Continuando a reflexão sobre o primeiro documento do pontificado do Papa Leão XIV somos chamados a aprofundar alguns aspectos.
Com profunda admiração pela vasta erudição e pelo agudo discernimento histórico e teológico de nosso Santo Padre, o Papa Leão XIV, acolhemos a sua luminosa Exortação Apostólica, Dilexi te. Se em uma primeira reflexão nos detivemos no coração espiritual e cristológico do documento, agora nos debruçamos sobre outra de suas imensas riquezas: a demonstração clara e contundente de que o amor, o cuidado e o serviço aos pobres não são uma invenção recente ou uma atividade secundária, mas constituem a corrente viva, ininterrupta e essencial da grande Tradição da Igreja.
O Papa Leão XIV não nos apresenta uma doutrina nova, mas, com a autoridade que lhe é própria como Sucessor de Pedro, atua como um mestre sábio que tira de seu tesouro coisas novas e velhas. Ele tece um magnífico e inspirador panorama da história da caridade, mostrando como, ao longo de dois milênios, em meio a perseguições, crises e infidelidades, a Igreja sempre redescobriu sua verdadeira identidade como “Igreja pobre e para os pobres”. Este documento é um testemunho eloquente e bem fundamentado de que a fidelidade a Cristo, o Senhor pobre e crucificado, passa, necessariamente, pela fidelidade aos seus membros mais sofredores, nos quais Ele mesmo quis se identificar.
O capítulo III da Exortação, intitulado “Uma Igreja para os Pobres”, é uma verdadeira peregrinação pela história da santidade. O Santo Padre nos conduz por uma viagem que começa na comunidade apostólica de Jerusalém. Ali, diante das primeiras dificuldades, os Apóstolos, guiados pelo Espírito, instituem os diáconos para o “serviço (diakonia) das mesas”, garantindo que as viúvas e os mais necessitados não fossem descurados. É imensamente significativo, como aponta o Pontífice, que o primeiro mártir, Santo Estêvão, seja um destes diáconos, unindo em sua vida, de forma indelével, o testemunho do serviço aos pobres e o testemunho do sangue.
Este rio de caridade flui com uma força impressionante através dos primeiros séculos, na era dos Padres da Igreja. O Papa Leão XIV nos faz reviver o testemunho heroico do diácono São Lourenço que, no século III, diante da exigência das autoridades romanas de entregar os tesouros da Igreja, teve a audácia de apresentar os pobres, os doentes e os marginalizados, proclamando: “Estes são os tesouros da Igreja”. Que poderosa e perene afirmação de identidade! Os Padres, tanto do Oriente quanto do Ocidente, aprofundaram esta convicção. O Santo Padre recorda as palavras inflamadas de São João Crisóstomo, que denunciava a hipocrisia de quem adorna o altar com vasos de ouro enquanto Cristo, na pessoa do pobre, morre de fome lá fora: “Primeiro dá de comer a quem tem fome, e depois ornamenta a sua mesa com o que sobra”. Cita também Santo Ambrósio e seu discípulo, Santo Agostinho, que ensinavam que a esmola não é um ato de generosidade, mas de justiça, uma restituição daquilo que pertence ao pobre em virtude da destinação universal dos bens. A teologia patrística, como bem resume o Pontífice, foi eminentemente prática, alertando que “o rigor doutrinal sem misericórdia é palavra vazia”.
