D. Luís Mariano Montemayor que foi Núncio Apostólico no Senegal, Mauritânia, Guiné-Bissau e Cabo Verde por cerca de oito anos, foi recentemente transferido para a República Democrática do Congo, onde vai desempenhar as mesmas funções.
Do Senegal (sede da Nunciatura) deslocava-se ocasionalmente em visita a esses outros Países. É assim que, em Junho passado, se encontrava no arquipélago cabo-verdiano, tendo dado, no dia 10, uma conferência na Universidade pública de Cabo Verde, na cidade da Praia, sobre o tema: “A relação Igreja/Estado à luz do Acordo Jurídico entre o Estado de Cabo Verde e a Santa Sé” .
Um Acordo que, a seu ver, marca uma nova era no percurso da Igreja naquelas ilhas. Resta agora – disse -criar as Comissões para pôr em prática os pontos prioritários estabelecidos pelos contratantes e que, a seu ver, passam por três eixos: a cooperação entre as Universidades cabo-verdianas e Universidades católicas doutros países; a atenção para com a juventude; e a conservação do património histórico de Cabo Verde nas mãos da Igreja.
Em entrevista à Rádio Vaticano nessa ocasião, D. Luís Montemayor abordou também a questão da situação económica das duas Dioceses e a decorrente impossibilidade de atribuir subsídios a religiosas empenhadas na pastoral.
Esclareceu também que por ser mais antiga em Cabo Verde, não quer dizer que a Igreja católica tenha privilégios. Pode sim cooperar com o Estado, assim como outras organizações. Nesta ordem de ideias, recorda que são os fiéis cabo-verdianos que devem manter a Igreja em Cabo Verde. Embora se trate dum País com poucos meios, há que caminhar nesta óptica.
D. Luís Montemayor defende ainda a existência do melhoramento da actuação da CIR-CV, Conferência dos Institutos Religiosos de Cabo Verde, que deve, todavia, melhorar o seu desempenho, sob pena de ficarem isolados da Santa Sé e do resto do mundo.
Leia em baixo as suas palavras:
– Quais são os motivos desta sua visita a Cabo Verde, Excelência?
“Bom, o motivo é retomar os contatos, depois da minha visita em maio do ano passado, por ocasião do Fórum Internacional realizado pelo Governo para pensar o futuro de Cabo Verde nos próximos 30, 40 anos. Foi um momento forte de encontro com as autoridades e com os bispos e fiz também outras visitas. Agora, depois da grande visita dos bispos da região ao Papa em novembro do ano passado e a criação do Cardeal Arlindo Gomes Furtado, primeiro Cardeal de Cabo Verde em toda a História… Então, depois de todos estes eventos precisava de retomar os contatos seja com as autoridades, seja com os bispos.
Por isso, aproveitei a viagem para ficar um pouco em São Vicente, visitar o Bispo do Mindelo e tomar contacto também com a freguesia; encontrei todos os religiosos, sexta-feira, na missa na pro-Catedral; sábado fizemos umas confirmações na Paróquia de São Vicente, mas visitamos também algumas obras municipais, como a plataforma frigorífica do Porto Grande do Mindelo, que é muito importante porque vai dar trabalho ao setor mais pobre dos trabalhadores do Mindelo que estavam um pouco, digamos assim, prejudicados pela diminuição da atividade do Porto depois do incêndio da antiga Plataforma frigorífica, há mais de 4 anos. Mas, visitamos também uma zona crítica da cidade que se chama “Ilha da Madeira”, um bairro marginal, embora não seja muito longe do centro do Mindelo; marginal no sentido de que sofre de criminalidade, de prostituição, de pobreza extrema. Então, com o Bispo, e acompanhados pelas irmãs Adoradoras que fazem um trabalho de formiga, começamos a percorrer as casas, a encontrar os vizinhos, a ver as diferentes situações e isto me permite falar com as autoridades de Cabo Verde de modo mais concreto sobre este grande fenômeno da pobreza escondida em Cabo Verde, que você não vê, se não se aproxima; é importante porque depois exige um trabalho conjunto das autoridades nacionais, das autoridades da Câmara, das instituições da sociedade civil e da Igreja mesma, em favor desta gente que é marginalizada, que carece um pouco de tudo, gente que, por vezes, não arruma [arranja] nem uma refeição por dia. É incrível, mas é assim!
