QUARESMA: CONSCIÊNCIA PASCAL DA EXISTÊNCIA.
O termo grego “quaresma”, quarenta dias, faz alusão a longos tempos em diferentes episódios bíblicos: 40 dias do Dilúvio, 40 anos do povo de Israel no deserto, 40 dias e noites de Moisés na montanha a espera de receber de Deus as Tábuas da Lei, 40 dias de penitência do povo de Nínive, 40 dias passados por Jesus no monte das tentações e outros momentos da história da Salvação. Todos eles relacionados com uma situação existencial de sofrimento, de pecado e morte, convidando o povo à penitência e à conversão.
Esta mentalidade bíblica, preside a maneira de entender em nós, católicos, os 40 dias da quaresma, que imprópriamente foram incorporados no nosso calendário litúrgico no século VI, empobrecendo a grandeza da Páscoa.
Usando o título da grande obra de Proust: “Em Busca do Tempo Perdido”, também nós temos de recuperar o tempo perdido do
mistério pascal, o grande sacramento de nossa Salvação e chave única que Deus nos deu para ler o sentido de nossa existência e da história deste mundo que habitamos.
Durante os cinco primeiros séculos, nossa Salvação pascal era celebrada, com o mesmo realismo que aconteceu pela primeira vez em Jerusalém na morte e na Ressurreição de Cristo.
Celebrava-se anualmente de maneira solene e todo domingo na Eucaristia. Mais tarde, por razões menos pascais, passou a ser celebrada nos dias de semana, como fazemos hoje. A incorporação da memória dos mártires e santos e certos acontecimentos salvíficos, assim como a diversificação dos tempos litúrgicos escureceu o esplendor da Páscoa, o mistério da nossa Salvação, conforme o expressamos na Eucaristia: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa Ressurreição, enquanto esperamos vossa vinda”. Este é o Mistério da nossa Fé. É claro que para exprimir sua plenitude era preciso acreditar que aquele que morre e Ressuscita na Páscoa para nos salvar é o próprio Deus feito homem. Daí que, com certa reticência, pois o povo cristão dos primeiros séculos não renunciava à sua Fé Pascal, foi incorporado o Mistério da Encarnação, o Natal, a partir do século IV . Ainda assim, relacionado com a Páscoa. Por isso até nossos dias, na Espanha, o Natal é chamado de ” Páscoa do Natal”.
A Quaresma, mais do que tempo penitencial ou preparação para a Páscoa,como costumamos dizer, tem de ser um tempo para tomarmos consciência da nossa existência pascal, presente na mesma criação, como passo do nada ao ser, das trevas, á luz (Gn.1, 1) Deus poderia ter criado as estrelas e planetas fixos no firmamento, sem a sucessão dos dias e das noites, assim como os entes vivos sem sua necessidade de repouso e sono. Criou o universo em movimento porque era destinado a ser eterno e glorioso. De fato, só Deus é (Javé = aquele que é)
puro ser em si mesmo, sem necessidade de existir ou sair de si (ex-sistere = saída, êxodo). As criaturas nao sao,existem a caminho do ser e da vida em Deus. A Criação é, pois, uma Páscoa a ser celebrada em plenitude na morte e Ressurreição de Cristo. Até Ele, nós e o universo viviamos, desde o “Big Bang”, em permanente quaresma. Na manhã do glorioso domingo em que Cristo Ressuscitou dentre os mortos, nós e toda a criação, emprendemos, como nos diz São Paulo, viagem em “cortejo triunfal”, atrás de Cristo, para o Reino de Deus. Os que viemos por último a este planeta, conforme se nos revela Gn.1, não desmentido pela ciência, seguindo a lógica de Deus, “os ultimos serão os primeiros”, somos os primeiros a participarmos do triunfo de Cristo ressuscitado.
Antes de nós, muitos milhões de anos antes, nos precederam as plantas e os animais. Nossos parentes mais próximos, os símios, tinham já 200 milhões de anos antes de nascer o ser humano. Na nova criação inaugurada por Cristo, somos nós, no devir das geraçoes, seus primeiros habitantes. Finalmente, no fim dos tempos, todas as criaturas que povoam o universo celebrarão também sua Páscoa, para serem plenamente
em Deus.(Ap.21) E haverá Novos Céus e Nova Terra e o mar das lágrimas não mais existirá.
