‘A Mulher da Casa Abandonada’: carta de João Paulo II encorajou denúncia de trabalho escravo

Depois de se lembrar das palavras do Papa, a mulher que vivia a poucos metros da casa onde uma brasileira era explorada nos EUA resolveu denunciar a situação

Opodcast “A Mulher da Casa Abandonada”, da Folha de S. Paulo, narra uma investigação jornalística de um caso de trabalho análogo à escravidão cometido por um casal de brasileiros e investigado pelo FBI.

René Bonetti e a esposa, Margarida Bonetti, foram morar nos Estados Unidos e levaram uma empregada doméstica para cuidar da casa deles. Lá, segundo a justiça americana, o casal passou a submeter a mulher a longas jornadas de trabalho, maus-tratos e cerceamento de liberdade. A situação deplorável durou cerca de vinte anos e, neste período, a mulher não recebeu salários nem direitos trabalhistas.

E foi graças a uma vizinha do casal e a um texto de João Paulo II que a empregada conseguiu se livrar de tanto sofrimento.

A vizinha

O jornalista Chico Felitti, criador do podcast, conversou com uma vizinha da casa onde a brasileira trabalhava em situação parecida com a escravidão, na cidade de Gaithesburg, estado americano de Maryland.

Vic Schneider revelou ao jornalista que quando o casal ia passar férias no Brasil, a empregada deixava a casa e ia conversar com ela em “portunhol”.

Em uma dessas conversas, a brasileira confessou que era vítima de maus-tratos e que apanhava constantemente da patroa. Ela ainda revelou que não podia tomar banho de chuveiro e que os patrões mantinham os armários e a geladeira trancados para que ela não comesse os alimentos deles. Mesmo sofrendo há anos com uma infecção na perna e com um tumor no abdome “do tamanho de um melão”, o casal, de acordo com a ex-empregada, não a levava ao médico.

Diante da terrível situação, Vic Schneider sugeriu que a mulher denunciasse o casal para a polícia. Mas a empregada tinha medo, pois os patrões a ameaçavam constantemente. Mesmo assim, a vizinha tentou procurar ajuda na igreja que ela e os Bonetti frequentavam e entre os vizinhos, mas ninguém acreditava na história. Sem saber o que fazer, Vic rezou: “Ó, Senhor, você tem de me ajudar”.

Ela revela que, naquela noite de abril de 1998 um “milagre” aconteceu: Vic se lembrou de uma carta apostólica de João Paulo II e afirma que o conteúdo do documento a encorajou a seguir em frente e denunciar o caso de trabalho análogo à escravidão a que os Bonetti submetiam a brasileira nos Estados Unidos.

A carta de João Paulo II

Não fica claro no podcast, mas, ao que tudo indica, a carta de que Vic Schneider se lembrou é a Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente, escrita por João Paulo II ao clero e aos leigos. O documento papal dá as diretrizes para a preparação ao Grande Jubileu da Igreja no ano 2000 e recorda os antigos jubileus do Antigo Testamento:

“É sabido que o jubileu era um tempo dedicado de modo particular a Deus. Tinha lugar de sete em sete anos, segundo a Lei de Moisés: o sétimo era o « ano sabático », durante o qual se deixava repousar a terra e eram libertados os escravos. A obrigação da libertação dos escravos era regulada por detalhadas prescrições, contidas nos livros do Êxodo (23, 10-11), do Levítico (25, 1-28), e do Deuteronómio (15, 1-6), isto é, praticamente em toda a legislação bíblica, que adquire assim essa peculiar dimensão.”

Vic Schneider afirma que o seguinte texto tocou o seu coração:

“O ano jubilar devia restabelecer a igualdade entre todos os filhos de Israel, abrindo novas possibilidades às famílias que tinham perdido as suas propriedades, ou até mesmo a liberdade pessoal. Aos ricos, pelo contrário, o ano jubilar recordava que chegaria o tempo em que os escravos israelitas, tornando-se novamente iguais a eles, haveriam de poder reivindicar os seus direitos”.

Denúncia e condenação

Vic sentiu que a carta tinha sido escrita para aquela mulher escravizada a poucos metros da casa dela. Por isso, ela resolveu ajudar – e continuou agindo para salvar a vizinha. Através de uma advogada famosa, Vic denunciou o caso, que foi parar no FBI, a polícia federal americana.

René Bonetti foi condenado pela justiça dos EUA a pouco mais de seis anos de prisão por submeter uma brasileira a trabalho parecido com a escravidão durante duas décadas em território americano. Ele já cumpriu a pena e hoje é executivo de uma grande empresa nos Estados Unidos.

Já a mulher dele, Margarida Bonetti, fugiu para o Brasil antes da investigação. O nome dela passou a fazer parte de uma lista de fugitivos da polícia. E, até pouco tempo atrás, morava praticamente escondida em uma mansão caindo aos pedaços num dos bairros mais ricos de São Paulo. Por isso, ficou conhecida como “A Mulher da Casa Abandonada” – o mesmo nome do podcast que narra toda essa história.

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