Alegrai-vos e Exultai – Contracorrente

    O capítulo III, “À luz do Mestre, é, por assim dizer, como que o coração da Exortação Apostólica Gaudium et exultate, pois apresenta como caminho da santidade as bem-aventuranças (cf. Mt 5,3-12; Lc 6,20-23). Elas são, de acordo com o Papa Francisco, “o bilhete de identidade do cristão”. (…) “Assim, se um de nós se questionar sobre “como fazer para chegar a ser um bom cristão”, a resposta é simples: é necessário fazer – cada qual a seu modo – aquilo que Jesus disse no sermão das bem-aventuranças (FRANCISCO. Homilia da Missa na Casa de Santa Marta (9 de junho de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 12/06/2014), 11. n. 63). Daí dedicarmos este artigo a tratar, de modo especial, desse capítulo, procurando tanto quanto possível dar a palavra textual ao Papa.

    Sobre as bem-aventuranças em geral, escreve Francisco que “estas palavras de Jesus, não obstante possam até parecer poéticas, estão decididamente contracorrente ao que é habitual, àquilo que se faz na sociedade; e, embora esta mensagem de Jesus nos fascine, na realidade o mundo conduz-nos para outro estilo de vida. As bem-aventuranças não são, absolutamente, um compromisso leve ou superficial; pelo contrário, só as podemos viver se o Espírito Santo nos permear com toda a sua força e n os libertar da fraqueza do egoísmo, da preguiça, do orgulho” (n. 65).

    “Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu”: “Normalmente, o rico sente-se seguro com as suas riquezas e, quando estas estão em risco, pensa que se desmorona todo o sentido da sua vida na terra. O próprio Jesus nos disse na parábola do rico insensato, falando daquele homem seguro de si, que – como um insensato – não pensava que poderia morrer naquele mesmo dia (Lc 12,16-21). As riquezas não te dão segurança alguma. Mais ainda: quando o coração se sente rico, fica tão satisfeito de si mesmo que não tem espaço para a Palavra de Deus, para amar os irmãos, nem para gozar das coisas mais importantes da vida. Desse modo, priva-se dos bens maiores. Por isso, Jesus chama felizes os pobres em espírito, que têm o coração pobre, onde pode entrar o Senhor com a sua incessante novidade” (n. 67-68). “Lucas não fala de uma pobreza “em espírito”, mas simplesmente de ser ‘pobre’ (Lc 6,20), convidando-nos assim a uma vida também austera e essencial. Desta forma, chama-nos a compartilhar a vida dos mais necessitados, a vida que levaram os Apóstolos e, em última análise, a configurar-nos a Jesus, que, ‘de rico que era, tornou-se pobre’ (2Cor 8,9)” (n. 70).

    “Felizes os mansos, porque possuirão a terra”: “É uma frase forte, neste mundo que, desde o início, é um lugar de inimizade, onde se litiga por todo o lado, onde há ódio em toda a parte, onde constantemente classificamos os outros pelas suas ideias, os seus costumes e até a sua forma de falar ou vestir. Em suma, é o reino do orgulho e da vaidade, onde cada um se julga no direito de elevar-se acima dos outros. Embora pareça impossível, Jesus propõe outro estilo: a mansidão. É o que praticava com os seus discípulos, e contemplamos na sua entrada em Jerusalém: “Eis que o teu rei vem a ti, manso e montado num jumento, num jumentinho, num potro de jumenta” (Mt 21,5; cf. Zc 9,9) (n. 71). “Disse Ele: ‘Sede discípulos meus, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vós’ (Mt 11,29). Se vivemos tensos, arrogantes diante dos outros, acabamos cansados e exaustos. Mas, quando olhamos os seus limites e defeitos com ternura e mansidão, sem nos sentirmos superiores, podemos dar-lhes uma mão e evitamos de gastar energias em lamentações inúteis” (n. 72). Afinal, “os mansos, independentemente do que possam sugerir as circunstâncias, esperam no Senhor, e aqueles que esperam no Senhor possuirão a terra e gozarão de imensa paz (Sl 37/36,9.11)” (n. 74).