Também a Páscoa judaica que celebra a saída da escravidão do Egito tem seu verdadeiro sentido na Páscoa de Cristo. Nenhum progresso ou libertação humana nos basta se não passarmos do pecado e morte à vida eterna. Esta passagem ou
Páscoa acontece para nós e para toda a criação na morte e Ressurreição de Cristo, presente até o fim dos tempos. Se tivéssemos essa consciência Pascal, a dor, o pecado e a morte não escureceriam o horizonte de nosso caminho e as alegrias terrenas não deteriam a marcha triunfal de nossos passos. O passo da morte à vida em Cristo, é tudo quanto precisamos saber e esperar para os que temos nascido neste vale do pecado, da morte e das lágrimas. Se a morte, que nos persegue a cada dia, fosse a última palavra, nossa luta pela vida seria uma paixão inútil, nossas crenças relgiosoas e todo o saber humano seriam irrelevantes. Os caminhos sobre os quais escrevemos nossas aventuras e desventuras encontram direção e sentido só em Cristo Ressuscitado. Por isso, com toda verdade, Ele nos disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.”
QUARESMA: CONSCIÊNCIA DE CONVERSÃO
Conversão é uma das palavras mais frequentes nos textos bíblicos e na nossa espiritualidade. Na Quaresma a usamos como atributo da mesma. Mas qual é o verdadeiro sentido do termo Conversão? Seu sentido latino nos veio do termo grego “metanoia”, que significa mudança de mentalidade ou de pensamento (meta = detrás, além ou mudança, e noia, de nous, = mente) A conversão ou metanóia é um giro radical sobre nossa maneira de pensar, ser e agir após termos descoberto que a vida nos vem de Deus. Se Ele não infundir seu sopro vital em nós, seremos um punhado de pó ou moléculas inertes. A conversão, mais do que uma mudança moral, é uma mudança existencial. A quaresma, dentro do seu sentido pascal, convida-nos a pensar nossa existência de uma outra maneira. Antes de Cristo eramos, como Abraão confessou, “cinza e pó” (Gn.18,27). Por isso inauguramos o tempo quaresmal com o rito das cinzas, para tomarmos consciência de nós mesmos. Infelizmente, a maneira de celebra-lo não nos impacta. Fizemos dele algo sagrado e até supersticioso, ao invés de ser espelho da nossa própria existência. O fato de receber a cinza no alto da cabeça, que não nos permite ve-la com nossos olhos, oculta seu verdadeiro sentido. Também, depois do Concílio Vaticano II, costumanos usar a fórmula litúrgica: “Convertei-vos e crede no Evangelho”, no lugar de: “Lembra-te que és pó e ao pó has de voltar”. Inclusive, usar cinza, mais por higiene, e nao simples pó do barro, empobrece esse símbolo. Com a “crema” da cremação dos defuntos tambem maquiamos nossa realidade existencial. O rito das cinzas seria muito mais significativo e proveitoso para tomarmos consciência da nossa conversão se, colocando um pequeno punhado delas ou de pó nas mãos, como fazíamos no meu tempo como pároco na Igreja de Santa Rosa de Lima, na cidade de São Paulo, as contemplássemos, por alguns momentos, suplicando a Deus: “Senhor, dá-me a vida”.
