Bento XVI: 65 anos de ordenação sacerdotal

    O Papa emérito Bento XVI completa, neste dia 29 de junho, o 65º aniversário de ordenação sacerdotal, que foi comemorado ontem, com uma homenagem presidida pelo Papa Francisco, na Sala Clementina, com a presença dos meus veneráveis irmãos Padres Cardeais que trabalham na Cúria Romana e pelos que residem em Roma.
    A data é significativa para, a partir de fontes diversas, tratarmos de alguns aspectos dessa bela e longa vida entregue ao Senhor por meio do exercício do ministério sacerdotal em nível de pastoral paroquial e acadêmico, chegando, depois de bispo e cardeal, a servir como Sucessor de Pedro à Igreja de Cristo de 2005 a 2013. Que Deus seja louvado por essa vida doada a Ele e ao próximo!
    Uma boa obra, dentre tantas traduzidas para o português, está Joseph Ratzinger: uma biografia, da Editora Quadrante, de São Paulo, escrita por Pablo Blanco, um dos maiores especialistas em Joseph Ratzinger, que foi, aliás, a primeira biografia de Bento XVI a aparecer no Brasil. O livro está dividido em duas partes: a primeira é a biografia propriamente dita e a segunda é uma rica seleção de textos feita por Henrique Elfes, intitulada “Reflexões sobre a fé e o mundo”. Trata-se de um farto material, capaz de levar-nos a conhecer melhor o nosso querido Papa emérito, a quem Francisco tem chamado, carinhosamente, de “nono sábio”.
    Joseph Ratzinger nasceu no dia 16 de abril de 1927, na Baviera, região católica da Alemanha, filho de um oficial de polícia rural (Joseph) e de uma cozinheira profissional (Maria). Viveu a infância em um ambiente calmo e tranquilo em meio à natureza, embora nas ruas surgissem frequentes polêmicas entre nazistas e antinazistas. Dentre esses polemistas figurava seu pai que, por discordar dos macabros projetos de Adolf Hitler, teve de mudar várias vezes de residência e escapou por pouco da prisão.
    Com doze anos, Ratzinger entrou para o Seminário, mas também aí passou dificuldades, pois, para receber o carnê que lhe possibilitasse estudar (espécie de bolsa de estudos) era preciso filiar-se à juventude hitlerista, o que ele não fez. Todavia, um professor amigo, conhecendo a capacidade do seminarista, conseguiu-lhe a bolsa necessária. Mesmo assim, teve de deixar seus estudos para ajudar nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, de onde foi mandado para realizar trabalho braçal e, finalmente, de volta à casa de seus pais.
    Essa liberdade, porém, não durou muito, uma vez que foi convocado para servir o Estado em um quartel, do qual fugiu por opor-se às teses nazistas. Perseguido e recapturado, enviaram-no a um campo de concentração onde não havia relógio, calendário ou jornal e a alimentação consistia apenas em algumas colheradas de sopa e um pedaço de pão (cf. p. 34).
    Libertado aos dezoito anos, prosseguiu seus estudos de Filosofia e Teologia, sendo ordenado sacerdote em 29 de junho de 1951, na catedral de Freising. Dedicou-se, então, com profundo zelo, aos trabalhos pastorais (Missas, Confissões, Catequese…) e acadêmicos, recebendo, em 1953, o título de doutor em Teologia e, em 1957, a livre-docência.
    Participou como teólogo do Concílio Vaticano II (1962-1965), colaborando diretamente na redação de dois importantes documentos deste: a Lumen Gentium (Luz dos Povos) e Ad Gentes (Aos Pagãos), sobre a atividade missionária da Igreja entre pessoas que desconhecem a fé cristã.
    Teólogo e escritor de renome mundial, tornou-se Bispo em 28 de maio de 1977, e, num gesto raro, foi nomeado Cardeal em 27 de junho do mesmo ano. Amigo de João Paulo II desde longa data, foi por ele chamado para ser Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em 1981, função que ocupou até ser eleito Papa, no dia 19 de abril de 2005, escolhendo o nome de Bento XVI.
    O mesmo livro que consultamos traz também uma coletânea de trechos de entrevistas, homilias e conferências que Bento XVI proferiu quando Cardeal-Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé.
    Segundo Henrique Elfes (cf. p. 147-148) nota-se, pelos textos selecionados, três características marcantes em Joseph Ratzinger: a) Não é um grão-inquisidor, como, às vezes, falava e fala a Imprensa, mas um homem aberto às questões do mundo para as quais, com humildade, procura formular respostas à luz da razão e da fé; b) Longe de titubear nas colocações, defende com firmeza a verdade em que humildemente acredita e busca responder a todas as perguntas que lhe formulam; c) Possui imensa capacidade intelectual, mostrando-se atualizado quanto ao que se discute não só no mundo acadêmico, mas no dia a dia da humanidade.
