“OXALÁ OUVISSES HOJE SUA VOZ” (Sl.94)
Este salmo recitamos todos os dias nas Laudes. Talvez a grande questão teológica não seja saber se Deus existe ou não, mas se Ele fala. Um Deus “ato puro” ou “pensamento do pensamento” como o concebera Aristóteles, nada significaria para nossa vida. Da mesma maneira que o deus das novas tecnologias, que tudo sabem e podem, mas a vida em si mesma nem com um dedo tocam, nos diz Wittgenstein, são mera fantasia. Um Deus que fala conosco não só nos revela que Ele existe como também nos faz filhos Seus. Ele não fala com as pedras, plantas ou animais, embora elas sim falam de Deus por serem suas criaturas, por isso existirão eternamente, mas na condição de criaturas. Deus fala com alguém, não com algo, como faria um louco. O maior castigo de Deus, e nossa maior tortura, segundo Am.8,11, é o silêncio de Deus . Não foi anedótico que Michelângelo, admirado pela sua admirável escultura de Moisés, batesse com uma vara na mesma dizendo: “Fala!” De fato, sem palavra, seu trabalho era inútil e insignificante. Sem a palavra da mãe, a criança morreria. Médicos nazistas fizeram essa experiência com bebês judeus. Apenas se alimentavam sem palavras, meses depois, morriam.
“O homem é um ser que tem palavras”, dizia Aristóteles. Se apenas pensarmos sem falar verbal ou mimicamente , enlouqueceriamos. O velho Chacrinha os expressava engraçadamente “Quem não se comunica, se ‘estrumbica’”: Somos, como Deus, essencialmente comunicação.
Deus falou, “disse” para criar o mundo (Gn.1) e continua a falar para salvar-nos da presente situação de pecado e morte na qual nascemos. Por isso, Cristo, o Salvador do Mundo, é chamado Verbo ou Palavra (Jo.1). Sua Palavra dá sentido à nossa existência: “Só Tu tens palavras de Vida Eterna” (Jo.6) é a grande conclusão de Pedro a Seu respeito.
De fato, o mundo está cheio de palavras enlouquecidas, diz Chesterton. Nenhum discurso humano, científico ou filosófico nos serve para responder à nossa problemática existencial, pois se morremos, tudo é absurdo.
Cristo é a Palavra de toda palavra porque nele temos a verdadeira vida, imortal e gloriosa.Tudo quanto Deus tinha a nos dizer, nos foi dito em Cristo, que disse: “Eu sou a Ressurreição e a Vida”. É Ele tudo quanto procuramos atrás de todos os discursos humanos.
DOMINGO DA PALAVRA
O papa Francisco, dois anos atrás, consagrou o terceiro domingo do T.C. à Palavra de DEUS. Não comentamos domingo passado, embora a consciência da nossa temporalidade existencial é a maneira como Deus fala conosco no caminho do dia a dia . O papa diz que o Domingo da Palavra tem de ser o dia de todos os dias.
A Bíblia orienta nossa vida e é uma história de crescente esperança. “Ignorar a S.E. dizia São Jerônimo (sec.IV) é ignorar a Cristo.
A Bíblia fala de Cristo, morto e ressuscitado (1Cr. 15) e a Fé nos vem através desta Palavra ( Rm.10). Escrita e dita à maneira humana, como o Pão da Eucaristia, converte-se no próprio Cristo pelo
Espírito Santo quando é proclamada, lida e ouvida.”Sedentos, dela bebemos como fonte, deixando sempre mais água do que tomamos… Ela é palavra colorida, na qual Deus esconde seus segredos e tesouros para Nela encontrar tudo quanto buscamos” (São Efrem, sec.IV ).
A Biblia não é letra, mas Espírito de vida. O AT não é velho ,mas palavra profética do mesmo Cristo, que nos torna sempre contemporâneos. Produz em nós amargura e doçura (Ez. 3,3) e (Ap.10,10) consciência de pecado e graça, condenação e Salvação, mas, em Cristo, é Vida Eterna. A Bíblia transcende-se a si mesma como letra. Em Maria, a Palavra se fez fruto bendito no seu ventre. A letra tornou-se o próprio Deus.
“FAREI SURGIR UM PROFETA E POREI MINHAS PALAVRAS NA SUA BOCA” (Dt. 18,15-20)
Deus promete ao seu povo um profeta, não comprometido com centros de poder politico e religioso, porta-voz do mesmo Deus.
