Em meados de fevereiro de 1971 durante um almoço oferecido a ministros de negócios estrangeiros, na embaixada do Brasil em Oslo, surgiu o primeiro boato de que o arcebispo de Olinda e Recife e Olinda, Dom Helder Câmara, estaria novamente entre indicados aceitos para concorrer ao Prêmio Nobel da Paz, como ocorrera no ano anterior. Surgiu também a novidade: o chanceler alemão Willy Brandt, nome de peso na política europeia, também estava no páreo.
Em 11 de março de 1971, o embaixador em Oslo, Jayme de Souza Gomes, envia um telegrama à secretaria geral do Itamaraty, confirmando a notícia e já antecipando os candidatos mais cotados para ganhar – o brasileiro e o alemão. Quanto ao brasileiro, era preciso agir para que fosse derrotado. E torcer pelo crescimento do alemão. Adepto dos longos relatórios, Jayme faz seus contatos de sempre e descobre quem participou dos trabalhos da Comissão Nobel do Parlamento Norueguês, o que foi dito, número de inscritos, e avalia os pontos positivos e negativos de Brandt, Dom Helder e dos irmãos indigenistas Cláudio e Orlando Villas-Boas, que logo seriam descartados.
Sobre Dom Helder, os pontos positivos, a exemplo da eleição que de 1970, seguiam os mesmos, acrescidos de um sentimento forte, entre diversos meios de comunicação noruegueses e europeus, de que o brasileiro fora injustiçado, no ano anterior. “Aqui, pois, não caberia realçar o prestígio do prelado brasileiro. Seria uma inútil repetição do que esta Embaixada tem informado”, diz o embaixador. Mas o que importava era saber o que “enfraquecera” Dom Helder, no conceito da Comissão Nobel.
Um dos pontos negativos fora fruto de uma artimanha do empresário Tore Munck, um dos diretores da Munck do Brasik S.A, que colheu no Brasil e publicou, em seu jornal, na Noruega – o Morgenposte – artigos apontando Dom Helder como “ex-fascista”, pelo fato de ter sido integrante da Ação Integralista Brasileira. Mas o principal “enfraquecimento” era o “receio” de que o brasileiro pudesse ter, com a outorga do Prêmio Nobel, cada vez mais influência, e isso pudesse contribuir “para a implantação de um governo de extrema esquerda no Brasil”, a exemplo do que acontecera recentemente no Chile – ou até em Cuba – com os problemas de “expropriação” ou “estatização”. Isso poderia colocar em risco os capitais estrangeiros. Os noruegueses, donos do Prêmio Nobel, despejavam rios de investimentos no Brasil, em 1971.
Era um raciocínio movido mais pelo bolso do que pela ciência política. No mínimo, a transformação de um arcebispo miúdo e cativante, num Che Guevara alucinado. O Brasil, em março de 1971, era governado sob a truculência do general Emílio Garrastazu Médici, os grupos de guerrilha rural ou urbana estavam sendo dizimados, a classe média celebrava o crescimento econômico. O país terminou 1970 com um crescimento de 9,5% do PIB e inflação de 20%. Não havia, nem nos maiores delírios, a possibilidade de um Governo de extrema esquerda. Mas detalhes como “ameaça aos capitais estrangeiros” e “risco aos investimentos noruegueses” se tornara o mote que a ditadura brasileira passou a utilizar, de forma sistemática e articulada, para derrubar Dom Helder pela segunda vez. Ou, como diziam os documentos da embaixada, para “neutralizar” a campanha do prelado brasileiro ao Nobel.
Na publicação Cadernos da memória e verdade – volume 4, publicado recentemente pela Comissão da Verdade Dom Helder Câmara de Pernambuco, que analisa o papel da ditadura brasileira contra a indicação de Dom Helder ao Nobel, há um episódio que ilustra os bastidores de uma “neutralização”. Vasco Mariz, então chefe do Departamento Cultural do Itamaraty, teria sido convocado para uma reunião com o secretário-geral do órgão, Jorge de Carvalho e Silva. Tinha sido a primeira indicação de Dom Helder ao Nobel, em 1970, e o alarme disparou. Muniz foi informado que o brasileiro era favorito. Recebeu a missão de convocar uma reunião com os embaixadores dos países escandinavos (Noruega, Suécia, Dinamarca e Finlândia) e comunicar o desconforto do governo brasileiro.
O encontro aconteceu, ironicamente, na Sala dos Índios, do Palácio Itamaraty. Foi solicitado, com todas as letras, “a título excepcional”, que os embaixadores interviessem junto à Fundação Nobel, “para evitar a escolha”. Segundo o relato de Mariz, todos os embaixadores voltaram, dias depois, e deram a mesma resposta – seus governos não interfeririam em “temas do Nobel”.
