Continuamos a reflexão sobre quatro princípios esboçados pelo Papa Francisco na Evangelii Gaudium, nos detendo no terceiro: “a realidade é mais importante do que a ideia” (EG 231-233). Quantas vezes não percebemos no debate público, em aulas e palestras ou nas decisões governamentais que a realidade simplesmente não foi considerada, que uma ideia preconcebida, uma ideologia, se sobrepôs a ela! Entre os mais graves problemas do Brasil, estão os causados pelas vitórias das ideologias, de direita ou de esquerda, que não permitiram que se visse a realidade objetivamente, e por isso não se tomassem as decisões necessárias ao bem comum.
As ideologias são armadilhas enganosas, como que um “pecado original” da inteligência. Ninguém está livre delas. Os que mais condenam a ideologia dos outros, frequentemente querem apenas esconder a própria. A “antiideologia” não é um outro discurso, por mais inteligente e crítico que pareça. A alternativa à ideologia é sempre o amor à realidade, como Francisco tem demonstrado com seu exemplo.
Combater a ideologia não é condenar as ideias dos outros, ainda que mostrar o erro, esteja ele onde estiver, seja sempre necessário. Combater a ideologia é, em primeiro lugar, olhar para nós mesmos e, diante das dificuldades e desafios da vida e da conjuntura, perguntarmo-nos se agimos a partir de um olhar carregado de amor pela realidade e pelos que mais sofrem ou se agimos a partir de ideias preconcebidas, por mais sensatas que pareçam.
Vivemos uma crise que também é intelectual. Nos faltam pensadores e pensamentos para enfrentar os desafios atuais. Paradoxalmente, nesse contexto as ideologias tendem a ganhar uma sobrevida. Conhecemos seus erros e fracassos, mas a falta de alternativas nos leva a incorrer nos mesmos enganos e até reforçá-los. Os grandes pensadores não são aqueles que têm mais ideias, mas sim aqueles que conseguem olhar a realidade com mais atenção e amor – e desse modo encontrar respostas e caminhos onde outros só veem confusão e becos sem saída.
O apego à ideologia, contudo, não é uma questão intelectual. No fundo, trata-se de um problema moral: a realidade sempre nos tira de nossa “zona de conforto”, nos convida a um gesto concreto, a uma conversão tanto da inteligência quanto do coração. Com a ideologia, permanecemos fechados em nós mesmos, denunciamos populismos, neoliberalismos, individualismos, demagogias de outros, mas pouco fazemos para melhorar a nós mesmos.
Por tudo isso, o Papa nos lembra que a encarnação da Palavra tem um vínculo indissociável com a realidade (EG 233) e não pode pactuar com a ideologia.
Fonte: Núcleo Fé e Cultura