No povo de Israel, desde o século VIII a.C., até Cristo, foram numerosos os profetas que falaram em nome de Deus. Mas, haveria um profeta particular que portaria esse título de maneira singular, “o profeta”, que seria Cristo. Ele não falaria nem sequer em nome de Deus, mas em nome próprio, pois era o mesmo Deus. Este profeta é aquele a quem Deus prometeu a Moisés enviar para nos falar de maneira humana, pois se nos falasse como Deus, ficariamos aterrorizados: “Que eu e o povo não torne a ouvir tua voz. Senhor, para não morrermos”. Até Cristo, Deus era temido, pois no regime da lei ou dos méritos, ninguém poderia se salvar. “A graça nos veio por Cristo” e, com isso, nossa Salvação. Antes de Cristo tínhamos de nos salvar, agora somos salvos por Ele. Cristo, disse ser “mais do que o profeta”, pois não só anunciava a Salvação mas a tornava realmente presente na Sua Pessoa. Sua Palavra deixa de ser discurso para se tornar “carne”, história e fato. A maior parte do povo, mesmo cristão, desconhece o que Ele disse e ensinou; inclusive o próprio Cristo não fez questão de escrever seus ensinamentos, lhe bastava que o mundo lembrasse e tivesse presente que, morreu numa cruz amando seus inimigos, e que venceu a morte ressuscitando, não para si, mas em favor de todos, justos e pecadores.
Não é o mesmo termos uma filosofia de vida do que termos a mesma Vida. Cristo é nossa verdadeira Vida a desabrochar gloriosamente quando deixarmos as lágrimas e a morte neste vale da nossa existência terrena.
Nesse sentido, podemos dizer que Cristo é “o Profeta” porque é nossa feliz esperança, nosso futuro glorioso.
“EU QUISERA QUE ESTIVÉSSEIS LIVRES DE PREOCUPAÇÕES” (1Cor.7,32-35)
São Paulo faz uma apologia ao celibato como um dom de Deus em favor da Salvação do mundo. Não despoja a santidade do casamento, que em Ef. 5, chama de “grande sacramento”, portanto, sinal de Salvação. Não casar por causa do Reino dos Céus, é duplamente benéfico na história da Salvação, ainda a caminho.
De um lado, uma pessoa, livre dos compromissos familiares, está mais disponível para servir evangelicamente os outros. Mas é também um grande “sacramento” da Salvação, porque renunciar a ter família por causa do Reino dos Céus, é a maior prova da Fé e esperança nesse Reino.
A maior parte das culturas curtiram a esperança de sobreviver após a morte através duma descendência filial. Abraão pensou assim. Tudo quanto queria era ter um filho para poder prolongar sua vida para sempre. Uma pessoa que renuncia a ter filhos, não por egoísmo, mas porque acredita na Vida Eterna, a cuja causa serve em favor da esperança salvífica de todos, certifica que, de fato, Ela existe, para dar sentido à nossa vida na terra, que não pode finalizar na morte.
Estamos tão acostumados a ver religiosos/as nos conventos e Igrejas, que possivelmente, vejamos essas pessoas como quem vive essa vida apenas como uma outra forma de viver, da mesma maneira que vemos casados e solteiros. A pessoa que renuncia ao casamento evangelicamente não é solteiro/a mas sinal de Vida Eterna para todos. Eles, diz São Paulo, teem de “permanecer junto ao Senhor sem distração”.
“UM NOVO ENSINAMENTO! ATÉ OS DEMÔNIOS LHE OBEDECEM”(Mc.1,21-28)
Jesus inicia sua missão profética primeiro nas Sinagogas, depois o fará abertamente nas ruas e povoados. Segundo o relato de S. Marcos, começou na Sinagoga de Cafarnaum , que significa campo ou terra da Consolação. De fato era um território desprezado pelo povo judeu. A Salvação começa pelos últimos, para , assim, garantir a Salvação de todos. Parece que a vacina tão almejada contra o coronavírus, está programada com esse mesmo espírito salvífico de Deus: comecemos pelos mais vulneráveis. Teria de ser o princípio de todos os governos, mas o espírito diabólico de salve-se quem puder estará presente até o fim dos tempos. Na sinagoga de Cafarnaum estava presente um homem possuído de um demônio, espírito do mal, que gritou para Jesus: “Que queres de nós. Viestes para nos arruinar? Sei que tu és: o Santo de Deus”. E Jesus ordenou sair daquele homem, vítima do seu mal , para admiração de todos ali presentes, que perguntavam-se: “Que é isto? Um novo ensinamento com autoridade! Até os demônios lhe obedecem”.
Ninguém sabe melhor que Deus existe do que o demônio. “Porque existe o mal é que Deus existe”, afirma Santo Tomás de Aquino (sec.XIII). De fato, o mal, personificado pelo demônio, está presente na nossa vida e parece imperar sobre a mesma, por isso é que precisamos e cremos na Salvação de Deus, feita real e presente em Jesus de Nazaré. Seu imperativo: “sai deste homem”, permanecerá até o fim dos tempos. O mal está presente neste mundo, mas carece de futuro. Esse é nosso grande consolo e feliz esperança, nosso Cafarnaum ou terra, por um tempo abandonada, mas agora consolada por Cristo.
Padre Jesus Priante
Espanha
(Edição por Malcolm Forest. São Paulo.)