No livro que publicou em 2013, intitulado Nos bastidores da diplomacia: memórias diplomáticas, resgatado pela Comissão da Verdade de Pernambuco, Mariz conta uma história impressionante, que escutara de Alarico Silveira, então chefe do Serviço de Informações do Itamaraty:
“Foram convocados os presidentes e diretores de todas as empresas escandinavas no Brasil, como Volvo, a Scania, Vabis, a Ericsson, a Facit, a Nokia e outras menores, e lhes foi solicitado que interviessem na Fundação Nobel para evitar a concessão ao Prêmio Nobel a Dom Helder Câmara. Todos lamentaram não poder intervir no caso”. O oficial general que presidia a reunião simplesmente deu um murro na mesa e anunciou: “Se os senhores não intervierem com firmeza e Dom Helder chegar a receber o prêmio Nobel da Paz, então as suas empresas no Brasil não poderão remeter um centavo de lucros para as respectivas matrizes”.
Ao ler este relato em um livro de memórias de um ex-diplomata, Manoel Moraes esfregou os olhos e não acreditou. “Fiquei tão impressionado, que telefonei para ele, que confirmou tudo. Foi exatamente isso que aconteceu”, diz, um dos autores do livro da Comissão da Verdade. Um ilustre desconhecido entra em cena: Felix A. Morlion, O.P. Pelos documentos diplomáticos fornecidos pelo Itamaraty à Comissão Estadual da Memória e da Verdade Dom Helder Câmara, de Pernambuco, em dezembro de 2014, o cerco à candidatura do brasileiro, em 1971, passou por inúmeras articulações. Tudo valia a pena, desde que ele não vencesse.
Era maio de 1971, quando Tore Munck chegou à embaixada brasileira, desta vez não com alguma informação ou picuinhas dos bastidores do Comitê do Nobel, mas com uma novidade – uma monografia –, que tinha o estranho título “A dialética Política de Dom Helder Câmara”, produzida por Felix A, Morlion, O.P, um nome desconhecido para os brasileiros. Segundo Munck, o material teria sido viabilizado pelo embaixador Roberto Campos.
Belga, Morlion era uma figura ambígua: se por um lado ajudou judeus a fugirem da Gestapo na II Guerra e escreveu roteiros para o cinema neorrealista italiano, a partir do pontificado de Pio XII atuou nos bastidores do Vaticano como diplomata, mantendo vínculos estreitos com a democracia-cristã italiana e, provavelmente, com a máfia. Morlion se propunha a fazer uma “análise conteudista de acordo com a metodologia da análise do discurso”, dividindo depoimentos e entrevistas de Dom Helder em “quatro planos dialéticos”. Após expor as idéias do arcebispo, todas numeradas, abria um bloco e fazia perguntas, de sua autoria, contestando o arcebispo. Todas também numeradas. Em muitos momentos, ele não esconde uma certa admiração pelo brasileiro e certa vocação para se perder em divagações.
“A análise dos textos escritos por Dom Helder nos faz possível perceber o quão impressionante e dinâmicos são seus pronunciamentos para esses grupos. Não podemos então partir do geral para o particular, dos efeitos imediatos, intermediários e causas principais. “Se não tivermos o sucesso em entender a força espiritual de Dom Helder Câmara e, ao mesmo tempo, prover respostas concretas ao que ele tem arguido, nós não podemos reclamar de sermos taxados de culpados pelo pecado da omissão”.
O documento tinha uma característica – grandes colagens de depoimentos do arcebispo, sem data ou fonte, como no capítulo “A estrutura do novo socialismo”: “Eu sou socialista. Deus criou o homem na sua imagem para que este possa participar da sua criação, e não ser escravo, como se pode aceitar o fato de a maioria dos homens ser explorada a viver como escravos? Eu não consigo ver nenhuma solução no capitalismo. Mas eu também não vejo a solução nem nos exemplos do socialismo oferecido atualmente porque estes são baseados na ditadura”. “Meu socialismo é especial, um socialismo que respeita a pessoa humana e segue os evangelhos. Meu socialismo é justiça”.
A embaixada do Brasil em Oslo precisava de uma novidade para sensibilizar os jurados do Nobel e providenciou rapidamente a tradução e a impressão do documento, para distribuição entre os membros da Comissão do Nobel do Parlamento Norueguês – com especial atenção ao relator do processo de Dom Helder. Depois de espalhar a “Dialética”, surgiu um questionamento básico: afinal de contas, quem é esse tal Felix A.Morlion, O.P? Jayme Sousa Gomes manda carta ao embaixador Roberto Campos, que morava no Rio de Janeiro, pedindo dados biográficos do “Senhor Félix”, para melhor identificá-lo perante a Comissão do Nobel. Ao que parece, foi olimpicamente ignorado. Após dois meses mandando ofícios e telegramas, cobrando respostas, somente em julho de 1971 recebe um telegrama da embaixada brasileira no Vaticano.
