono, para significar a grandeza, além da razão, do Amor que nasceria da relação com sua mulher Eva, tirada de uma costela para ser carne da sua carne. Até o século XVI, com o anatomista Vesálio, acreditava-se que o homem tinha uma costela a menos do que a mulher. Este mito supera toda explicação científica sobre a origem do sexo. Os rabinos interpretam este relato dizendo: Deus não tirou Eva da cabeça de Adão para ela não ser superior ao homem; nem dos pés, para não ser sua escrava; a tirou de uma costela para ser sua companheira para viverem em comunhão de vida e de Amor.
Para a mitologia grega, a mútua e apaixonante relação amorosa entre o homem e a mulher tinha como origem sua condição de androginia primordial. Homem e mulher eram um só corpo, que foi secionado pelo deus Eros. Dai o termo latino sexo, de secare, que significa dividir, para se procurarem amorosa e eroticamente um ao outro.
Friedman, em seu livro “Será que Ninguém se Envergonha?”, diz que casar é sentir-se andrógino, necessitado e parte vital do outro. Este é o sentido bíblico de “Serão uma só carne”. Eu costumava dizer no Curso de Noivos: ‘Ninguém se case, se pode viver sem a pessoa que ama’. O pensador espanhol Unamuno chamava sua mulher de “meu costume”.
Mas se o casamento é tão sublime, por que há tantos divórcios? Não porque faltem terapias e conselhos, mas porque se carece da sua mística de comunhão. Místico é aquele que vive não pensando em si, mas em comunhão com Deus e, no casamento, com o outro, unido a Deus. Toda divisão ou separação vital é diabólica, que em grego significa o que está dividido ou separado. À maneira de célula cancerosa, divorciada do corpo, o que está dissociado, acaba matando e, ao mesmo tempo, morrendo, vítima do seu próprio egoísmo.
Uma das verdades que mais impactou minha Fé é: “Creio na comunhão dos santos”, na união comum de ser e vida com Deus, Seus santos e anjos e, por extensão, com toda a Criação. Esta verdade nos mostra a impossibilidade de morrer e sermos infelizes. Como o câncer, bastaria, uma só indivíduo isolar-se e separar-se da comunhão vital para matar Deus e Suas criaturas. Consola-nos que Cristo veio salvar-nos deste pecado diabólico de excomunhão, reconciliando-nos e tornando-nos Nele um só Corpo, imortal e glorioso, capaz de amar como Deus nos ama.
“EIS-ME AQUI, JUNTO COM OS FILHOS QUE DEUS ME DEU PARA TEREM COMIGO A MESMA CARNE E SANGUE” (Hb. 2,9-11)
Encarnado em Jesus de Nazaré, Deus uniu-se com o ser humano e com toda a Criação. Da mesma maneira que Eva nasceu da costela de Adão, para se tornar carne da sua carne, na cruz, do costado aberto de Jesus, dormindo no sono da morte, nasceu a nova humanidade e a nova Criação, para se tornarem concorpóreos e consanguíneos de Deus. Este parentesco divino, revelado na Bíblia à maneira humana, sob a figura de esposo/ esposa, pai e filho em relação a Deus Criador e Salvador, em Cristo, Deus feito homem, nos faz também fraternos: “Ele não se envergonha de nos chamar de irmãos” (Hb.2,11).
Como dissemos na reflexão do domingo passado, a grande metáfora da Bíblia, que vai além das palavras e das ideias, é que Deus “desceu” e Se fez um de nós. O mistério da Encarnação, para os cristãos da Igreja católica ortodoxa, é mais sublime que a própria Ressurreição. Por esta somos vivificados. Pela Sua Encarnação, divinizados. Este Mistério supera nossa razão, incapaz de pensar, como defendia Descartes, a não ser de “maneira clara e distinta”, isto é, separando a realidade das coisas, constituídas por uma quantitativa porção de matéria que as individualiza, para serem “enformadas” de maneira concreta.
O panteísmo: tudo é Deus e Deus é tudo, é mais uma heresia da razão do que da fé, essencialmente mística de comunhão. Por isso, K. Raher dizia que o Cristianismo tem de ser místico ou não será cristão. Entretanto, a Encarnação que nos une a Deus, nesta vida, continuará a ser um mistério, além de toda compreensão racional e da própria Fé, pois esconde sua grandeza nas nuvens do sofrimento, do pecado e da morte, inerentes à nossa condição humana. Por isso, experimentamos a vida no nosso dia a dia como se Deus, unido a nós, não existisse. Temos de enxugar nossas lágrimas e o suor da nossa fronte, até o dia da nossa gloriosa transformação.
“O QUE DEUS UNIU O HOMEM NÃO PODE SEPARAR. ” (Mc. 10 ,2- 16).
