Domingo de Ramos e da Paixão – Cartas do Padre Jesus Priante

‘Cristo entrega sua vida na cruz e nos faz imortais’

Uma das grandes tarefas da cultura, nossa segunda natureza, está em não deixar morrer o sentido das palavras e dos símbolos. Este domingo reveste-se de grande significado para nossa Fé. Iniciamos a Semana Santa.

Esta expressão, presente estes dias na boca de um terço da humanidade, é mais do que mero nome a identificar dias mais dedicados ao culto religioso. O santo tem como seu antagônico o profano, que significa o que está em frente da luz. Esta Semana é Santa porque nela se faz presente nossa Salvação, pela qual passamos do mundo profano do pecado e da morte à santidade e à vida de Deus. As 52 semanas fatigadas do ano mergulham no descanso da eternidade nesta Semana sacramental. Não somos mais profanos, postados diante da luz da vida, mas vivificados na santidade de Deus. O quotidiano que nos envelhece e nos conduz à morte, na Semana Santa reveste-se de gloriosa imortalidade.

Este domingo tem dupla denominação: das Palmas ou de Ramos e da Paixão. Talvez essa duplicidade não favoreça o acontecimento Salvífico deste dia. Teria maior sentido apenas celebrá-lo como Domingo das Palmas, deixando o acontecimento da Paixão para Sexta Feira, dia em que de fato e de maneira real, Cristo entrega sua vida na cruz e nos faz imortais. Comentamos ambos acontecimentos.

DOMINGO DAS PALMAS

Desde o século IV, reproduzindo a narrativa evangélica da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém dias antes da sua Paixão e morte, este domingo é celebrado com uma procissão, na qual o povo, portando palmas, aclama a Jesus como seu Rei e Senhor, cantando: “Hosana! (salva-nos) Bendito o que vem em nome do Senhor”. Ele vem, cumprindo a profecia de Zacarias, não montado sobre um cavalo, símbolo do poder deste mundo, mas sobre um jumentinho. Ele mesmo era esse jumentinho a levar sobre si nossos pecados, dores e morte, como nos mostra o profeta Isaías. A palma que recebe-se neste dia tem um caráter sacramental. Infelizmente hoje não passa de algo folclórico ou costumeiro, ao qual damos as mais aberrantes significações. Já tenho visto Paróquias em que fazem deste rito das Palmas ou dos Ramos uma campanha ecológica, levando na procissão vasos de plantas. Outros usam a palma que recebem como amuleto para proteger-se de tempestades ou desgraças. O semiólogo francês Paul Ricoeur diz que quando um símbolo ou sacramento perde seu sentido, precisamos renová-lo ou prescindir dele. Ele torna-se estéril por ignorar seu significado, por dar-lhe outro sentido ou por tornar-se confuso dentro de um amontoado de símbolos, como acontece no Sacramento Eucarístico. Nossa Eucaristia é tão cheia de ritos que escurecem a pérola da Páscoa e da Aliança da Comunhão com Deus no Corpo de Cristo. Três grandes significações sacramentais precisamos recuperar na celebração do Domingo da Palmas:

  1. Sinal e sacramento de nossa fidelidade a Cristo. Neste dia, com a palma na nossa mão, temos de dizer: “te seguirei, Senhor”. Um dos sinais ou sacramentos de nossa salvação é a perseverança na Fé. Cada ano, neste domingo, temos a oportunidade de sentir-nos unidos a Cristo como seus verdadeiros discípulos, e experimentar nossa Salvação, como Jesus nos disse: “Quem perseverar ate o fim será salvo”. Mais um ano nossa Fé está viva, confessando que Jesus é nosso Deus e Senhor. Com isso , nossa Salvação é sentida de maneira segura e certa.
  2. Sinal e sacramento de nossa vitória sobre o pecado e a morte  conforme se nos revela em Ap.7. São João tem uma visão do fim dos tempos na qual contempla uma multidão de todos os povos, raças e línguas, vestidos de branco, (símbolo da Ressurreição) entrando no Céu com palmas nas mãos. Muitos cristãos, nos primeiros séculos, guardavam a palma que recebiam neste domingo de um ano para outro. Com ela, caso falecessem, eram sepultados, expressando sua entrada gloriosa no Reino dos Céus.Nada mais sublime do que nós sentirmos vitoriosos na luta da nossa vida. Esta palma, em nossas casas, teria de ser um sinal e sacramento que faz presente nossa vitória final.
  3. Sinal e sacramento de nossa esperança. Neste dia cantamos com alegria:”Bendito aquele que vem em nome do Senhor”. É o desejo que carrega as gerações até o fim dos tempos: “Vem,Senhor, Jesus” (Ap.22).