Depois, aqui em Santiago, o objetivo central era tomar contacto com as autoridades para retomar a implementação do Acordo Quadro sobre o Estatuto Jurídico da Igreja que prevê acordos específicos na área da cooperação. Então, é por isso que tive encontros com o Embaixador de Cabo Verde junto da Santa Sé (o Ministro do Ambiente), com o Primeiro Ministro (que é o grande artífice do Acordo porque foi ele que deu o impulso inicial com a grande visita ao Papa Bento XVI em 2010), e com a Secretária de Estado para as Relações Exteriores, Drª Mascarenhas, que será um pouco encarregada de formar as Comissões de Trabalho concreto; daqui até Dezembro queremos definir algumas áreas concretas e ter em mãos instrumentos que permitam, já no próximo ano, começar o trabalho de cooperação sobretudo em três área importantes, prioritárias, que estavam já na mente das partes contratantes no momento das negociações:
a) A primeira é a colaboração entre o sistema de ensino universitário católico no mundo com o sistema universitário cabo-verdiano, seja público, seja privado, depende, mas, evidentemente, a Universidade de cabo Verde é o objetivo central para obter um ensino universitário de qualidade. Isto significa que a Universidade deve definir bem as suas áreas prioritárias, sobretudo a formação do corpo docente, os professores, a área da pesquisa, seja para professores, seja para estudantes; a pós-graduação para os estudantes dos ciclos básicos nas diferentes disciplinas… essas são as áreas, onde as diferentes instituições universitárias católicas poderiam dar uma mão a uma universidade que está nos começos”.
– Dado que aqui em Cabo Verde, não há Universidade Católica, então é agir com a ajuda de Universidades Católicas externas, é isso?
“Exatamente, porque uma Universidade Católica não se improvisa. Acho que neste momento Cabo Verde não tem problema de oferta de centros universitários, até tem demais, na minha opinião, mas o problema é a qualidade, fixar o nível de qualidade que obriga todos a manter um nível aceitável no plano internacional, porque temos mais academias que universidades. Mas bom!, o concreto é que o Estado quer uma cooperação das Universidades Católicas. E isto é possível. O projeto de uma Universidade Católica não depende da Santa Sé, não é a Santa Sé que impõe como que de para-quedas uma Universidade. É a Igreja local que faz o seu projeto, começa a implementação do projeto e a Santa Sé dá o marco de reconhecimento acadêmico e ajuda. Então, uma Universidade Católica será uma iniciativa dos Bispos e das instituições católicas de Cabo Verde quando acharem que é necessário. E começará com alguma área de ensino (como acontece em toda a parte) onde forem mais eficazes.
b) Outra área de cooperação é formação da juventude, uma grande preocupação das autoridades cabo-verdianas a todos os níveis, mas também da sociedade porque a sociedade cabo-verdiana é jovem e a juventude sofre de algumas problemáticas, diria, graves: emigração, que desestabiliza as famílias, a pobreza cronica; a falta de emprego e oportunidades, e uma inclinação, podemos dizer, a uma evasão que termina em criminalidade, alcoolismo, toxicodependência e que são fenômenos visíveis, sobretudo nos centros urbanos de Cabo Verde e que começam a dar grave preocupação. Então, há duas linhas de intervenção: a intervenção preventiva, conter essa juventude nos primeiros anos, digamos assim, de modo tal que, quando chega à adolescência, tenha uma orientação diferente, sólida; e outra é ação de resgate das áreas críticas com toxicodependentes, criminalidade juvenil, que exigem instituições muito, muito particulares. A Igreja tem alguma experiência necessária e quer dar uma mão às instituições públicas. Não se trata nem de substituir o Estado, nem de substituir as instituições públicas, mas de colaborar com elas de forma a torná-las mais eficazes.
O fator religioso é muito importante nisto da formação – a educação na formação da juventude, porque entra no campo da motivação, dos valores, da sociabilidade com uma relação de confiança e de amizade que tira os jovens duma consideração burocrática e puramente securitária.
c) O terceiro campo é o do Patrimônio Histórico cabo-verdiano que está nas mãos da Igreja, quer dizer, temos necessidade de definir critérios de cooperação e projetos concretos de cooperação para a conservação, proteção e acesso ao uso dos bens de patrimônio cultural cabo-verdiano que estão nas mãos da Igreja ou nas mãos do Estado, para dar um exemplo: a Cidade Velha é Patrimônio da Humanidade (com a ajuda da UNESCO), mas tem a Catedral mais antiga da África sub-sahariana, que é a Catedral da Cidade Velha. Então, como tornar acessível a Igreja, eventualmente, para celebrações litúrgicas no espaço da Catedral e recuperar esse espaço para a vida religiosa do povo de Cabo Verde?!”