Ernest Becker em “The Denial of Death” diz: “Negar a realidade da nossa própria morte é passar a vida com pequenos paliativos, ignorando a tragédia de nós mesmos”. Trabalhando como capelão durante quatro anos no Cemitério da Almudena, o maior de toda Europa, em Madrid, certo dia deparei no epitáfio de uma túmulo: “Eu vivo, os outros estão mortos”. Com essa ironia romântica, tentamos viver todos, fazendo de conta que são os outros a morrer, como certo pregador dizia ao seus ouvintes: “Todos vocês morrerão, e eu provavelmente”. Essa é nossa maior alienação, reconhecia Roger Garaudy após ter curtido fanaticamente a ilusão comunista de um paraíso terrestre. Perguntava aos cristãos: “Pour vous qui est Jesus Chist? “Ele mesmo respodia: “Em Cristo morrem todos os deuses e nasce o verdadeiro homem”. Conversão significa tomarmos consciência de estarmos confinados em quatro muros intransponiveis: dor, culpa, derrota na luta pela vida e a morte. Resta-nos, diz Jaspers, olhar para o alto, seguindo as palavras do Sl.121: “Levanto meus olhos para os montes, de onde me virá o auxilio. O auxilio me vem do Senhor, que fez o céu e a terra”. A dimensão moral da conversão consiste em fazer da Lei do dever um exercício constante de Fé, fixando, no itinerário da nossa existência, nossos olhos em Jesus Cristo, de quem esperamos a Salvação.
Conversão é permanente renascer, sentir palpitar cheio de vida o pó da nossa existência. Para quem não puder participar do rito das cinzas da quarta-feira, sem necesidade de buscar cinzas na Paróquia, pode celebrar este rito quaresmal contemplando um punhado de pó, cinza ou terra, nas suas mãos, suplicando profundamente: “Senhor, da-me a Vida.”
QUARESMA: CONSCIÊNCIA EVANGÉLICA
Infelizmente, mais do que evangelizados, fomos adoutrinados e fizemos do Evangelho um código de preceitos morais a condicionarem nossa Salvação. Salvam-se os justos, os pecadores serão condenados. Dificilmente, como temos dito outras vezes, a respeito da “Ética da Fé”, somos capazes de passarmos do regime da Lei de Moisés, que não podemos cumprir, ao Regime da Graça que Cristo nos dá, sem mérito nosso.
Neste sentido, a fórmula quaresmal no rito das cinzas: “Convertei-vos e crede no Evangelho”, tem esplêndido sentido, também pascal. Certa vez uma pessoa em São Paulo dizia-me paradoxalmente: “Quanto mais peco, mais perto de Deus me sinto”. Não pelo fato de pecar, mas pelo fato de tomar consciência, como São Jerônimo diz, de não poder não pecar. Da mesma maneira como nos definimos mortais, também somos existencialmente pecadores. “Só Deus é Santo”.
São Paulo diz que foi o próprio Deus quem nos “encerrou a todos no pecado” para dar-nos o “plus”do amor, Sua Misericórdia. Vale a pena ler a maravilhosa Exortação Apostólica do Papa Francisco publicada no ano 2013, com o título “Alegria do Evangelho”. Nada mais feliz do que saber que em Cristo, ao qual estamos unidos somaticamente, como a cabeça ao corpo, temos por segura e certa nossa gloriosa Salvação. Teríamos de praticar de maneira mais consciente e significativa o rito do “sinal da cruz”, dizendo toda vez que o fazemos: “Com Cristo passarei do pecado e da morte à vida eterna”. Uma maneira esplêndida de celebrar em todo momento nossa Páscoa. Crer na boa notícia da nossa Salvação também nos faz melhores pessoas. Quem tem garantida e segura a sua vida não precisa guarda-la ou defende-la no cofre do seu egoismo. Cristo é quem nos a garante: “Eu vim para que todos tenham vida.” (Jo.10,10) “A vontade de Deus é que ninguem se perca” (Jo.6,40). Se dependesse de nós, ninguém se salvaria e a esperança de viver ficaria vazia.
Feuerbach, pai do ateísmo moderno, pretendendo negar o esplendor do Evangelho, reafirmava: “No Evangelho”, dizia, “quanto mais pobre somos, mais rico é Deus. Por isso, só no ser humano podemos ter um Deus rico. Vivamos sem Deus e seremos ricos”. Muitas vezes nós todos pensamos assim, de maneira anti-evangélica: “É Deus quem nos tira as alegrias, as coisas e a vida. Resta-nos conquista-la por nós mesmos. ‘Salve-se quem puder’. A cruz não é caminho de vida senão tres paus de tortura e de desespero.” Sem um ‘espírito de pobres’, o Reino dos Céus carece de valor. Por isso, Jesus promete seu Reino aos pobres de espírito, aos que esperam a vida só de Deus. No fim da nossa viagem terrena, todos , sem exceção, chegaremos ao Céu com as mãos vazias para assim Deus ser tudo em nós.”Somos capacidade de Deus” diz Santo Agostinho, quanto mais vazio estiver o recipiente de nossa existência maior capacidade tem para Deus. Tudo de melhor temos a esperar em Cristo. Este futuro glorioso é que temos de anunciar ao mundo, com nossas palavras e maneira de viver, certos de termos a vida eterna em Cristo. Nosso verdadeiro “metaverso” é o Reino dos Céus.
