Liberdade ainda que tardia

    Num país de desdentados a liberdade sonhada tinha mesmo que vir de um falso profissional, um charlatão tirador de dentes? Ironia ou peça do destino, o fato é que abortaram aquele sonho, pendurando numa cruz (ops, forca) o ousado artífice que sabia – e bem – extrair do povo suas dores e seus dentes espoliados pela cárie da já contagiante injustiça social. O fato é que aquele alferes insurrecto tinha mesmo que ser um Joaquim José da Silva Qualquer, alguém do povo, que ouvia, entendia, traduzia muito bem a insatisfação popular. O fato é que o artesão da rica vila onde o ouro brotava da terra percebeu a escravidão do povo e a insaciável avareza dos seus governantes. Aos poucos deixou de lado sua profissão – quase um doutor na arte de aliviar as dores do povo – para praticar uma espécie de carpintaria, aquela que trabalhava a madeira bruta com o formão da paciência e modulava a consciência de muitos. Passou a pregar seu sonho de liberdade!
    Tão próxima sua missão da história cristã que até um traidor se lhe providenciaram. Um Silvério que pudesse silvar no ouvido dos Reis! Delator e delatado sonharam juntos, mas a agonia de um sonho comum se dá na perspectiva de cada um e se divide diante dos benefícios que dele se possa alcançar. Liberdade é uma idéia com muitos conceitos. Depende do ponto de vista e dos interesses pessoais que defendemos. A decepção faz o delator, que continua construindo seu sonho com as armas que lhes resta. Judas era do tudo ou nada; Silvério não abria mão das mordomias do reino.
    A história do sonho libertário foi, é e sempre será produtora de mártires. Não por acaso “cristianizaram” nosso herói. Não por acaso o artista da época aproximou sua imagem de salvador da Pátria à do Salvador dos homens, o Cristo. Tanto que ao militar disciplinado e asseado, sempre com sua impecável farda e seu visual bem cuidado, barba feita como bem competia a um alferes, deram-lhe uma túnica surrada, cabelos longos “iguais ao Dele” e barba espessa, de longos dias… Para selar seu divino martírio, colocou-se em sua boca a frase da entrega heróica, destemida: “Se dez vidas tivesse todas eu daria”. Pronto: o sonho de liberdade tupiniquim também ressurgiu dos mortos, começou por um salvador espoliado de tudo, despojado. Sem a glória da ressurreição, ao menos ficou insepulto, pois que esquartejaram seu corpo e o vilipendiaram pelas praças e ruas da colônia rebelde, exposto e ridicularizado como instrumento de um ideal impossível, utópico, acima de nossos direitos e de nossa realidade. A combalida esperança do povo renasceu do cadafalso dos poderosos, tal qual a cruz romana.
    O sonho continua. A história também. Aos que vêem no paralelo cristão um quê de heresia, de afronta à mais sublime das Histórias, faço uma justificativa real, consoladora. Nenhum sonho de liberdade se concretiza sem o ideal da fé. Mesmo que as motivações inconfidentes buscassem estancar a sangria do nosso ouro, das riquezas sugadas pelo “quinto” dos infernos dominadores, a motivação cristã também deseja preservar a riqueza maior da realidade humana, seu livre-arbítrio. Para tanto nos pede um “dízimo” apenas. Um simples, pequeno e justo tributo de participação nossa, para que o sonho de um mundo melhor, mais justo, humano e santo não se limite às fronteiras das pátrias terrenas, mas derrube toda e qualquer fronteira entre os povos. Congregue-nos como raça única. Liberdade, liberdade, abra suas asas sobre todos! Essa é a revolução que ainda pregamos com nossa fé e esperança, que sonhamos para nosso povo! Nenhum ato de insubordinação ou insurreição pode ser atribuído àquele que sonha com uma vida livre, um mundo justo, um país soberano. Em nada difere da prática e do ideal cristão, pois a Terra Prometida ao patriarca bíblico ou a Jerusalém Celeste apontada por Jesus ou mesmo qualquer outra imagem do Paraíso, aqui e agora ou no nirvana além do horizonte, é mais que um sonho… É a liberdade que buscamos.