– Isto, para não ficar só como monumento, não é?
“E não ficar só como monumento! São experiências que se fazem na Europa mesmo, mas que exigem definir critérios e estabelecer modos de usar os bens. Outras são as igrejas e capelas antigas que estão espalhadas por todas as ilhas e que precisam de reparação para que possam ser conservadas; algumas estão em muito mau estado de conservação. É óbvio que a Igreja, sozinha, não tem recursos para isso. E, doutra parte, o Estado, a sociedade civil também beneficiam deste patrimônio cultural para outras iniciativas, como o turismo de qualidade. Então, é interesse comum conservá-los, primeiro; depois, muitas vezes, essas igrejas pertencem a comunidades de fiéis que têm novas necessidades por serem maiores e porque as celebrações modernas não são as celebrações antigas. Então, é necessário adaptar estas instalações de culto às necessidades modernas e, de novo, encontrarmos os critérios: desde a pura conservação do existente à adaptação às necessidades modernas.
– Portanto, todo este trabalho está por fazer. Enquanto não forem criadas as Comissões, embora estejam previstos no Acordo, não se pode pôr em prática?!
“O Acordo Quadro não fez outra coisa senão fixar o marco jurídico de operação da Igreja em todos os setores; sobretudo o tema da personalidade jurídica das Dioceses e Paróquias, Institutos Religiosos, obras e institutos ou igrejas paroquiais; definir as condições do pessoal eclesiástico e as vias, ou os instrumentos jurídicos de cooperação; acordos específicos, parcerias, etc. Agora temos que implementar isso em concreto, com projetos concretos nessas três áreas que são, para mim e para as autoridades também, prioritárias, não!?”
– Os nossos ouvintes estarão a perguntar-se: em toda essa panorâmica que o Sr. Núncio já descreveu (desde a pobreza, aos monumentos históricos, às universidades) qual é o papel do Núncio em tudo isso, em que é que pode ajudar, porque no fundo as pessoas querem ser protagonistas, mas precisam, como todo o mundo, de ajudas, não é? O que pode fazer o Núncio neste sentido?
“Bom, o Núncio já fez a sua parte, em boa parte, digamos assim, porque é um trabalho conceber e concordar com as autoridades o marco jurídico de intervenção da Igreja e com a cooperação dos Bispos que foram também parte da Comissão negocial. Isto já foi feito. Agora o que o Núncio faz é a união entre as autoridades religiosas e as autoridades civis do país para facilitar isso aos níveis de decisão política do Estado, e depois não é missão do Núncio substituir os Bispos. As iniciativas concretas partem dos bispos; como também não é missão do Núncio ou da Santa Sé substituir as iniciativas do Estado. Mas, evidentemente, que quando falamos de cooperação do sistema ou da rede de universidades católicas, isto supera a capacidades de gestão dos Bispos locais, ou das autoridades locais. Isto precisa a intervenção da Santa Sé com os organismos específicos, a Congregação para a Educação Católica terá que contactar, em concreto, as Universidades Católicas. O Núncio pode facilitar esta dimensão de contacto através dos outros Núncios e através da Secretaria de Estado ou através da Congregação para a Educação Católica. Depois, todas essas áreas de cooperação e acordos específicos exige ter modelos; ninguém inventa do nada, não!?, então o papel do Núncio é procurar, através da Secretaria de Estado, quais são os modelos já existentes, por exemplo, de cooperação universitária que temos, de patrimônio histórico. Por ex., há experiências com muitas partes do mundo, então, é procurar os existentes. Se as autoridades de Cabo Verde nos dizem imediatamente: bom, apresente-nos um projeto para que possamos trabalhar sobre isso; é essa a função, um pouco, do Núncio, não?!: facilitar o acesso a esses modelos que depois os bispos locais, as autoridades locais, vão adaptar – como já fizemos para o Acordo Quadro, para o qual também não inventamos; tomamos o Acordo Quadro da República Federativa do Brasil, o Acordo Quadro da República Portuguesa e sobre isso trabalhamos para fazer um que fosse adaptado às nossas exigências, e saiu uma outra coisa que foi o Acordo de Cabo Verde.”