DOMINGO DA PAIXÃO

A Paixão e morte de Cristo tem seu pleno sentido na Sexta Feira Santa. Dia em que de fato, sua mesma narrativa é sacramental, isto é, acontece realmente o que é narrado. Por isso, nesse dia, e só nesse dia, o emblema do crucifixo é adorado. Assim como só nesse dia a Eucaristia não é celebrada, pois em Cristo crucificado neste dia realiza-se a Páscoa, o passo da morte à vida. A Paixão e morte de Cristo revela-nos dois aspetos fundamentais da nossa Fé: o amor e o sofrimento em si.

Paixão significa em latim (passio) sofrimento e afeição. Deus desceu na pessoa de Jesus de Nazaré, afirma Orígenes (séc. III) por amor. Em Jo.13,1 se diz: “Ele nos amou até o extremo”. E em Rm.5,8, São Paulo declara: “Deus deixou constância do seu amor entregando sua vida por nós”. O amor, em seu grau supremo, consiste na renúncia de nos mesmos em favor da pessoa amada. Alguém pode manifestar esse amor dando coisas ou prestando serviços, mas quando se entrega a própria vida, o amor só pode ser divino. De fato, só podemos amar na medida em que somos imortais.

A raiz de todo egoísmo está no medo da morte, por isso nos preservamos e nos defendemos. Nesse sentido, só Deus é amor, santo e imortal. Desse amor Ele nos fez partícipes pela Ressurreição de Cristo. “Porque se hoje nos amamos, é porque Cristo ressuscitou!. Na cruz , Jesus nos diz incessantemente : “Ninguém te ama como eu”. Deus nunca deixou de amar suas criaturas e, particularmente, o ser humano. Mas só em Cristo crucificado esse amor revelou-se infinito e eterno. Adão e Eva, no Paraíso, tinham todas as coisas dadas por Deus, mas duvidaram do amor de Deus, por isso resolveram viver por si mesmos. A mesma dúvida teremos todos nós, tanto quando temos as coisas que desejamos como quando nos faltam. Se a morte de Cristo na cruz não for neste mundo a suprema prova do amor de Deus, nenhum bem ou milagre nos convencerá que Deus nos ama com amor eterno e salvador. Não sem razão o povo Inglês chama à Sexta Feira Santa “Good Friday”. Dia em que Deus torna tudo santo e bom.

A Paixão faz referência também ao sofrimento, inerente à nossa condição humana. Por que sofremos? É o grande problema filosófico para o qual a razão humana carece de resposta, ao menos de maneira positiva. Se tivermos de elencar o Cristianismo dentro das incontáveis escolas filosóficas, diríamos que a peculiaridade que a distingue de todas as outras filosofias, é a visão positiva que dá ao sofrimento, como caminho da vida. Ele é “sabedoria de Deus”, que escandaliza toda razão e crença. “Pela cruz à luz”, era slogan dos primeiros cristãos. O sofrimento não é castigo, prova, meio de purificação ou de merecimento salvífico. É caminho “necessário” (Lc.24) escolhido por Deus para deixar este mundo e entrarmos no Reino de Deus.

VIA SACRA

No século XVII nasce na Espanha a devoção popular da Via Sacra, que logo foi estendida a todos os povos católicos. Em todas as Igrejas vemos representado esse caminho sagrado da vida através das chamadas 14 estações representadas nas paredes, nas quais contemplamos a paixão e morte de Cristo. Pena que esse caminho da vida a ser trilhado por todos, o contemplemos com tristeza, lembrando o sofrimento de Jesus a caminho do Calvário. Nem sequer as palavras de Jesus às mulheres de Jerusalém para não chorarem por ele, nos ajudam a entender o sentido Salvador do sofrimento, nunca querido por Deus, mas que dele fez o caminho da nossa Salvação.

