Cartas do Padre Jesus Priante – A Dama da Alvorada

“MORRO, MAS NÃO POSSO MORRER”

Era a confissão de Unamuno, o maior pensador espanhol do século XX, desde seu “trágico sentimento da vida”, como ateu. Se morremos, dizia, tudo é absurdo. De fato, a única razão de termos vindo a este mundo é a própria vida. Se tivéssemos absoluta certeza de morrermos para sempre, não só a vida seria impensável, como lutar por ela também.

Morremos, mas não podemos morrer racionalmente. Platão (séc. IV a.C) dizia que nosso pensar passa pelo problema da morte. Pensamos porque somos conscientes da nossa caducidade. E desenvolvemos nosso pensar como uma forçada luta contra a morte.

Cientista, filósofo, poeta, camponês ou teólogo acordam todos os dias pensando como não morrer. O animal não pensa porque carece de consciência da sua própria morte. Embora Aristóteles (sec. IV a.C) definisse a Deus como “pensamento dos pensamentos”, por ser imortal, em si mesmo, carece de ideias e pensamentos, assim como os anjos. Só o ser humano pensa porque só ele sabe que morre, mas não pode, nem consegue morrer totalmente.

No século XIV, alguns teólogos afirmavam que Deus é vontade e não razão. Ele é amor sem medida ou razão. Razão (“ratio”) significa em latim cálculo ou medida. Daí a palavra “mesura”, sinônimo de racionalidade.Também nós deixaremos nosso pensar, sempre preocupado, no cemitério, quando, ressuscitados, tenhamos a vida eterna com Deus. Pesa mais a ideia ou pensamento de morrer do que a própria morte, dizia Pascal. Não haveria depressão, angústia e ansiedade se tivéssemos a verdadeira Fé, pela qual sabemos que somos imortais. Para aquele que crê na Ressurreição, a morte é um momento da mesma vida que passa a ser feliz e gloriosa.

“Quem crê, vive, quem não crê, permanece preocupado com a morte” (Jo.11) o quê, por sua vez, não nos deixará more. Muitos pensadores ateus, como Voltaire, Schopenhauer, Feuerbach, Borges, Sartre, Camus, Unamuno, Cioran e dezenas de outros confessaram ao fim da vida terrena que queriam morrer de vez, mas eram,!racionalmente, incapazes de dar esse salto mortal. Heidegger, mesmo tendo declarado ser a morte nossa última possibilidade, disse: “quem sabe se ainda Deus não nos pode salvar”.

Oscar Niemeyer, centenário, se foi deste mundo lamentando não ter podido construir uma ponte para poder cruzar o abismo da morte. Pena não ter visto já construída essa ponte em Cristo Ressuscitado. Mas também ele passou por ela.

“DEUS NÃO CRIOU A MORTE… CRIOU TUDO PARA A VIDA, E EM NENHUMA DAS SUAS CRIATURAS HÁ VENENO MORTAL” (Sb. 1,13-25)

O livro da Sabedoria foi escrito no seculo I.a.C, em Alexandria (Egito) centro cultural e filosófico daqueles tempos. Como para nós, e para todas as gerações, a morte também era seu único e maior problema. Aqueles pensadores morriam, mas não podiam morrer se queriam continuar pensando na própria vida e na existência deste mundo em que habitamos. Era igualmente inconcebível pensar num Criador destinando suas criaturas para o nada. Inclusive adiantaram-se aos nossos tempos em que não são poucos os que pensam que tudo é impregnado de espírito e de vida. Nao é o átomo inerte o primeiro tijolo constitutivo da matéria, mas esse misterioso “bóson” que, não havendo outro atributo mais adequado, chamaram de “partícula de Deus”.

As criaturas servem para nosso bem e “nelas não há veneno mortal”. Jesus reafirma esta verdade: “Deus não é um Deus de mortos e, sim, de vivos”(Mc. 12,27). “Somos sonhados por Deus para a vida”, costuma dizer o Papa Francisco. São Irineu (sec. II) afirmava: ” A glória de Deus é que todos vivamos”. A razão de Deus ter-se feito homem é comunicar-nos sua própria vida: “Eu vim para que todos tenham vida” (Jo.10.10). Estas palavras deveriam ser estandarte em todos os campos, caminhos, povoados, casas e cidades, para dar sentido à nossa luta pela vida. De outra maneira, esta será uma “paixão inútil”, como Sartre disse.