“MEU PAI ERA UM ARAMEU ERRANTE. DESCENDO AO EGITO TORNOU-SE UMA GRANDE NAÇÃO E ALI FOI ESCRAVIZADA. CLAMAMOS AO SENHOR E ELE NOS LIBERTOU E CONDUZIU A ESTA TERRA ONDE CORRE LEITE E MEL” (Dt. 26,4-10)
Estas palavras do livro do Deuteronômio são o Credo primordial do povo de Israel. Sobre essa confissão legada de geraçao em geração fundamenta-se sua relação com Deus e interpretação do sentido da sua história. O Deus que nos libertou da escravidão do Egito nos libertará de toda escravidão. Essa é a esperança do povo de Israel até o presente. “Hoje escravos, amanhã livres”. Com esta palavras encerram a celebraçao da sua Páscoa. No entanto, Jesus disse, Abraão com seu povo desejou ver o meu dia (Jo. 8). De fato, só Ele é quem nos salva da maior escravidão: o pecado, a dor e a morte, e nos faz habitar na verdadeira Terra que emana leite e mel, símbolos da vida feliz. A história do homem e de toda a criação é uma história de libertação ou de Salvação.
O que nos parece natural está ordenado ao sobrenatural. Santo Tomás de Aquino, referindo-se ao ser humano, disse ter sido ordenado para Deus (ordo hominis ad Deum) mas é extensivo a toda a criação.
A criatura busca e encontra seu ser e vida em seu Criador.
Só fazendo-nos violência interna e externamente podemos entender nossa existência e a existência do mundo sem Deus.”Para onde irei longe do Teu Espirito? Para onde posso ir longe da Tua presença? ” (Sl. 139)
Em todos os caminhos percorridos ou a percorrer sempre encontraremos Deus a nos perguntar: “Viandante, para onde vai?” Durante tres milhões de anos, tempo que a antroplogia calcula a presença do ser humano neste planeta, fomos, como Abraão, errantes. Nossa cultura primordial é o nomadismo. Só faz escasos 10.000 anos que nos tornamos sedentários, mas, em nossas pátrias e territórios, continuamos a ser nômades, errantes e peregrinos. Somos estrangeiros morando en tendas, diz São Paulo, nossa cidade e nossa morada está no Ceu. Na carta aos Corintios, refuta a mentalidade judaica ainda remanescente em alguns cristãos de pensarem num Reino terrestre. Apenas uma longa e próspera vida, como prêmio de nossas boas obras, pensavam, era tudo o que podemos esperar de Deus. São Paulo lhes diz: “Se for para este mundo que temos projetada nossa esperança, somos de todas as criaturas a mais dignas de pena.” (Marx, como judeu, foi fiel à crença do seu povo. Sonhou um paraíso terrestre, embora não como benção de Deus, senão como fruto da luta de classes e o progresso humano. Só no fim do século II a.C. o povo judeu abre-se à crença de uma vida eterna ou numa possivel Ressurreição “no último dia”, mas apenas como postulado da razão e de maneira obscura. Era impossível que os mártires macabeus pudessem ser mais fieis na sua fé do que o próprio Deus. Entretanto, carecendo do fato histórico da Ressurreição, inaugurada por Cristo, a esperavam para no “último dia”, fim da história, reservada aos fieis no cumprimento da Lei, deixa a esperança da possível Ressurreição tão insegura como incerta, pois ninguém pode merece-la, como constatou São Paulo em si mesmo.Assim sendo, sem a Ressurreição de Cristo, que também é nossa, todos continuariamos eternamente errantes, sem rumo nem meta. Conclusão à qual também chegou Kant na sua Razão Prática, confessando que teve de deixar a razão para dar lugar à fé, pois cumprir o dever moral é proeza impossível.