Esta corrente viva de caridade não se esgotou. A Exortação nos mostra como, a cada nova época, com seus desafios específicos, o Espírito Santo suscitou homens e mulheres que encarnaram o amor de Cristo de formas novas e criativas. O Papa nos recorda a genialidade dos santos que fundaram grandes obras e movimentos: a vida monástica, com São Basílio Magno no Oriente, que construiu uma verdadeira cidade da caridade, a “Basilíades”, e com São Bento de Núrsia no Ocidente, cuja Regra estabelece que os hóspedes e peregrinos, especialmente os pobres, devem ser recebidos “como o próprio Cristo”. Os mosteiros se tornaram, por séculos, os primeiros hospitais, escolas e centros de assistência social da Europa. A libertação dos cativos, num gesto de caridade heroica, com as Ordens dos Trinitários e Mercedários, fundadas na Idade Média para resgatar cristãos escravizados. O Papa Leão XIV destaca a radicalidade de seu carisma, que os levava a recolher fundos, a negociar libertações e, no limite, a se oferecerem a si mesmos em troca de um prisioneiro, cumprindo literalmente o mandamento do amor maior. As Ordens mendicantes, que no século XIII representaram uma verdadeira revolução evangélica. Com o carisma profético de São Francisco de Assis, que desposou a “Senhora Pobreza” e viu em cada leproso a imagem do Cristo sofredor, e de São Domingos de Gusmão, que uniu a pobreza radical à pregação da Verdade, a Igreja redescobriu a alegria de uma vida simples e itinerante, próxima do povo. A educação dos pobres, vista como um ato de justiça e promoção da dignidade. A Exortação percorre a obra de gigantes como São José de Calasanz, fundador da primeira escola popular gratuita da Europa, São João Batista de La Salle, São João Bosco e tantas congregações femininas que, com uma “pedagogia da ternura”, se dedicaram a alfabetizar e formar integralmente os filhos dos mais pobres, especialmente as meninas, que eram as mais excluídas. O cuidado com os migrantes e os doentes, encarnado por figuras como São João Batista Scalabrini e Santa Francisca Cabrini, que se fizeram próximos dos milhões de europeus que emigravam em condições dramáticas, e por São Camilo de Lellis ou São João de Deus, que revolucionaram o cuidado hospitalar, vendo em cada enfermo um membro do corpo sofredor de Cristo.
Ao apresentar esta imensa “nuvem de testemunhas”, que chega até os ícones da caridade do século XX como Santa Teresa de Calcutá e Santa Dulce dos Pobres, o Papa Leão XIV nos mostra que a caridade não é uma abstração, mas uma história de rostos, de gestos, de instituições e de vidas doadas que continuam a fecundar e a inspirar a Igreja hoje.
A Exortação demonstra, em seu capítulo IV, como esta Tradição prática de caridade se consolidou, nos últimos 150 anos, no corpo doutrinal do Magistério Social da Igreja. Desde a profética Encíclica Rerum novarum de Leão XIII (1891), que abordou a “questão operária”, até o Concílio Ecumênico Vaticano II, que se autodefiniu como a “Igreja de todos e particularmente Igreja dos pobres”, os Papas têm se feito a voz dos sem voz. O Papa Leão XIV, com a sensibilidade de quem serviu como missionário, valoriza imensamente o caminho percorrido pelas Igrejas locais, como a da América Latina, que em suas conferências do Rio de Janeiro, Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida aprofundou a compreensão da opção pelos pobres, denunciou as “estruturas de pecado” e insistiu que os pobres não são meros objetos de nossa caridade, mas sujeitos de sua própria história e evangelização. Este ponto, sublinhado com força na Exortação, é crucial: implica em superar todo paternalismo e em nos colocarmos à escuta dos pobres, para aprender com eles e lutar com eles pela sua libertação integral.
Dilexi te é um convite vibrante a cada um de nós para nos inserirmos neste grande e caudaloso rio da Tradição eclesial. O Papa Leão XIV, ao nos apresentar esta história bimilenária de amor em ação, não o faz por mera erudição acadêmica, mas para nos mostrar que o desafio é permanente e que esta história está aberta. Nós somos chamados a escrever o próximo capítulo. A luta contra as novas formas de pobreza, a denúncia das estruturas de injustiça e o amor concreto, pessoal e transformador a cada irmão e irmã em necessidade são parte essencial do caminho da Igreja no terceiro milênio e da vocação de cada batizado.
Agradecemos do fundo do coração ao Santo Padre por este documento magistral, que une com rara felicidade a profundidade da teologia, a riqueza da história e a urgência da profecia. Que seu ensinamento nos impulsione a sermos, no hoje de nossa história, os novos São Lourenço, os novos São Francisco, as novas Santas Dulce dos Pobres, para que o mundo, vendo nossas obras, possa acreditar no amor de um Deus que se fez pobre para nos enriquecer, e que continua nos dizendo, do rosto de cada necessitado: “Dilexi te”, “Eu te amei”.