A Bíblia é o grande poema da vida. Ela é essencialmente “evangélica”, a feliz notícia da nossa vitória contra o pecado e a morte que neste mundo nos escravizam e acabrunham. (Hb.2,16)

Toda Palavra de Deus é palavra de vida . “A morte entrou no mundo pela inveja do demônio” (Sb.1,24). O demônio é chamado na Bíblia, pai da mentira. Quem pensa que está fadado a morrer está sendo enganado pelo demônio. São Paulo expressa essa mesma ideia, pondo no lugar do demônio o pecado. “A morte entrou no mundo por causa do pecado” (Rm.5). E o pecado, como revelado em Gn.3, consiste em pretender viver por nós mesmos ou, melhor, sentir-se separados de Deus. Esse é o sentido da árvore proibida do bem e do mal. Deus lhes alertou que, comendo do seu fruto, experimentariam a vida como mortal caso quisessem viver por si mesmos. Nao morremos porque pecamos, pois fomos criados imortais, mas experimentamos a nossa existência como mortal se Deus não for fonte e esperança da vida que temos. A ideia defendida por alguns teólogos de que Adão e Eva (a humanidade) gozavam de imortalidade antes de pecar como um dom “preternatural”, fora da própria natureza humana , per se mortal, contradiz a mensagem do livro da Sabedoria. Não só nós, humanos, toda a Criação carrega a semente da imortalidade. “Nada será aniquilado, tudo será transformado”. Nesse sentido, o povo americano o expressa admiravelmente quando referindo-se ao que nos achamos “outra vida , eles a concebem como continuidade desta, revestida de glória, dizendo “life after life”, vida após a própria vida.

Cristo veio “expulsar” o demônio da mentira diabólica de estarmos condenados a morrer. A morte nega a Criação e ao próprio Deus. É interessante o detalhe da narrativa do Paraíso no qual viviam felizes, Adão e Eva porque se sentiam imortais. Junto à árvore proibida do bem e do mal, existia uma outra: “a árvore da vida”, da qual podiam comer, ao menos ela não lhes era proibida. Só quando resolveram comer da árvore do bem e do mal, para serem como Deus, é que experimentaram sua precariedade e necessidade de lutar e “suar” para ganhar o pão de cada dia.

Teve Deus de vir na pessoa de Jesus de Nazaré para nos revelar ser Ele essa mesma
paradisíaca árvore da Vida, quem “comer minha carne (vida) não morrerá” (Jo.6). Em ” Laudato sii”, o Papa Francisco interpreta o mal e a morte como uma carência de Deus . A dor, vazio e morte do mundo, dura um momento, o dom da vida de Deus, eternamente. (Sl.29)

“VISTO QUE TENDES ABUNDÂNCIA DE FÉ E DE AMOR, SUPRAM AS CARÊNCIAS DOS SEUS IRMÃOS”. (2Cor.8,7- 15)

Os cristãos de Jerusalém sofriam grande penúria por terem sido confiscados seus bens por causa da sua Fé em Cristo. São Paulo promove uma coleta na comunidade de Corinto para suprir suas necessidades. Até nossos dias essa prática cristã permanece. Umas Igrejas ajudam outras em qualquer lugar do mundo, como distintivo do cristianismo. Essa caridade é tarefa universal de todo cristão para todos os tempos pois, como disse Jesus: “Pobres sempre tereis”. (Jo.12, 8) Os pobres cumprem uma missão neste mundo. Sem eles seríamos menos ricos, não só economicamente como, principalmente, em espírito e vida. De fato o rico tem materialmente o que falta ao pobre, mas o pobre dá o que lhe falta ao rico: a necessidade da Vida Eterna que só Deus lhe pode brindar. Buda ensinou aos seus discípulos que todo ser humano é visitado neste mundo por três anjos para lhe guiar no caminho da verdadeira vida, que consiste em atingir o que ele chama “Iluminação” ou Nirvana, a vida feliz. Esses anjos são: a doença, a velhice e a morte, que estão presentes em todo tempo e lugar. É impossível para quem percebe a presença desses anjos não empreender uma viagem para uma outra vida. Nós acrescentaríamos à sabedoria de Buda haver um quarto anjo: os pobres. Eles nos lembram, como o mesmo Jesus disse, que “a vida não depende da abundância das riquezas”. Buda ilustra também esta verdade através de uma parábola. Havia, diz ele, um homem sequioso por se tornar muito rico.nUm dia saiu de casa e foi à procura de tesouros. Encontrou 300 moedas de ouro e, todo feliz, retornou para sua casa. No caminho, encontrou um mosteiro de monges budistas, que buscavam a vida de outra maneira. Entrou no mosteiro e entregou suas 300 moedas de ouro. Logo que chegou em casa, contou a sua mulher o acontecido. Recriminado por sua mulher por ter cometido aquela loucura, lhe disse: “Foi essa minha grande oportunidade de possuir meu verdadeiro tesouro. Nunca até agora tinha semeado a semente da felicidade”. Buda levava em seus lábios, cinco séculos antes, as palavras de Jesus: “Fazei para vós tesouros que nem os ladrões nem carcoma devoram”. São Paulo afirma que as riquezas deste mundo cumprem sua verdadeira finalidade se forem para “ter com que socorrer os mais necessitados” (Ef.4,28) a começar pelos próprios familiares, diz em outro lugar. A riqueza não são um mal em si mesmas nem impedem entrar no Reino de Deus, mas delas não nos vem a vida.