Nunca será demais insistir que nosso único futuro é Cristo. Errantes seriam as estrelas, nós e todas as criaturas se Cristo não nos tivesse aberto a porta do ser e da vida com sua Ressurreição. A grande conclusão do ser humano foi-nos brindada, inspirado pelo Espírito Santo, pela boca do rude pescador de Galileia, Pedro: “Não temos na terra outro nome no qual possamos ser salvos a não ser o de Jesus Cristo. ” (At.4)
“AO TEU ALCANCE ESTÁ A PALAVRA DA FÉ: SE CONFESSARES COM TUA BOCA E TEU CORAÇAO QUE JESUS É O SENHOR (DEUS) RESSUSCITADO DENTRE OS MORTOS, SERÁS SALVO” (Rm.10,8-13)
Assim como o texto anterior do AT foi o primeiro credo do povo de Israel, este de São Paulo o foi para o povo cristão. A morte é nosso ocaso inevitável. Se a este limite acrescentamos o pecado ou a culpa, fatalmente, como Camus disse, só nos cabe o desespero.
Confessar que Jesus é o próprio Deus a vencer a morte e o pecado do mundo é a única resposta possivel à nossa problemática existencial. Está ao nosso alcance reconhecer esta verdade porque nossa razão jamais encontrará outra saída se quer, fiel à sua lógica. “Para onde iremos? Só Tu tens Palavras de vida eterna” (Jo.6,59). Podemos desafiar a todas as ciências, religiões e filosofias, confessando não haver uma outra solução para nosso duplo problema, pecado e a morte, que humanamente não
podemos vencer. Da morte até poderíamos “camuflar” uma saida através da ideia da imortalidade mediante a ideia de uma possivel reencarnação ou da alma imortal separada do seu corpo. Até a Ressurreição de Cristo este conceit, nutria o credo das religiões. Falsa ideia, pois a reencarnação prolonga a morte e uma vida apenas de almas despersonaliza nosso ser. Não seriamos nós mesmos a viver após esta vida, mas só algo de nós. A imortalidade é apenas uma ideia, a Ressurreição é fato, que nos garante, não só a imortalidade, mas a vida gloriosa e feliz de nós mesmos em Deus.
Cristo, diz São Paulo, é o “primogênito dos mortos”, o primeiro a Ressuscitar. Deixou seu sepulcro vazio, como prova visivel para seus discípulos. Se tivesse deixados seus restos mortais, como todos deixaremos no sepulcro, teria sido humanamente impossível aos seus discipulos se tornarem testemunhas do acontecimento da Sua Ressurreição e à humanidade só restaria pensar esta vida como o grande poeta espanhol Adolfo Becquer diz: “Hoje, como ontem, amanhã falamos como hoje, um horizonte cinza e andar, andar e andar. “ Cristo condescendeu com seus discípulos para lhes revelar que pela Ressurreição seremos nós mesmos, em corpo e alma, os que viveremos eternamente no seu Reino, dexando apenas no cemitério em pó ou cinza nossos “restos mortais”, nossa condição terrestre de pecado, dor e morte na qual nascemos e vivemos neste mundo. Sao Paulo também teve a experiência quase física da Ressurreição de Cristo a caminho de Damasco, tornado-se o maior arauto da mesma, sobre a qual fundamenta-se nossa Fé e nossa esperança. Em Cristo, disse, todos morremos e nele todos ressuscitaremos, pois somos seu corpo. Depende de cada um de nós sentir e amadurecer esta verdade com a boca e com o coração, se, de fato, queremos e esperamos viver eternamente.
Temos um outro “handicap”, além da morte, que as religiões não podem “camuflar”: o pecado.