– Nesta quarta-feira à tarde (10 de Junho 2015) vai dar uma conferência no Auditório da Universidade Pública de Cabo Verde sobre a relação Igreja-Estado à luz do Acordo Jurídico entre o Estado de Cabo Verde e a Santa Sé. Em que é que vai consistir esta conferência e porque é que quis aproveitar a sua estada cá para fazer isso?
“Bom, é uma iniciativa da Pastoral Universitária da Diocese de Santiago, que é uma realidade nova na pastoral de Santiago – depois de alguns anos que estão a trabalhar nessa nova dimensão de Pastoral Universitária que se tem dinamizado depois da criação dos Institutos Universitários em Cabo Verde, em particular aqui em Santiago. E eles ficaram interessados numa iniciativa similar que tivera a Pastoral Universitária da Diocese do Mindelo em maio do ano passado; na minha última viagem, passei pelo Mindelo, e no Instituto Cultural da Câmara do Mindelo, a Pastoral Universitária organizou uma palestra sobre o Acordo em si: uma apresentação do conteúdo do Acordo a um certo número de juristas do Mindelo. E foi muito interessante, com muita participação. Acho que eles queriam fazer uma coisa similar em Santiago. E obtiveram a cooperação imediata da Reitoria da Universidade nacional; é um outro exemplo de cooperação entre instituições do Estado e os da Igreja.
Bom, é um pouco diferente esta palestra. Na realidade, a apresentação do Acordo vai ser feita por um jurista cabo-verdiano [Dr. Antônio Pedro Ferreira], como preparação à minha intervenção. Isto facilita o meu trabalho porque assim posso fazer um discurso mais histórico-político. A minha apresentação é à luz do que aconteceu e como estão as relações Igreja-Estado. Então, o que eu quero fazer é, fundamentalmente, mostrar como o Acordo Quadro não nasce de para-quedas, mas é parte de toda uma dinâmica das relações entre Igreja e Estado, que nasceu praticamente com o Estado, depois da independência e que tem uma longa tradição, porque pode-se remontar à tradição portuguesa, seja do Padroado, seja do Estatuto Missionário que existia para todas as missões do Império português. Era parte de um acordo com a Santa Sé. Então, não nasce por iniciativa de alguns iluminados. As relações entre a Santa Sé e o Estado cabo-verdiano precedem o Estado mesmo, porque eu lembro a todos que nos anos (não me lembro bem se 1969 ou 1970), o Papa Paulo VI recebeu Amílcar Cabral com os outros líderes dos Movimentos Independentistas da região portuguesa. Então, é aí que começa o contacto daquilo que serão as futuras relações entre as autoridades do Estado e a Santa Sé. E, além disso, estas autoridades encontram a Igreja existente em Cabo Verde, não é?!, a Diocese de Santiago, em particular, que é uma das mais antigas da África (1533) com todo o sistema de Paróquias existentes e reconhecidos pelo Direito português através do Estatuto missionário, como personalidade jurídica, etc., os Institutos Religiosos existentes antes da Independência pelo princípio de sucessão dos Estados, mesmo que parcialmente, em território duma parte do antigo território português, o princípio de sucessão dos Estados diz que as relações jurídicas pré-existentes continuam, se adaptam em função do novo regime jurídico. Então, o acordo o que vem fazer? – é completar umas relações já existentes e facilitar o futuro dessas relações. Eu quero demonstrar isso, descrevendo as diferentes etapas concretas, históricas, jurídicas das relações entre a Santa Sé e o Estado de Cabo Verde e entre o Estado de Cabo Verde e a Igreja de Cabo Verde”.
– Estou cá no âmbito de um trabalho que estamos a fazer este ano sobre as religiosas em Cabo Verde, no âmbito do Ano da Vida Consagrada e também porque há anos que a Rádio Vaticano vem dando relevo à questão da mulher no mundo e em África de modo particular: mulher na Igreja e na sociedade. E, este ano, tendo presente a história da Igreja em Cabo Verde, achou-se por bem dar voz às religiosas no País. Nas que já contactei até agora, notei que são poucas e estão muito sobrecarregadas: têm de trabalhar para o seu sustento e, ao mesmo tempo, fazer a pastoral e viver como religiosas. E não têm nenhuma ajuda financeira, o que condiciona bastante a vida delas e tem mesmo consequências para as vocações que escasseiam e, ao que parece, um dos motivos é essa falta de tempo que elas têm para a pastoral vocacional. E parece que antigamente havia um subsídio. O que é que o Acordo Quadro prevê neste sentido? Qual é o retrato que faz da vida religiosa, feminina de modo particular, aqui em Cabo Verde?