    Enfim, está aí um homem assaz diferente daquele que parte da Imprensa, negativamente, sempre quis apresentar sem a devida competência.
    Peter Swald autor do livro-entrevista Luz do mundo também testemunha que “Bento XVI deixou-me a impressão de um homem jovem e moderno, que não passa o tempo a girar os polegares, mas de alguém que ousa audazmente, que permanece interessado. Um mestre seguro, mas também incômodo, porque percebe que estamos perdendo coisas às quais, na verdade, não podemos renunciar.” (…)
    “Deixa seu hóspede completamente à vontade. Em certo sentido, não é um Príncipe da Igreja, mas um Servo da Igreja, um magnânimo, que, no doar-se, consome-se totalmente. Às vezes olha de modo um tanto cético. Assim, por cima dos óculos. E quando o escutamos, sentado ao seu lado, percebe-se não somente a precisão de seu pensamento e a esperança que jorra da fé; torna-se visível de modo particular, outrossim, aquele reluzir da luz do mundo, o olhar de Cristo, que deseja encontrar cada pessoa, e que não exclui ninguém” (Luz do mundo, p. 11 e 16).
    Isso posto, passemos agora às suas encíclicas: A primeira encíclica de Bento XVI foi assinada em 25 de dezembro de 2005 e se inicia com as palavras Deus caritas est (Deus é amor). Trata-se, assim como outras atitudes desse Papa, de um corajoso documento, pois focaliza o verdadeiro sentido do amor em um mundo que cada vez mais fala em amar, e cada vez menos sabe o que esse verbo realmente significa. Reduz-se, não raras vezes, o amor ao ato sexual quase sempre mantido em relacionamentos extraconjugais.
    Ora, o Santo Padre mostra que o ser humano, em seu corpo, deseja o Eros (amor carnal), mas o espírito precisa do Ágape (amor espiritual/fraternal/desinteressado). Este segundo tipo de amor deve complementar o primeiro, a fim de assegurar ao homem a superação de sua animalidade, garantindo-lhe a racionalidade e a espiritualidade.
    Nesse sentido, Jesus Cristo, Nosso Senhor, é o exemplo maior do ágape, pois foi Ele quem primeiro nos amou e nos ensinou, enquanto Igreja, a testemunhar esse amor ao mundo de hoje. A fim de demonstrar que é plenamente possível viver o ágape, Bento XVI termina a sua encíclica citando o exemplo de vários santos que souberam servir desinteressadamente a Cristo e aos irmãos mais necessitados: São Vicente de Paula, São José de Cotolengo, São João Bosco, Santa Luisa Marilac, Madre Teresa de Calcutá etc.
    Em 30 de novembro de 2007, quase dois anos depois de Deus caritas est, o Papa apresentou a sua segunda encíclica, iniciada com as palavras latinas Spe Salvi (Na esperança fomos salvos, de Romanos 8,24). Nela, faz uma grande retrospectiva histórica. Mostra que até o século XVI os homens colocavam, sem dúvida, a sua esperança em Deus. A partir daí, porém, a descoberta de novas terras, com as grandes navegações e o avanço das ciências, fez o ser humano colocar Deus entre parênteses para confiar unicamente nos próprios conhecimentos.
    Ora, tudo isso não pode corresponder aos mais profundos anseios humanos ou responder às interrogações básicas do homem (De onde vim? Para onde vou? Que sentido tem a vida? O que há para além da morte? etc.). De modo que tivemos, a partir daquele século, o aparecimento de um ser humano quase sem esperanças, pois só Deus – e não a ciência, embora importante –, é a plena resposta aos anseios mais íntimos e naturais do homem. Este foi feito para o Senhor e não descansa enquanto não repousar n’Ele, conforme nos ensina Santo Agostinho de Hipona, falecido em 430.
    A terceira e última encíclica de Bento XVI, assinada em 29 de junho de 2009, versa sobre o social, com título Caritas in veritate (A caridade na verdade) e tem, segundo o estudioso Javier Echevarria, um enfoque multidisciplinar, pois nela “se entrelaçam as dimensões da teologia e da filosofia, da antropologia e da economia, da sociologia e da psicologia, para esboçar a problemática do mundo de hoje em seus aspectos externos e internos ao homem, com realce para a ética econômica”. (Antônio Carlos Santini em resenha do artigo Caritas in veritate: por uma economia solidária. Atualização n. 342, jan-fev. de 2010, p. 83-88).