“MINHA FILHA, A TUA FÉ TE CUROU” (Mc. 5,21-43)

O Evangelho deste domingo relata dois milagres: a cura de uma mulher cronicamente doente e a reanimação ou ressuscitação de uma menina. Ambos relatos se complementam.

De fato, as doenças anunciam e antecipam nossa morte. Se diz que ambas pessoas afetadas gozavam de bom status social. A mulher doente tinha gasto muito dinheiro com médicos e a menina era filha de Jairo, chefe de uma Sinagoga. Mas suas posses não resolveram seu problema. A mulher lhe bastou tocar a veste de Jesus e instantaneamente foi curada. Tal mulher, chamada nos Evangelhos de “Hemorragia” por sofrer hemorragia crônica, segundo a tradição da Igreja Ortodoxa, seria a Verônica ou Berenice que enxugou o rosto de Jesus na rua, indo para ser crucificado. Inclusive é venerada como santa na Igreja Oriental. Este fato revela-nos o que alguns teólogos chamam “graça estética”, isto é, por contato físico e sensível. Por isso, nós, católicos, costumamos tocar as relíquias (restos do corpo ou das vestes) dos santos para recebermos uma graça ou favor. Mas é na Eucaristia, Deus feito Pão, que pelo seu contato físico com nosso corpo nos comunica a cura de nossos males e nos concede a graça de todas as graças, que é nossa Salvação. O cristão, afirmava Santo Inácio de Antioquia (+107) pela sua Fé, inverte a ordem do mistério da Encarnação: Não é Deus que se faz homem, mas o homem que se faz Deus. “Pela Encarnação de Deus em Jesus de Nazaré, todos nascemos na sua humanidade e divindade”, nos tornamos trans-humanos.

São Justino (sec.II) dizia que a Eucaristia faz presente o Mistério da Encarnação atey o fim dos tempos. Comer a carne de Cristo e beber Seu sangue nos santifica e diviniza. “Quem comer da minha carne e beber do meu sangue, não morrerá”. (Jo.6)

Nesta árdua luta pela vida, só em Cristo, temos a vitória.

No relato evangélico aparece um detalhe cabalístico (conhecimento pelos números) significativo. Se diz que a mulher curada sofria a doença fazia já 12 anos, e a menina ressuscitada tinha 12 anos. Esses números significam as duas etapas da história da Salvação: AC (as 12 tribos de Israel) e DC (os 12 apóstolos, patriarcas do novo Povo de Deus). Cristo chama a ambas “filhas” e, se filhas, nascidas de novo em Cristo. “Se alguém está em Cristo é uma nova criatura” (2Cor.5,7).

A Vida Eterna é a mesma vida de Deus em nós. Seria pequena e infeliz demais se apenas fosse humana ou cósmica. Mais uma vez temos de repetir para ajudar a interpretar melhor o sentido da nossa Fé e da esperança da Salvação, os milagres de Jesus durante Sua vida terreal e os incontáveis outros ao longo da história, muitas vezes para revelar a vida gloriosa dos Seus “santos”, são só “sinais” do Seu reinado sobre o pecado e sobre a morte.

Deus ” irrompe” com Seus milagres mas não “interrompe” o devir da Salvação do mundo, que esperamos até sermos ressuscitados. NA maior tragédia desta vida é acostumar-se a morrer ou como mostra uma velha canção italiana: “Non si puó morire dentro”.

Em Cristo, dizia um grande poeta espanhol, o Arcipreste de Hita (séc.X), a morte não é morte, é a dama da alvorada.

Padre Jesus Priante
Espanha

Revisão e título por Malcolm Forest
São Paulo

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