“Bom, o problema que a senhora comenta é real, é crônico, eu não sei se…, sim o Estado português, talvez tinha um subsídio para os missionários, mas isto já não existe, porque já não existe o sistema do padroado, nem de financiamento publico das missões. A independência também teve consequências na vida da Igreja (entre outros) que ficou sobre os ombros do próprio cabo-verdiano: financiar a própria Igreja… Todos aqui me dizem: “cabo-verdianos estavam acostumados a que os missionários vinham de fora…”. Eram portugueses ou relacionados com a Europa. Agora o cabo-verdiano é que tem de tomar conta da sua própria Igreja a nível de vocações”
– Ser missionário de si própria, como dizia o Papa Paulo VI!
“E sobretudo que padres vão vir de Cabo Verde, não de fora, religiosos vão vir das vocações cabo-verdianas, não!?, e a Igreja já espera que Cabo Verde ofereça missionários para o mundo, esta é a dinâmica. “Nós damos e recebemos”. Então, esse foi um grave problema inicial da Igreja cabo-verdiana, chegamos ao ponto praticamente de não ter padres próprios. Os primeiros missionários religiosos que começaram a chegar de novo nos anos 40 eram ou portugueses ou italianos e algum outro estrangeiro, fundamentalmente. A nova vaga de espiritanos, salesianos, capuchinhos, e fizeram um trabalho de conservação da fé popular, de serviço mínimo, digamos assim, da pastoral, os capuchinhos também se dedicaram muito à ação social, os salesianos à formação profissional, os espiritanos contribuíram muito a dar vida ao sistema paroquial, sobretudo na ilha de Santiago, mas era uma coisa precária; foi o bispo Colaço, bispo de Goa, que fundou o primeiro seminário menor muito tempo depois da clausura do Seminário Maior de São Nicolau por causa do anticlericalismo da 1ª República Portuguesa que foi um golpe terrível seja para a cultura cabo-verdiana – grandes poetas e escritores cabo-verdianos saiam do único liceu que existia em Cabo Verde que era o Liceu-Seminário. Fechado isso, praticamente a Igreja cabo-verdiana não conseguiu mais formar, em Cabo Verde, as suas vocações.
Bom, isto quer dizer que é uma etapa previa à independência, mas que é de reconstituição duma Igreja diocesana, duma Igreja particular. É o que a independência vai herdar. E não é um segredo que a primeira etapa da independência foi de grande separação entre a Igreja e o Estado. O Estado queria ser secular e multi-religioso. Em certa medida, em oposição ao que era o Estado português da época. E, bom, a Igreja não recebia do Estado nem subsídio, nem apoios. As religiosas tinham que ganhar o seu sustento com o próprio trabalho. Se recebiam um salário público era porque eram professoras, ou assistentes sociais ou enfermeiras…”
– Mas, parece que inicialmente, durante o bispado de D. Paulino, havia um subsídio diocesano!
“Bom, isto não posso dizer, teria que perguntar ao bispo de Santiago, se tinha ou não e em que medida chegava às religiosas. Evidentemente, a Diocese tomava conta do Instituto diocesano, as Franciscanas da Imaculada Conceição porque eram diocesanas, mas as outras eu não sei se as espiritanas recebiam um subsídio da diocese. Mas, em todo o caso, se havia, agora já não há, porque a Diocese não tem recursos para assegurar esse tipo de apoio às religiosas. Talvez, seja uma coisa a propor no futuro”.
– O Acordo Quadro não prevê nada neste sentido?
“O Acordo não prevê subsídios do Estado à vida dos Institutos Religiosos. Em todo o caso, o Estado, se financiar alguma coisa, serão os projetos de serviços. Se temos um projeto educativo comum, o Estado vai fazer a sua parte, mas não à religiosa em si, ou ao religioso, ou ao padre, mas ao projeto, em concreto. É importante dizer isto porque alguém pensa que o Acordo foi um recuar para formas antigas de confessionalismo do Estado. O Estado continua a ser secular, coopera com a Igreja como pode cooperar com a outras confissões, ou outras associações.”