    “Felizes os que choram, porque serão consolados”: esta é uma bem-aventurança estranha. Sim, pois “o mundo propõe-nos o contrário: o entretenimento, o prazer, a distração, o divertimento. E diz-nos que isso é que torna boa a vida. O mundano ignora, olha para o lado, quando há problemas de doença ou aflição na família ou ao seu redor. O mundo não quer chorar: prefere ignorar as situações dolorosas, cobri-las, escondê-las. Gastam-se muitas energias para escapar das situações onde está presente o sofrimento, julgando que é possível dissimular a realidade, onde nunca, nunca, pode faltar a cruz” (n. 75). Quem chora pelo outro é porque sente compaixão (sofrer com o outro). Por isso, o Papa escreve: “Esta pessoa sente que o outro é carne da sua carne, não teme aproximar-se até tocar a sua ferida, compadece-se até sentir que as distâncias são superadas. Assim, é possível acolher aquela exortação de São Paulo: ‘Chorai com os que choram’ (Rm 12,15)” (n. 76).

    “Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”: esta é outra estranha bem-aventurança, pois sede e fome sempre supõem carência de algo essencial para a vida, mas a lógica de Jesus é outra. Fala o Papa: “‘Fome e sede’ são experiências muito intensas, porque correspondem a necessidades primárias e têm a ver com o instinto de sobrevivência. Há pessoas que, com esta mesma intensidade, aspiram pela justiça e buscam-na com um desejo assim forte. Jesus diz que elas serão saciadas, porque a justiça, mais cedo ou mais tarde, chega e nós podemos colaborar para o tornar possível, embora nem sempre vejamos os resultados deste compromisso” (n. 77). No entanto, a justiça que Jesus propõe é grandiosa e exigente: “Esta justiça começa por se tornar realidade na vida de cada um, sendo justo nas próprias decisões, e depois manifesta-se na busca da justiça para os pobres e vulneráveis. É verdade que a palavra ‘justiça’ pode ser sinônimo de Deus com toda a nossa vida, mas, se lhe dermos um sentido muito geral, esquecemo-nos que se manifesta especialmente na justiça com os inermes: ‘aprendei a fazer o bem, buscai o que é correto, defendei o direito do oprimido, fazei justiça para o órfão, defendei a causa da viúva’ (Is 1,17)” (n. 79).

    “Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”: vivemos, há pouco tempo o Ano Extraordinário da Misericórdia, portanto voltar ao tema como via segura de santidade é algo grandioso. “A misericórdia tem dois aspectos: é dar, ajudar, servir os outros, mas também perdoar, compreender. Mateus resume-o em uma regra de ouro: ‘Tudo, portanto, quanto desejais que os outros vos façam, fazei-o, vós também, a eles’ (7,12). O Catecismo lembra-nos que esta lei se deve aplicar ‘a todos os casos’ (CIgC, n. 1789; cf. n. 1970), especialmente quando alguém “se vê confrontado com situações que tornam o juízo moral menos seguro e a decisão difícil” (Ibidem, n. 1787) (n. 80). “Dar e perdoar é tentar reproduzir na nossa vida um pequeno reflexo da perfeição de Deus, que dá e perdoa superabundantemente. No Evangelho de Lucas encontramos o “sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso”. Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e vos será dado’ (6,36-38). E depois Lucas acrescenta algo que não deveríamos descuidar: ‘a medida que usardes para os outros, servirá também para vós’ (6,38). A medida que usarmos para compreender e perdoar será aplicada a nós para nos perdoar. A medida que aplicarmos para dar, será aplicada a nós no céu para nos recompensar. Não nos convém esquecê-lo” (n. 81). Não desejar vingança, mas, sim, o perdão, é estar com Cristo em busca da santidade (cf. n. 82).