Todos nascemos sujeitos à lei do dever, que ninguém pode cumprir, ainda que fossemos as montanhas ou os mosteiros. Quando Jesus declarou a um paralítico: “teus pecados te são perdoados”, os fariseus, fanáticos da lei, disseram: “Só Deus pode perdoar os pecados”. Até Cristo ninguém tinha, nem poderia ter certeza do perdão dos pecados. As religiões regiam-se pelo critério da justiça da razão: Deus premia os que cumprem seus mandamentos e castiga seus violadores. Dentro desta justiça, o mesmo povo de Israel, o povo mais próximo de Deus antes de Cristo, reconhecia a impossibilidade de se salvar sem o perdão dos pecados: “Se o Senhor tiver em conta nossos pecados, quem poderá se salvar?” (Sl 129) Ninguém, de fato. As palavras do perdão foram ouvidas pela primeira na terra do lábios de Cristo. Antes, como a imortalidade, o perdão era pura ideia.
A Posse do que Esperamos
Em Cristo e com Cristo, nem a morte nem o pecado nos podem separar de Deus (Rm.8). Mas isso nos foi revelado só em Cristo. Nele morrem as filosofias e religiões e nasce a Fé que nos faz sentir realmente, segura e certa, nossa Salvação.
Nele, diz São Gregório Nacianzeno (séc. IV) a esperança não é mais esperança senão posse do que esperamos.
Quem confessa com todo seu ser que Jesus é o próprio Deus, morto e Ressuscitado, tem plena certeza de possuir, já neste mundo, a vida eterna.
“JESUS FOI TENTADO DURANTE 40 DIAS NO DESERTO PELO DIABO” (Lc. 4,1-13)
Temos neste realato evangélico a mais sublime interpretação da existência humana. Dificilmente as ciências nos poderiam diagnosticar melhor nossa problemática existencial, assim como sua verdadeira resposta. A vida é um exercício permanente de liberdade ou “tentativas” (tentações) de realizar-nos como pessoas. O texto mostra-nos tres, que o mesmo Jesus experimentou:
A TENTAÇAO DO PÃO: “Se és o Filho de Deus, ordena que esta pedra se transforme em pão”.
” Primeiro viver, depois filosofar”, dizia Cícero. Epicuro (séc. IV a.C.) expressava essa mesma filosofia de vida com seu imortal slogan: “carpe diem”. O consumismo configura a cultura de nosso tempo. Não sabemos estar parados sem levar algo à boca. Tentamos preencher nosso vazio fazendo de nossa vida um tubo digestivo, embora nos deixe ainda mais vazios, como alguns jovens lamentavam em Paris na decada de 1960: “Que adianta termos pão se morremos de tédio”. Julio Verne imaginou o fim do mundo como um ato de loucura do ser humano devourando o ar. Jesus respondeu a está tentação ou falsa tentativa de encontrar a vida dizendo: “Não só de pão vive o o homem”, talvez recitando: “Minha alma tem sede de Deus” (Sl.42).
O Jejum para Descobrir a Fome de um Outro Pão
A prática do jejum, presente em todas as religiões, nos ajuda a vencer esta tentação quando praticada, não como penitência, mas para descobrir a fome de um outro pão, “da Palavra de Deus” (Am.8,11). O jejum carateriza o ser humano. Os animais e as plantas nao jejuam porque sua vida depende do que possam comer. Pelo jejum, não imposto, mas voluntário no tornamos mais humanos e conscientes de que a vida nos vem de Deus.
O jejum é tambem festivo. Não podemos ir a um banquete com o estômago cheio. Por isso, nós católicos, costumamos jejuar na vespera das grandes festas da Fé.
Certa pessoa dizia num grande shopping: “como é dificil encontrar Deus aquí”. A parábola do rico, desfrutando de fastuosos banquetes, e o pobre Lázaro, nos revela a falsa tentativa e enganosa tentação do consumismo, tao presente em nossos dias. Nem rezar mais fazemos antes de nossas refeições.
A TENTAÇAO DO SUCESSO:
“Se és o Filho de Deus, atira-te desde o cimo da torre do Templo, pois os anjos, como está escrito, não permitirão tropeçar nas pedras”.
O sucesso, a fama é uma fome mais ávida do que a fome do pão.
