Sigmund Freud, em “O mal-estar na civilização”, popularizou a ideia de que existe um mal-estar que povoa a mente humana, que angustia a sociedade e o indivíduo. Para ele, esse mal-estar não tem exatamente uma cura, mas é fruto das tensas relações entre a consciência e o inconsciente, entre a busca pela realização pessoal e as forças socioculturais. Nessa perspectiva, o ser humano está mergulhado, ao longo da história, dentro do mal-estar, que se manifestou, por exemplo, na queda do império romano, na revolução francesa, nas crises econômicas e nas duas grandes guerras mundiais do século XX.
Numa leitura cristã da tese freudiana, pode-se afirmar que esse mal- -estar foi iniciado com a queda do ser humano do paraíso e vai ser concluído apenas no final dos tempos, quando o Reino de Deus será plenificado de forma que “Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas” (Ap 21,4).
O mal-estar, descrito por Freud, manifestou-se com força nas primeiras décadas do século XXI, marcadas por ameaças de guerras nucleares, pela nova guerra fria, por guerras comerciais, pela formação de blocos ideológicos e econômicos, pela crise dos refugiados, pelo crescimento do terrorismo e dos cartéis de drogas, pelo populismo, por novas ditaduras e muito mais. O Brasil não fica de fora desse mal-estar. É um país afetado, desde 2013, por ondas de protestos populares nas ruas, por crises políticas e institucionais, pelo impeachment de uma presidente da República e, nos últimos dias, pela greve dos caminhoneiros – que paralisou e ameaçou levar o País ao caos. Parece que o País se transformou numa espécie de microcosmo do mal-estar presente no século XXI.
Diante do mal-estar que cresce – com ares de caos – no século XXI, qual o papel da Igreja, enquanto “caminho da salvação” (At 16,17)?
Se levarmos em conta a tese freudiana, o mal-estar é algo inerente à natureza humana. O ser humano, a cada século, tem uma crise, uma angústia que, por razões diversas, precisa de algum tipo de encaminhamento. Mas, no século XXI, de um lado, o ser humano possui armas e tecnologia suficiente para se autodestruir e destruir toda e qualquer vida na Terra e, do outro lado, a missão da Igreja é anunciar e ajudar a construir o “novo homem” (Ef 2,15), um modelo civilizatório em que não haverá mais o mal-estar, mas sim um ambiente de superação dos conflitos, das angústias, do sofrimento, da dor e da morte.
Diante do mal-estar presente na sociedade contemporânea, do qual o Brasil é um grande exemplo, a Igreja é tentada a tomar partido, a ser mais uma ideologia, a ser mais uma instituição humana a anunciar caminhos fáceis para o ser humano. É bom recordar que o fascismo, nas décadas de 1930 e 1940, parecia um caminho de salvação fácil para o homem.
No mundo contemporâneo, incluindo a recente e angustiante experiência vivida pelo Brasil, a Igreja não deve aceitar o rótulo, o papel de mera instituição ideológica, de mero palanque político. A Igreja está a serviço de Deus e da humanidade e não de partidos ou ideologias políticas. Deve também ser caminho para “desfazer a inimizade” (At 16,17) entre os seres humanos, entre as instituições, entre os grupos políticos e demais organizações sociais. É preciso ter consciência que o mal-estar, descrito por Freud, só terá fim quando uma instituição tiver a coragem de dizer que os seres humanos são filhos de Deus e que, por isso, são iguais e têm responsabilidades compartilhadas e integrais. O ser humano está destinado ao Reino de Deus, mas é missão da Igreja ajudar a construí-lo. Para isso, a Igreja precisa ser caminho de unidade, caminho de renovação para todos os indivíduos e todos os grupos socioculturais.
Fonte: Jornal o São Paulo