Cultura da boçalidade

    O mundo vive a fascinação e a idolatria dos megaeventos, mega igrejas, mega esportivos, megatraficantes, mega corrupção, junto à criminalização da pobreza e aos despejos de moradores para adequar o espaço urbano às necessidades do capital. Vivemos o horror da guerra, dos refugiados, do terrorismo, da terrível crise ecológica e das várias modalidades da violência. Vivemos a disseminação da demolição dos valores e a dominante  bestialização dos telespectadores por meio da ação midiática em seus telejornais, filmes, novelas, documentários ideológicos e reality shows.
    A era superficial, virtual, parcial e infernal da internet e das redes sociais é uma comédia de lágrimas depressivas, de um circo com palhaço psicopata e muitos internautas navegam no mar de boçalidades. Assim como dizia a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975), sobre a “banalidade do mal”, podemos dizer que esse sistema virtual é a conexão de banalidade com boçalidade.
    Na Grécia antiga, a tragicomédia era um subgênero teatral que alternava ou mesmo misturava comédia, tragédia, farsa e melodrama, podendo ser encontrada em diversas peças, como por exemplo, o Alceste de Eurípides (485 a.C. – 406 a.C.), que, em razão do seu “final feliz” e pelo tom levemente humorístico de algumas passagens, é vista por alguns eruditos como um drama satírico ou uma tragicomédia – mais do que uma tragédia. Algumas peças do grande dramaturgo inglês William Shakespeare (1564 -1616), como O Rei Lear, têm muito da tragicomédia, de forma que a ironia e a comicidade contribuem para a maior riqueza de significados do texto. Porém é somente no século XX, com o teatro do absurdo, que a utilização do riso não necessariamente exclui a profundidade dramática, o que fez com que o cinema se apropriasse e utilizasse desse recurso tragicômico em muitos momentos de sua história como bem podemos nos lembrar do filme Carlitos do genial cineasta Charles Chaplin (1889-1977),  que usou o humor com maestria para satirizar a precarização do trabalho operário nas fábricas do início do século XX em seu famoso “Tempos Modernos”.
    O linguista renomado, filósofo desconcertante e ativista político no mínimo polêmico, Avram Noam Chomsky, nascido em Filadélfia em 7 de dezembro de 1928 tem seu nome associado à criação da gramática ge(ne)rativa transformacional e evidentemente à célebre Hierarquia de Chomsky, que versa sobre as propriedades matemáticas das linguagens formais. Além de seu premiadíssimo trabalho acadêmico, tanto como professor quando pesquisador em linguística, Chomsky tornou-se muito conhecido pela defesa de suas posições políticas de esquerda  –  descrevendo -se como socialista libertário – bem como por seu corrosivo posicionamento de crítico contumaz tanto da política norte-americana quanto de seu uso da comunicação de massa para manipular a opinião pública. Em uma de suas frases de efeito, Chomsky afirma que “a propaganda representa para a democracia aquilo que o cassetete (ou repressão da polícia política) significa para o estado totalitário”.
    Em seu livro A Manipulação do Público, em coautoria com Edward S. Herman, Chomsky aborda este tema com profundidade apresentando seu modelo de propaganda dos meios de comunicação, documentado com numerosos estudos de caso, extremamente detalhados (*).

    A indústria da manipulação, da alienação e do condicionamento é uma poderosa fonte de lucro em detrimento da infelicidade de multidões. É a cultura da boçalidade. Estupidalizar, estuporar e boçalizar é capitalizar riquezas colossais com a fiel certeza de dominar, controlar sem fim o povo. “A elite”, “os donos do poder”, “os senhores do capitalismo mundial”, são detentores da fortuna econômica do planeta.
    Boa parte da imprensa, da religião e do governo com a arte do engano, presta um serviço destruidor da dignidade da pessoa humana. Corrupção, mentiras e violência é o pão de cada dia que eles fabricam e dão ao povo. “Com o tempo uma imprensa cínica e corrupta formará um público tão vil quanto ela”, disse Joseph Pulitzer (1847-1911), jornalista e editor estadunidense.
    Tenhamos consciência de uma atitude urgente de libertação em prol do povo. Mais do que nunca, a missão profética se faz necessária pela paz, pela justiça, pela vida e pela fraternidade universal!
    Pe. Inácio José do Vale
    Professor do Instituto de Teologia Bento XVI
    Sociólogo em Ciência da Religião
    Fraternidade Sacerdotal Jesus Cáritas
    E-mail: pe.inacio.jose@gmail.com