Sermos famosos, estrelas a brilhar no mundo, leva-nos a arriscar a própria vida. Jesus foi conduzido pelo diabo ao templo de Jerusalém. O povo judeu
costumava esperar a vinda do Messias embaixo da sua torre. Era sábado e o lugar estava cheio. Lhe era suficiente a Jesus mostrar àquele povo flutuar sobre o ar como em outro momento caminharia sobre as águas para ser aclamado Messias.
Hybris
Quem de nós rejeita o aplauso e a glória neste mundo? A autoafirmação e aprovação dos outros é instintivo no ser humano. Quando nos deixamos levar por este instinto ou hybris, não temos receio de pisar sobre os outros para aumentar nossa grandeza. Todos levamos dentro de nós um rei Sol, deixando os servos nas masmorras. Esta tentação ou tentativa de nos realizar pelo sucesso é também chamada tentação da História, isto é, não aceitarmos nossa realidade, com seus limites, carências e sofrimentos, que chamamos cruz, como caminho para a vida. Até buscamos pela nossa Fé mais os milagres, que são apenas sinais, do Reino de Deus. Jesus respondeu a está tentação dizendo “Nao tentarás ao Senhor, teu Deus”.
A sabedoria de Deus supera nossos planos de vida.
Muitas vezes uma doença ou um fracasso podem ser nosso melhor remédio e maior sucesso. Tudo de melhor temos de fazer por nós e pelos outros, assim como agradecer a Deus todo bem, mas lambem temos de ver a graça de Deus atuando em nossos sofrimentos.
A oração é o melhor remédio para vencer a falsa ilusão do sucesso ou as glórias deste mundo, reconhecendo que somos um punhado de pó a espera do sopro vital de Deus.
A TENTAÇAO DO TER:
“Eu te darei os reinos da terra se, prostrado, me adorar.”
O desejo de ter é uma outra tentação ou tentativa de realizar-nos, embora, ao invés de nos satisfazer, cria em nós maior preocupação e insônia. O deus dinheiro tem hoje templos mais grandiosos que os dedicados ao Deus da Criação. Jesus, já no Seu tempo, percebeu essa idolatria dizendo: “Nao podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt.6). E exigiu sua renúncia total para entrar no seu Reino. “É mais fácil um camelo entrar pelo olho de uma agulha do que um rico no Reino dos Céus”. Seus discipulos lhe disseram: “Então quem se poderá salvar?”- Ele respondeu: ” Isso é impossível ao ser humano, só possivel para Deus”(Mt.19,24).
Não é que Deus condene as riquezas, das quais precisamos para viver neste mundo, o que nos mostra é que a vida que todos buscamos não depende da abundância dos bens materiais (Lc. 12,15).
São Paulo apontava como resposta à tentação do ter os reinos da terra dizendo : “tendo como se não tivéssemos” (1Cor. 7,20). Jesus recomendava “dar em esmola tudo quanto temos” (Lc.11,41) isto é, termos os bens em favor de todos.
O Fluxo dos Capitais
A pobreza não tem como causa o pecado do ter, mas do reter, violando a própria lei da economia: fluxo de capitais e não”bolsas” ou bolsos para armacenar. Como a água parada apodrece, também os bens materiais retidos nas arcas de nosso egoísmo, são carcomidos.
Shemà Israel
E o maior pecado é tornar os bens materiais capital especulativo ou virtual que nem para satisfazer as necessidades servem, criando isso que os economistas chamam “bolhas” que explodem, deixando ricos e pobres mais vazios. Jesus condena essa idolatria do ter dizendo: “Adorarás ao teu Deus, e só a Ele prestarás culto”, lembrando: “Shemá,Israel, o Senhor é teu Deus, O Senhor é um”.
Os idolos deste mundo tudo nos podem dar, menos a vida. A esmola é um grande antídoto contra esta tentação existencial. Por ela, mais do que ajudar aos pobres, nos ajuda a sermos mais nós mesmos.
Jejum, oração e esmola, mais do atos religiosos de obras boas tem de ser uma veradeira espirtiualidade ou maneira de viver mais humana e mais de Deus.
Padre Jesus Priante
Espanha
Edição e intertítulos por Malcolm Forest. São Paulo
Copyright 2022 Padre Jesus Priante.
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