O incrível grau de irrealismo das autoridades diante da própria essência do mundo em que vivemos: a crise
O terrorista Salah Abdeslam foi o mentor dos atentados que mataram 130 pessoas em Paris no dia 13 de novembro de 2015. Ele se tornou, por causa desse crime covarde, a pessoa mais procurada pela polícia na Europa.
Em 18 de março de 2016, ele finalmente foi preso – depois de quatro meses solto, escondido no mesmo bairro de Bruxelas em que sempre tinha morado, driblando a polícia da Bélgica e da França embaixo de seus narizes e planejando novos atentados junto com seus cúmplices igualmente desimpedidos.
Planejando e executando: em 22 de março, quatro dias após sua prisão, o terror arquitetado por ele a serviço do grupo fanático Estado Islâmico feriu de morte a própria Bruxelas em ataques simultâneos no metrô e no aeroporto. Foram assassinadas mais 34 pessoas na longa lista de vítimas de uma guerra que materializa a própria essência do conceito de guerra levado à plenitude do seu significado: pura e simplesmente, a ausência da paz a troco de mais nada.
E o que as autoridades belgas, nesse mesmo dia terrível, pediram que a população fizesse?
Pediram que a população parasse de fazer ligações com seus telefones celulares porque as redes de telefonia estavam saturadas.
Parece altamente improvável que seja este o tipo de declaração que um país atacado por terroristas deseje ouvir das autoridades que foram eleitas (e que são pagas) basicamente para cuidar da segurança e da ordem nacional.
Quando a segurança e a ordem são violentamente quebradas, o que se espera daqueles que têm o dever de mantê-las é que apresentem de imediato e com eficácia o plano previamente traçado para restituí-las – e não que solicitem inação e expectativa passiva por parte dos afetados por essa quebra.
Generalizando um pouco (mas bem pouco), podemos sentenciar que as autoridades não só da Bélgica, mas do mundo inteiro, têm dado mostras de que não sabem o que fazer nos casos de crise. De qualquer crise: terrorista, bélica, humanitária, financeira, econômica, política, social, partidária, jurídica (para não entrar, por um pouco de misericórdia, no campo das crises morais, éticas, filosóficas, existenciais…).
Acontece que a “crise” é, simplesmente, a dinâmica natural da existência no tempo e no espaço.
Tratamos o termo “crise”, erradamente, como se ele indicasse uma exceção dentro de um quadro de ordem – na realidade, a ordem é que é a exceção dentro do natural quadro de crise.
A crise é contínua, dinâmica e evolutiva. A “normalidade” da existência num mundo espaço-temporal é a crise. A configuração dos cenários de tempo e espaço em que vivemos está sempre em transformação, de todos os pontos de vista: o universo não está parado, mas se expandindo; o planeta não está parado, nem só girando placidamente em torno do sol e de si mesmo, mas se convulsionando “por dentro”, na sua constituição material, ininterrupta e imprevisivelmente; a mesma natureza que poeticamente cantamos como harmonia e serenidade responde aos nossos versos com furacões, terremotos, erupções, tsunamis, epidemias, degeneração celular, doença, dor e morte; as sociedades vão e vêm para frente, para trás, para os lados e em círculos ao mesmo tempo e o tempo todo.
Em dez mil anos de sociedade humana poderíamos muito bem ter percebido esta realidade com um pouco mais de clareza, não?
O que se espera das assim chamadas “autoridades” é, antes de qualquer coisa, que enxerguem a realidade do jeito que ela é e não do jeito que as ideologias tentam moldá-la, mediante teses que a prática pisoteia implacavelmente.
É claro que as sociedades e os indivíduos podem e devem aspirar a um maior controle da dinâmica viva das crises contínuas, bem como à manutenção, tanto quanto possível, de certos “oásis espaço-temporais” de quietude em meio aos sacolejos, tantas vezes violentos, que impulsionam a existência.
Mas não se consegue chegar a esse ideal cenário de “gestão da crise” sem antes reconhecer que o mundo material é praticamente feito de crise – e que essa dinâmica não pode ser extinta sem que se extinga com ela a existência mesma do mundo material.
No caso específico do terrorismo que vem apavorando a Europa, bem como da sua ligação com o fenômeno imparável da migração, a miopia das autoridades (e de um número nada surpreendente de cidadãos) foca em tentar “bloquear” as dinâmicas imbloqueáveis que compõem a essência do existir. Perdem tempo e bilhões de euros querendo proibir seres humanos de se locomoverem, se misturarem e se influenciarem mutuamente, o que só não é mais impossível do que estúpido, já que os seres humanos necessariamente se locomovem, se misturam e se influenciam mutuamente. É berrante que está predestinada ao fracasso essa pretensão irracional de tornar estático aquilo que não pode não ser dinâmico.
A atitude sensata diante da crise em constante manifestação não é a de impedir o dinamismo da existência de se impor aos seres existentes, mas sim a de lidar com a dinâmica da existência seguindo a sua regra mais básica, natural e, esta sim, “imutável”: a adaptação contínua. É preciso adaptar-se ao fato impositivo da migração humana, da convivência entre pessoas de diferentes contextos culturais, dos benefícios que essa dinâmica traz consigo e dos riscos que ela envolve quando os contextos culturais entram em choque (ou seja, quase sempre).
Ou se perde tempo e dinheiro tentando em vão impedir a dinâmica da realidade ou se investe tempo e dinheiro adaptando-se a ela com a mais eficiente combinação possível entre ordem humanamente construída e caos naturalmente destruidor.
“Mas isso é difícil!”. Oh, não me diga!
Diante deste desafio, pedir que as pessoas parem de fazer ligações no dia em que elas mais querem e precisam fazer ligações é acionar um alerta vermelho mais assustador que o terrorismo – porque é uma declaração explícita de que não se entendeu nada sobre o que está acontecendo e menos ainda sobre o que pode (e vai) acontecer.
Fonte: Aleteia