Os Ka’apor da Terra indígena Alto Turiaçu, no Maranhão, seguem acossados por madeireiros, fazendeiros e grileiros. Esses grupos intensificaram ameaças de morte e afirmam aos Ka’apor planos de novas invasões e incêndios ao território tradicional. No último final de semana, os Ka’apor permaneceram em alerta diante de um ataque iminente. Há pouco mais de um ano, Eusébio Ka’apor foi assassinado como parte de uma ofensiva ininterrupta contra o povo. Por outro lado, a jovem de 14 anos Iraúna Ka’apor segue desaparecida depois de ser sequestrada por madeireiros há três meses – o fato foi comunicado às autoridades.
Em março deste ano, uma operação da Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal e Ibama, em parceria com a Guarda Florestal Indígena Ka’apor, culminou na prisão de 11 indivíduos, entre madeireiros e capangas, além do fechamento de 15 serrarias na região que receptavam a madeira retirada de forma ilegal da terra indígena. O sequestro da jovem, dizem os indígenas, foi parte de uma retaliação que teve ainda invasão de aldeias e indígenas feridos a tiros.
Mesmo sofrendo com a ofensiva de invasores, os Ka’apor mantêm a Guarda Florestal Indígena de proteção e gestão da Terra Indígena Alto Turiaçu – o que ainda gera represálias. Não apenas na Alto Turiaçu, mas também na Terra Indígena Karu e na Terra Indígena dos Awá-Guajá – que concentra populações Awá em situação de isolamento voluntário. Nesses territórios, Guardas Florestais Indígenas também já funcionam. Juntas, essas terras indígenas formam, ladeadas por áreas de proteção ambiental e assentamentos, uma das últimas fronteiras florestais do Maranhão cobiçadas por fazendeiros, madeireiros e grileiros.
Conforme informações de indigenistas da região e do Regional Maranhão do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), indígenas Ka’apor de uma aldeia invadida em dezembro de 2015 entregaram, sob tortura, planos, ações, pessoas e órgãos envolvidos com a proteção territorial. Violências desse tipo têm composto o dia a dia dos Ka’apor, que ainda sofrem pressões da Funai para desfazer a Guarda Florestal Indígena – motivo apontado por servidores do órgão indigenista estatal como razão dos ataques sofridos pelas aldeias.
“Não vemos nenhuma providência do órgão responsável pela segurança dos indígenas e do território. Com isso, os madeireiros se reuniram esses dias na região e planejam atacar aldeias pelos municípios da região (Centro do Guilherme, Maranhãozinho, Nova Olinda do Maranhão e Zé Doca)”, conta uma fonte que está na região e terá a identidade preservada por motivos de segurança.
Nos últimos dias, madeireiros pararam um carro do Polo Base de Saúde Indígena Zé Doca em uma estrada conhecida como “Da Conquista”, município Zé Doca. No veículo estavam um servidor da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e uma liderança indígena impedidos de retornar para a cidade. Para qualquer Ka’apor ou servidor público de caráter indigenista, se tornou perigoso andar pelas cidades vizinhas ao território indígena. O ambiente de tensão, monitoramento e ameaças é permanente contra as lideranças Ka’apor. A vigilância na terra indígena está redobrada.
“Não podemos deixar de denunciar o silêncio e a omissão do governo do estado do Maranhão. O governador Flávio Dino não conseguiu estrutura a Secretaria do Meio Ambiente para que ela proteja as áreas de conservação coibindo essas ações que são orquestradas: os mesmos grupos de madeireiros e fazendeiros atacam as três terras indígenas, assentamentos e invadem áreas de preservação. O próprio governador se mostra como aliados de políticos que representam esses grupos”, afirma a fonte ouvida pela reportagem.
Guarda indígena: autogestão e proteção
Em 2013, o povo Ka’apor realizou a sua primeira grande assembleia, onde foi debatida a importância da autonomia dos indígenas na gestão de seu território, por meio de um acordo de convivência que buscava erradicar “os vícios dos brancos nas aldeias, proteger nosso território, valorizar e fortalecer nosso jeito de ser Ka’apor”. A Guarda Florestal Ka’apor foi criada para percorrer o vasto território em missões de semanas no interior da mata. A participação de indígenas na retirada de madeira deixou de existir, conforme os indígenas, e madeireiros são expulsos sempre que a guarda os encontra.
Casos recentes de assassinatos, atentados a tiros e invasões passaram a constituir uma guerra de baixa intensidade travada pela guarda. Em dezembro de 2015, dois indígenas Ka’apor foram baleados por madeireiros. No dia 19 daquele mesmo mês, guardas florestais do povo Ka’apor, que atuam na proteção das matas e do território contra as queimadas e a extração ilegal de madeira, detiveram sete madeireiros do município Zé Doca, encontrados extraindo madeira dentro dos limites da área. A intenção dos indígenas era entregá-los ao Ibama. Em represália, mais de 20 madeireiros invadiram a aldeia Turizinho e, numa ação extremamente violenta, deixaram dois indígenas baleados.