    “Felizes os puros de coração, porque verão a Deus”: “Esta bem-aventurança diz respeito a quem tem um coração simples, puro, sem imundície, pois um coração que sabe amar não deixa entrar na sua vida algo que atente contra esse amor, algo que o enfraqueça ou coloque em risco. Na Bíblia, o coração significa as nossas verdadeiras intenções, o que realmente buscamos e desejamos, para além do que aparentamos: “O homem vê a aparência, o Senhor vê o coração” (1Sm 16,7). Ele procura falar-nos ao coração (Os 2,16) e nele deseja gravar a sua Lei (Jr 31,33). Em última análise, quer dar-nos um coração novo (Ez 36,26)” (n. 83). É preciso ser, verdadeiramente, misericordioso na caridade verdadeira, nunca falsa (1Cor 13,3).

    “Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”: “Esta bem-aventurança faz-nos pensar nas numerosas situações de guerra que perduram. Da nossa parte, é muito comum sermos causa de conflitos ou, pelo menos, de incompreensões. Por exemplo, as fofocas: quando ouço qualquer coisa sobre alguém e vou ter com outro e lhe digo; e até faço uma segunda versão um pouco mais ampla e espalho-a. O mundo das murmurações, feito por pessoas que se dedicam a criticar e destruir, não constrói a paz. Pelo contrário, tais pessoas são inimigas da paz e, de modo nenhum, bem-aventuradas” (n. 87). “Os pacíficos são fonte de paz, constroem paz e amizade social. Àqueles que cuidam de semear a paz por todo o lado, Jesus faz-lhes uma promessa maravilhosa: ‘serão chamados filhos de Deus’ (Mt 5,9). Aos discípulos, pedia-lhes que, ao chegar a uma casa, dissessem: ‘a paz esteja nesta casa!’ (Lc 10,5). A Palavra de Deus exorta cada fiel a procurar, juntamente ‘com todos’, a paz (2Tm 2,22), pois ‘o fruto da justiça é semeado na paz, para aqueles que promovem a paz’ (Tg 3,18). E na nossa comunidade, se alguma vez tivermos dúvidas acerca do que se deve fazer, ‘busquemos tenazmente tudo o que contribui para a paz’ (Rm 14,19), porque a unidade é superior ao conflito (n. 88).

    “Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu”: “O próprio Jesus sublinha que este caminho vai contracorrente, a ponto de nos transformar em pessoas que questionam a sociedade com a sua vida, pessoas que incomodam. Jesus lembra as inúmeras pessoas que foram, e são, perseguidas simplesmente por terem lutado pela justiça, terem vivido os seus compromissos com Deus e com os outros. Se não queremos afundar em uma obscura mediocridade, não pretendamos uma vida cômoda, porque, ‘quem quiser salvar sua vida a perderá’ (Mt 16,25)” (n. 90). “A cruz, especialmente as fadigas e os sofrimentos que suportamos para viver o mandamento do amor e o caminho da justiça, é fonte de amadurecimento e santificação. Lembremo-nos disto: quando o Novo Testamento fala dos sofrimentos que é preciso suportar pelo Evangelho, refere-se precisamente às perseguições (At 5,41; Fl 1,29; Cl 1,24; 2Tm 1,12; 1Pd 2,20; 4,14-16; Ap 2,10)” (n. 92). “As perseguições não são uma realidade do passado, porque hoje também as sofremos quer de forma cruenta, como tantos mártires contemporâneos, quer de uma maneira mais sutil, através de calúnias e falsidades. Jesus diz que haverá felicidade, quando, ‘mentindo, disserem todo mal contra vós por causa de mim’ (Mt 5,11). Outras vezes, trata-se de zombarias que tentam desfigurar a nossa fé e fazer-nos passar por pessoas ridículas” (n. 94).

    Por fim, o Santo Padre propõe o clássico Evangelho de Mateus como parâmetro de seguimento ao Mestre: “Pois eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede, e me destes de beber; eu era forasteiro, e me recebestes em casa; estava nu e me vestistes; doente, e cuidastes de mim; na prisão, e fostes visitar-me” (25,35-36). São as obras de misericórdia que, realmente, ajudam o ser humano a se salvar, com a graça de Deus.

     

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