Intitulamos esta nossa reflexão emblematicamente dizendo: E o Amor se fez carne e habita entre nós. De fato, o Amor é o mesmo Deus presente em todas as Suas criaturas, mas de maneira mais sublime, no ser humano, “encarnado” na união do homem e da mulher. São Paulo, em Ef.5, o qualifica de “grande sacramento” ou sinal de Salvação para si e para o mundo. Se um casal acreditasse nessa grandeza, mais que humana, seria incapaz de se divorciar. O Sl. 127 promete felicidade e prosperidade ao casal fiel: “Serás abençoado com teus filhos e os filhos dos teus filhos”.
No início da Criação Deus os fez homem e mulher para serem “uma so carne”. Em Gn. 1, há como uma dupla criação do ser humano. Num primeiro momento: “Deus criou o homem à Sua imagem” para ser senhor do mundo criado. A seguir, acrescenta: “Os criou homem e mulher”, para serem fecundos e povoar a terra. Eu costumava aludir a este texto na celebração dos casamentos, mais de 20.000 ao longo do meu ministério paroquial, dizendo aos noivos que hoje eram criados de novo para não mais poderem ser e viver um sem o outro.
Alguns médicos neurologistas tem afirmado que a sexualidade está vinculada neurologicamente à morte. Se conseguíssemos romper a sinapse vida-e-morte programada no nosso cérebro, seríamos assexuais e imortais como as bactérias, que se multiplicam por mitose e, só podem ser destruídas por agentes externos a elas. Teoria mais de ficção do que científica. A Biblia nos revela que a sexualidade, dom de Deus, premiado de prazer, cumpre a missão criadora de, não só povoar a terra, como de receber os filhos dados por Deus para serem seus filhos, como Jesus, à maneira humana, até completar o número que, de antemão Ele chamou, para viver eternamente com Ele no Seu Reino, como também tornar presente seu Amor encarnado em todo casal. Mais ainda, segundo São Paulo, o Amor vivificante do casal revela ao mundo o Amor fiel de Deus a garantir nossa Salvação.
Todo divórcio torna mais ateu o mundo e mais incerta nossa Salvação. Diríamos ser mais grave a dissolução da Vida que une o casal, do que do próprio aborto. Este mata uma criança, o divórcio põe em questão a Vida de toda a humanidade.
O Direito Canônico (código que rege a conduta religiosa dos católicos) atribui ao casamento duas propriedades: unidade e indissolubilidade. “O que Deus une, o homem não pode separar”. À Igreja Cristo deu o poder de perdoar os pecados, mas não o de dissolver um casamento. É claro que este casamento, união de um homem e uma mulher unidos por Deus, pertence a uma minoria. A maior parte dos casamentos não passam de amigável ou contratual união cívica, mesmo celebrados na Igreja. Jesus aceitou essa realidade apenas legal por causa da fragilidade humana.”Mas no princípio (no plano salvífico de Deus) não foi nem assim”. Deus os fez homem e mulher como uma só carne para serem testemunhas e sinais da Salvação do mundo, testemunhas que nos revelam que, da mesma maneira que um casal permanece unido em corpo e alma, também nós estamos unidos “carnalmente”, existencialmente a Deus. A união sexual é o sacramento desta união e do Amor de Deus para com todos. O êxtase do seu prazer, querido por Deus, o mais forte de todos os prazeres humanos, segundo alguns teólogos, antecipa a felicidade da Ressurreição. Tudo isso, referente ao casamento cristão, é o que São Paulo chamou de “grande sacramento”, sinal da Salvação do mundo a ser revelado pelos casais unidos por Deus, imensa minoria que, como o sal, a luz e o fermento, exercem com Cristo a missão Salvadora do mundo. O Direito Canônico também diz que os frutos do casamento são: fecundidade (filhos), fidelidade (o amor não pode morrer) e o sacramento (sinal de Salvação do casal e do mundo). Faltando esses frutos, a árvore do casamento ocupa um lugar inutilmente.
O casamento é plano salvífico de Deus e ideal do ser humano. Até o fim dos tempos, como a Igreja, estará presente, como sinal da Salvação do mundo. Da mesma maneira que os santos, santificados por Deus, nos unem a Deus, o amor divino do casal “amoriza” e dá vida ao mundo. Só este casal, sacramento do Amor de Deus, pode usar com propriedade as palavras tão propaladas ao se referir à relação sexual “fazer amor”. Só o casal escolhido por Deus para viver este Amor transcendente de Deus na “carne”, sacramentalmente, faz e torna encarnado neste mundo o Amor Eterno de Deus, do qual todos participamos.
Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)
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gostei muito do site parabéns 🙂