Física ou emocionalmente, desde que nascemos até a morte, o sofrimento nos acompanha. Ele é nosso existencial ou maneira de ser humana. Temos de lutar contra ele, mas tanto a luta como o mesmo sofrimento que não podemos vencer tem de ser caminho, “via sacra” pelo qual transitamos rumo ao Reino de Deus, onde não mais haverá lágrimas, dor e morte. Quando damos ao sofrimento esse sentido positivo, torna-se sacramento ou sinal da nossa salvação. Porque sofro, espero a Salvação de Deus.

O SACRAMENTO DA CRUZ

Para finalizar nossa reflexão sobre a Paixão e morte de Cristo, a ser celebrada com maior realismo na Sexta Feira Santa, seria maravilhoso e salutar recuperar o verdadeiro sentido do símbolo ou sacramento da cruz.

JESUS, O BOM PASTOR A CARREGAR SUAS OVELHAS

Até o século IV, quando Santa Helena, segundo a tradição, encontrou em Jerusalém o madeiro da cruz no qual Jesus foi crucificado, Jesus era representado não no crucifixo mas como Pastor a carregar nos seus ombros uma ovelha ferida.

Na cultura romana, a cruz era simbolo maldito, instrumento de tortura e morte para os escravos rebeldes. Mesmo assim, São Hipólito, no século III, legou-nos o costume de fazer o sinal da cruz na fronte como um “escudo”, dizia ele, contra nossos inimigos e males. Daí veio o costume de usar a cruz no rito dos exorcismos, para expulsar o demônio da pessoa possessa. Mais tarde, o sinal da cruz será feito nos lábios e no peito ou simplesmente na fronte e peito, como costumamos fazer hoje. Pessoalmente, eu faço três vezes este rito todos os dias ao despertar e levantar de manhã, brindando-me paz e segurança para iniciar a jornada. Depois do século IV, a cruz como emblema se tornará o grande símbolo distintivo e mais universal da cultura cristã. É encontrado em todo lugar: templos, escolas, hospitais, casas, praças, caminhos e é “amuleto” da maior

parte dos cristãos. Mas, o que teria de ser um grande sacramento, isto é, sinal da nossa Salvação, veio a se tornar mero objeto sagrado e até profano para o povo cristão. É usado como enfeite ou decoração, quando não como sinal de confronto e divisão. Assim vemos seu uso “diabólico”, para exprimir a divisão entre os cristãos da Igreja católica ortodoxa ou Bizantina, separada da Igreja católica romana no ano 1054. Para significar esse cisma, usaram o símbolo sacramental da cruz. Ao invés de fazer esse sinal finalizando no lado direito do peito, como fazemos os católicos romanos, eles o finalizam no lado esquerdo. Da mesma maneira, os protestantes e evangélicos, para exprimir sua separação da Igreja una e apostólica de Cristo, simplesmente deixaram de usar o sinal da cruz, ou representando cruz vazia, por isso, anunciam o evangelho dos milagres ou da prosperidade, escandalizados da sabedoria da cruz, escurecendo o Mistério da Salvação, que passa necessariamente pelo pecado, dor e morte.

Também a Igreja Católica Romana não está isenta de tornar “pecaminoso” o sacramento da Cruz, fazendo dele sinal de poder. Assim vemos que o Papa e os Bispos fazem três cruzes para abençoar os fiéis, enquanto o baixo clero dos simples Padres, o fazem uma só. E, para consumar este pecado, os leigos só podem fazê-la sobre si mesmos , nunca para abençoar os outros ou as coisas, ficando despossuídos de todo poder.

Todas estas pedras encontramos no caminho da Fé cristã e que precisamos limpar para torná-la mais bela e grandiosa. O sinal da cruz, como objeto sacro ou gesto, tem de ser sacramental, uma maneira de expressar nossa Salvação em Cristo. Na cruz contemplamos o amor infinito de Deus, o caminho a seguir e o escudo a nos proteger de todo mal. “Bendita e louvada seja a Santa Cruz”.

Padre Jesus Priante

(Edição e intertítulos por Malcolm Forest. São Paulo.)

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