    A grande mensagem desta encíclica é a de que amamos o próximo mais eficazmente na medida em que trabalhamos pelo bem dele em suas reais necessidades. Não só em nível pessoal, mas também institucional. Daí, defender o Papa uma economia solidária alicerçada na ética, que leve ao bem comum do ser humano trabalhador (quase sempre visto apenas como consumidor) e não à busca insaciável de lucros por parte de grupos empresariais que, se não fiscalizados, menosprezam até certos direitos trabalhistas básicos.
    O mundo globalizado há de voltar o seu olhar para o homem e para a mulher do século XXI, que têm fome e sede de justiça e devem encontrar na grande fonte da Doutrina Social da Igreja – e não em outras escolas – um alento e uma força transformadora, na teoria e na prática.
    Eis o que, muito sinteticamente, poderíamos dizer sobre as três encíclicas de Bento XVI, que merecem ser lidas integralmente, no silêncio e na oração.
    Nosso irmão do Regional Leste 1, Dom Fernando Rifan, chegou a comentar que no Papa Bento se manifestou: “Um grande desapego do alto cargo e influente posição, declarando-se apenas um humilde servidor, uma profunda humildade, não se julgando necessário e reconhecendo a própria fraqueza e incapacidade, de corpo e de espírito, para exercer adequadamente o ministério petrino, e, ao pedir perdão – “peço perdão por todos os meus defeitos”.
    Com efeito, dizia ele à revista italiana Trinta Dias, de março de 2007, versão online, que Ratzinger é um homem fabricante de amigos. “A amizade com Deus, antes de tudo, e depois também a amizade humana e fraterna aprendida na escola de Santo Agostinho, para o qual a amizade deve ser cimentada ‘pela caridade difundida em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado’ (Confissões IV, 4,7)”.
    “Enquanto guardião da fé, Bento XVI é alguém que se deixa transparecer na clareza de sua doutrina, numa nobreza de linguagem sempre elevada e, ao mesmo tempo, numa eficaz capacidade de persuasão. Também a escolha do nome Bento é muito apropriada a Joseph Ratzinger. Afinal ‘Quem de fato, mais que Bento de Núrsia, encarna essa síntese entre contemplação e ação que ofereceu uma resposta válida à grande crise da passagem entre o Império Romano e o que viria a ser a Europa’”.
    “Por isso, para conduzir a Barca de Pedro, ‘depois do Papa Wojtyla, que a introduziu no vasto oceano do terceiro milênio, Deus chamou, em 19 de abril de 2005, Joseph Ratzinger, humilde e corajoso ‘servidor da vinha do Senhor’, como chegou a dizer tão logo eleito, suave e forte ‘cooperador da verdade’, como reza seu brasão episcopal”.
    Essas palavras do Cardeal Bertone devem ficar gravadas em nossos corações para sintetizar o pontificado de Bento XVI, que terminou com sua renúncia, concretizada oficialmente no dia 28 de fevereiro de 2013, após quase oito anos de pontificado.
    De minha parte, quero agradecer a Deus a nomeação feita pelo Papa emérito Bento XVI, que me agraciou como Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro e, com grande gratidão, escolheu a nossa cidade para ser a sede da JMJ-Rio 2013, em que tivemos a graça de receber o Papa Francisco. Ontem assistimos, pelo CTV, a singela e profunda homenagem que o Papa Francisco prestou ao Papa Bento XVI; com a preciosa fala do Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, o Senhor Cardeal Gerhard Ludwig Müller, que apresentou uma publicação da LEV a respeito dos escritos de Bento XVI sobre o ministério presbiteral, bem como a sempre apreciada saudação do Cardeal Angelo Sodano, que, poeticamente, ligou o Pontificado de Bento XVI ao espírito do Papa Francisco e do espírito da misericórdia em que todos devemos viver e testemunhar.
    Saudamos o Papa emérito suplicando a Deus conceder-lhe as consolações necessárias, e levamos a Sua Santidade o carinho, o respeito e a unidade das orações de nossa Arquidiocese à sua pessoa, ao seu ministério, suplicando que as suas orações, tão preciosas e necessárias, subam a Deus em favor da paz do mundo e, particularmente, da paz ao Rio de Janeiro.
    O Papa Francisco disse que é sempre bom contar, na “Porciúncula”, como ele chamou o Mosteiro dentro dos jardins vaticanos, com um “vovô sábio” que reza por ele e nas intenções da Igreja que ele serviu, ensinando a todos a buscar a graça do mistério divino. A sabedoria e a santidade do Papa emérito nos ajudam a viver a graça do jubileu e a testemunhar a graça da misericórdia que gera a paz. Parabéns ao Papa emérito pelo seu ministério sacerdotal, e que sua oração seja em favor de toda a Igreja.

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