– A Igreja católica em Cabo Verde, nasce praticamente com o início da História do País; é a mais antiga. Isto não lhe dá nenhum estatuto particular?
“Não tem nenhum privilégio; o que tem é porque oferece em troca um serviço; é no interesse da sociedade e do Estado apoiar uma obra da Igreja. A Igreja não funciona com recurso ao Estado. Funciona com os recursos do cabo-verdiano crente, o fiel, o que é também uma coisa a se organizar. É claro que a Diocese de Santiago teve que enfrentar, duma parte, uma expansão dos serviços pastorais, facilitada, graças a Deus, pela chegada de novos padres que foram formados em Portugal; a formação duma turma numerosa de padres é muito custosa porque não há seminário maior em Cabo Verde; tem que enviá-los, por seis anos, a estudar em Portugal, isto significa muito, eh!, não é grátis, as Dioceses portuguesas ajudam, mas não podem assumir o custo de todos os seminaristas cabo-verdianos. Então, isto é já um peso grande, mas vale a pena.
Depois no campo das religiosas, para tornar ao argumento, é verdade que estão sobrecarregadas pela procura do próprio sustento; sobrecarregadas pelos serviços pastorais que elas oferecem. Eu acho que a Diocese teria que pensar num subsídio religioso enquanto religioso, um subsídio à acção pastoral da religiosa nas paróquias ou nas obras diocesanas; é justo que a religiosa receba uma compensação económica para permitir-lhes prestar esse serviço; na medida em que a Diocese possa [puder] assumir, assegurar a subsistência da religiosa, poderá libertar mais tempo da religiosa para a acção pastoral que as próprias sustentam.
Mas não é facilmente resolvível, porque os recursos são poucos, seja da Diocese de Santiago, que está um pouco melhor, seja da Diocese de Mindelo que, praticamente, está em déficit permanente, porque tem dívidas, a Diocese do Mindelo. Pôr de pé uma Diocese não é coisa fácil, não há bispo que faça milagres: é uma Diocese jovem, tem 10, 11 anos.”
– A de Santiago, por ex., que fontes de alimentação tem? – sabemos que a questão econômico-financeira é um dos grande problemas da Igreja em África. Nalguns lugares a Igreja tem “hotéis”, terrenos para a agricultura, enfim, vão arranjando maneira de ter entradas. Aqui, qual é a situação?
“Bom, um dos problemas da Igreja foi a insegurança jurídica das suas propriedades depois da independência. Por isso, não adiantava fazer projetos agrícolas numa propriedade que era contundida, que não se sabia bem de quem era. Então, acho que a função do Acordo é esclarecer a situação. É regularizar as instituições. A partir daí podem-se fazer projetos de auto-sustento”.
– Com este Acordo, abre-se, então, uma nova era?!
“Bom, acho que sim. Com efeito, noto já que Santiago está a regularizar no contexto público os títulos de propriedade e começa, através da Cáritas e da Fundação para o Sahel, a pôr em produção algumas propriedade. Não são muitas, mas há algumas. Santiago tem um patrimônio imobiliário importante. Mas que é mais reservada para construção futura de igrejas e de outras obras. Muitas vezes, diz-se que a Igreja é grande proprietária, mas nós fazemos escolas, hospitais, templos paroquiais, não se trata, portanto, de unidades produtivas, mas o que é importante saber é que os recursos das Dioceses cabo-verdianas têm que vir do próprio Cabo Verde. O que é já um limite, porque Cabo Verde continua a ser um país pobre. Mas nem todos os cabo-verdianos são pobres, nem todos os fieis cabo-verdianos são pobres. Então, têm que contribuir e aprender a manter as suas próprias obras. Eu noto que isto já está a se dinamizar a nível de paróquias. A constituição dos concelhos económicos paroquiais começa a educar o fiel cabo-verdiano. Tomam conta das necessidades, porque custam a coisas, e há que procurar recursos mediante atividades e podemos ver algumas paróquias mais novas conseguiram financiar-se, com a ajuda, claro, da Igreja universal, através das Obras Pontifícias Missionárias, mas também com recursos locais, algumas mais que outras; como em toda a Igreja, há setores que são muito pobres e não podemos pedir a eles para sustentar a ação da igreja. Mas, bom, é todo um equilíbrio. Acho que também terão que refletir sobre como ajudar as religiosas no campo do sustentamento de forma eficaz, sobretudo quando elas se dedicam a serviços pastorais diocesanos”.