“Fui informado que padre Felix Andre Morlion nega existência da mencionada monografia. Consegui, entretanto averiguar que ele está organizando no maior sigilo um estudo sobre Dom Helder Câmara cuja essência e finalidade, devido ao caráter sigiloso que ainda se reveste o assunto, não me foi possível até agora desvendar”, responde um funcionário que assina o documento secreto como Jobim.
Ele complementa:“Posso assegurar a vossa excelência que Padre Morlion não desfruta de bom conceito em esferas responsáveis do Vaticano, pois segundo Monsenhor Benelli me confiou ontem em caráter pessoal, trata-se de um imaturo, adjetivo esse que, dentro do contexto como foi empregado tem o sentido de irresponsável”. Além de irresponsável, esperto.
Jobim contou que Morlion conseguiu ligações nos Estados Unidos para criar a insittuição PRO DEO, arrecadando “vultosas subvenções”. No Brasil, ele conseguiu uma generosa doação de US$ 400 mil. Somente dia 29 de julho de 1971, Jobim consegue confirmar a autoria da “Dialética Política de Dom Helder”. Uma boa fonte eclesiástica revelou que fora mesmo Morlion o autor da monografia, que teve “cópias em número restrito e de circulação sigilosa”. O informante de Jobim garantiu que tinha seu exemplar, mas que seu intuito era “não dar conhecimento a ninguém”.
As tramoias eram certas. No dia 20 de outubro de 1971, o chanceler Willy Brandt foi anunciado pela Academia Sueca como vencedor do Prêmio Nobel da Paz. Teve três votos. Dom Helder, dois.
Os estranhos bastidores Nobel da Paz de 1970
Em janeiro de 1971, a embaixada brasileira em Oslo conseguiu uma cópia de um extenso relatório, de 61 páginas, produzido pelo Comitê Nobel do Parlamento da Noruega. Número de inscritos, relatórios individuais, nomes de cada um dos relatores, que resumiam a trajetória de cada concorrente, da premiação referente a 1970. Estava assinado por August Schou, diretor do Instituto Nobel, e a palavra “Confidencial”, no alto da capa, de nada serviu. Dos 38 candidatos que passaram pela pré-seleção, sete foram considerados finalistas. Entre eles, estavam os brasileiros Dom Helder Câmara e Josué de Castro.
O número de páginas dedicado a cada candidato, poderia ter algum peso, mas naquele ano, coisas estranhas aconteceram. Josué de Castro, cientista brasileiro de renome internacional, autor do clássico Geografia da Fome, publicado em 1946, amargando seu exílio após o Golpe de 1964, ganhou pouco mais de duas páginas, escritas com imensa má vontade pelo consultor e doutor em Economia, Prebem Muthe. A julgar pelo primeiro parágrafo, o recifense jamais seria um Prêmio Nobel da Paz.
“O perito em nutrição, Josué de Castro, já foi proposto como candidato ao Prêmio da Paz em 1963, e a sua atividade foi objeto de um relatório, naquele ano. Tendo sido difícil obter informações suplementares sobre o trabalho de Castro desde aquela época e a proposta, deste ano, de Lord Boyd Orr [o proponente à candidatura de Castro]não contém nada de novo a cerca (sic) da obra de Castro”.
A julgar pelo relator, o Nobel de 1970 não foi muito cuidadoso com os convidados para emitirem pareceres. “Um ponto, entretanto, está esclarecido: ele deixou o Brasil depois do golpe de Estado em 1964, e ele vive atualmente em Paris. Quanto à sua projeção dentro das Organizações Internacionais de Alimentação, é difícil ter-se uma ideia de sua verdadeira atuação”. Candidato de número seis, Dom Helder Câmara foi relatado pelo consultor e doutor em Filologia, Jakob Svendrup. A indicação do brasileiro fora proposta pelo Nobel da Paz de 1968, René Cassin, Presidente do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, acompanhado de vários parlamentares do Eire, parlamento da Holanda e três membros do Parlamento Sueco.
São 16 páginas datilografadas com esmero pelo relator, que produz um breve e denso perfil humano e social do arcebispo brasileiro, apontado como um “protagonista importante para a não-violência e na obtenção de reformas sociais”. Ao longo do texto, Svendrup não esconde a admiração por Dom Helder. Lembra que sua presença constante na imprensa mundial, e o relaciona diretamente aos acontecimentos no Brasil. “Isso é devido ao fato de que ele é considerado como líder da oposição contra um regime que se torna cada vez mais ditatorial. A luta que ele leva não é sem risco. A sua casa foi metralhada e um de seus colaboradores mais íntimos, Henrique Neto, foi brutalmente assassinado”, diz, referindo-se ao brutal assassinado do Padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto, em 26 de maio de 1969, no Recife”. O vencedor foi o agrônomo norte-americano do Centro Internacional de Melhoramento do Milho e Trigo, o hoje esquecido Norman Borlaug, ganhou apenas duas páginas de avaliação do Comitê do Nobel. Ele tinha criado um “novo panorama para a produção de alimentos no mundo”.
Fonte: Zero Marco