Conforme a nota do Conselho Ka’apor à época, além da impunidade dos agressores e invasores, os indígenas sofreram com a criminalização na mídia local e foram acusados injustamente de manter um dos madeireiros como refém. “Os que invadiram a aldeia Turizinho, roubaram nossos equipamentos e materiais de trabalho na mata e atiraram em nossos guardas agroflorestais que estavam identificando focos de incêndios na região de Vitória da Conquista, estão andando livremente na cidade de Zé Doca, inclusive a pessoa que estão dizendo que está desaparecida”, diz trecho da nota.
Os Ka’apor vêm realizando ações de organização do povo e proteção do território desde 2010. São reconhecidos por órgãos nacionais e internacionais como grandes defensores da última área de floresta amazônica da Amazônia Oriental ou Maranhense. Como verdadeiros guardiões da floresta, sofreram desde 2008 com 5 lideranças assassinadas, 14 indígenas agredidos (fisicamente e a tiros), duas aldeias foram invadidas e cerca de oito lideranças e 12 guardas florestais ameaçados ou marcados para morrer.
Ainda no Maranhão, a Terra Indígena Arariboia é outro exemplo onde a guarda indígena sofre represálias violentas. Entre os dias 26 de março e 22 de abril deste ano, os indígenas Aponuyre, Genésio, Isaías e Assis Guajajara foram assassinados. Os quatro compunham os quadros da guarda indígena. A fiscalização dos órgãos competentes na área, conforme os Guajajara, é ineficaz. Os povos que vivem na terra indígena – já demarcada e habitada também por índios Awá-Guajá em situação de isolamento voluntário – sofrem com a constante pressão de madeireiros. Entre o fim de 2015 e o início deste ano, um incêndio de grandes proporções devorou pouco mais de 30% da Arariboia e o Ibama declarou que a queimada teve origem criminosa.
Para os Guajajara trata-se de uma tragédia anunciada e o incêndio foi provocado pelos madeireiros cada vez mais acuados e combatidos pela guarda. Há pelo menos 6 anos uma enxurrada de denúncias dão conta da ação dos madeireiros. Em 2011, uma equipe do Cimi, acompanhada por integrantes da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), entraram na terra indígena para averiguar denuncias de um ataque de madeireiros a um grupo Awá-Guajá isolado. Encontraram estradas abertas e um acampamento de madeireiros sendo erguido sobre uma área com vestígios da presença dos Awá.
Acerto de contas
Outra forma de pressionar os indígenas é a criminalização, imputando aos Ka’apor assassinatos com corpos desovados nas imediações das aldeias. No entanto, uma história ilustra o que vem ocorrendo na Terra Indígena Alto Turiaçu. Conforme a fonte ouvida pela reportagem, depois da prisão dos 11 indivíduos envolvidos nas invasões madeireiras na terra indígena, os chefes da quadrilha tiveram a notícia que os detidos apontaram para quais madeireiras se destinavam as árvores abatidas. Quinze serrarias acabaram fechadas. Conforme estes presos estão sendo soltos, o acerto de contas ocorre.
“Esses corpos encontrados na terra indígena são de indivíduos envolvidos com a retirada da madeira. Então se tem um acerto de contas e ao mesmo tempo a possibilidade de imputar essas mortes aos Ka’apor. As ações da Guarda Floresta Indígena envolvem a retenção de invasores e a entrega deles às autoridades. É isso que acontece. Tanto é que esses madeireiros e fazendeiros que acusam os indígenas não registram boletim de ocorrência. Ao contrário, preferem soltar a informação de que os indígenas estão matando e isso gera ainda mais represálias e violências e preconceito”, afirma a fonte.
O que se pode destacar do trabalho executado pelos Ka’apor e suas organizações sociais é a realização de três grandes assembleias para estabelecer um Acordo de Convivência Interno diante das ameaças da cultura externa. Desse processo surgiuainda o referendo do Conselho de Gestão Ka’apor com os Tuxá Ka’apor, o início da elaboração e planejamento do plano de vida ‘Janderuhã ha ka’a rehe – Nossa Floresta é nosso Plano de Vida’; controle e gestão da saúde pelo próprio povo e o Projeto de Educação Diferenciada ‘Ka’a namõ jumu’eha Katu – Aprendendo com a Floresta’, com a gestão realizada pelos próprios indígenas.
Projetos que de acordo com os indígenas vêm encontrando resistência pela Secretaria de Educação do Estado do Maranhão. Até mesmo o fechamento de 24 ramais de madeireiros, a criação de sete Áreas de Proteção Ka’apor em defesa do território e a criação de Sistemas Agroflorestais Ka’apor nas Áreas de Proteção não contam com o apoio estatal. A autogestão Ka’apor, todavia, segue preservando 85% da área de floresta do território – aproximadamente 15% da área de floresta foi devastada e degradada e está em processo de recuperação pelo povo.
Fonte: CIMI