– A Conferência dos Institutos Religiosos em Cabo Verde, CIR-CV, tem algum papel nisso, deve fazer alguma coisa?
“Bom aqui se chama União porque Cabo Verde não tem muitos superiores maiores, mas, de facto, no Direito Canônico o modelo é a Conferência de Superiores Maiores. Aqui, essa União não tem funcionado muito bem. Nasceu com muito entusiasmo depois do Concílio, mas a partir de 1985 começou a ter altos e baixos, a funcionar de forma irregular, houve tentativas de se repor em marcha, mas está numa fase de reconsideração. Os religiosos têm que ver o que querem e se querem verdadeiramente a União. Eu aconselho no sentido de ter, porque o resto da Igreja evolui, já não há somente um bispo, agora há dois (riso), além disso têm que se consertar com as outras Conferências de Superiores Maiores da África, entre outras, senão ficam totalmente isolados, isoladas no próprio instituto, na mesma Igreja particular, e desconectadas da Igreja Universal. Como irão receber documentos ou iniciativas da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e a Sociedade de Vida Apostólica, se não têm contacto com a Nunciatura. Eu, pessoalmente, há dois anos que estou a protestar porque não recebo verbais da assembleia geral. Então, eu não posso informar sobre o estado da vida religiosa em Cabo Verde. Não posso informar bem. É irregular a informação. Então, este é todo um capítulo, mas acho que temos de ser sinceros: temos que saber que as religiosas (e os religiosos, porque o problema se apresenta também para os religiosos, mas como eles têm muitas vezes responsabilidades a nível de paróquias, se apoiam na estrutura diocesana) em Cabo Verde dependem muito da ajuda do próprio Instituto, mas há Institutos que são capazes de as ajudar e há outros que não o podem fazer. Temos pelo menos dois Institutos de Vida Consagrada que são de nível diocesano. Um da Diocese de Santiago e outro de Dakar: as Filhas do Sagrado Coração de Maria. São numerosas e atraem vocações cabo-verdianas, mas sempre com esse problema, isto é que a religiosa está muito dividida entre o serviço que presta ao Estado, à sociedade, como se fosse um leigo, e o trabalho pastoral.”
– Uma última pergunta, Excelência: os meios de comunicação em Cabo Verde anunciaram ontem que o Papa poderá visitar Cabo Verde em 2017. É verdade, podemos dar esta notícia através da Rádio Vaticano?
“A senhora é jornalista, então sabe que a realidade é o que é e o que os jornalistas dizem que é. Eu tenho sempre falado de uma hipótese de trabalho. Não disse, jamais, que o Papa vai vir em 2017, mas que estamos a trabalhar para a hipótese da visita a Cabo Verde seja uma realidade, e que não pode ser antes de 2017 porque estamos já a meio de 2015, acho que está tudo programado para o resto deste ano, em 2016 há eleições em Cabo Verde, depois ou antes da metade do ano, mais ou menos, não é?, então temos que fazer a hipótese de 2017. Depois, porque um dos obstáculos para uma visita imediata a Cabo Verde foi a epidemia de Ébola na região, porque uma visita a Cabo Verde era integrada numa visita à África Ocidental. Então, o Papa iniciará, provavelmente, se eu não erro, a visita à África, em Novembro de 2016 [2015?] ao Uganda e à República Centro-africana. A partir daí o calendário está aberto, a agenda é para negociar e eu como conheço os costumes locais, estou a acordar todo o mundo, para não deixarem para o último minuto, porque outros podem ocupar o lugar. Então, isto não depende só do Núncio, que faz o seu trabalho, que faz presente, como já fiz, mas depende também do Governo, do Embaixador que faz a sua parte. Temos a vantagem de facto de o Presidente da República ter convidado o Papa pessoalmente, e depois por escrito. O Papa tem muito interesse em Cabo Verde como demonstrou com a criação do Cardeal D. Arlindo. Então, é provável a visita, mas temos que trabalhar, temos que puxar e também de joelhos, temos que rezar (riso)”.
Muito obrigada, Excelência.
(Entrevista concedida a Dulce Araújo, na Cidade da Praia, em 10 de Junho de 2015).
Fonte: Rádio vaticano