O Papa: a fé não é o ópio dos povos, mas encontro e serviço

No dia de seu 88º aniversário, os jornais italianos “La Repubblica” e “Il Corriere della Sera” publicam algumas antecipações da autobiografia do Papa Francisco, intitulada “Spera”, (Espera) que será publicada em janeiro. O Pontífice relata sua infância em Buenos Aires, o ensinamento recebido da “concentração de humanidade” dos subúrbios urbanos e depois a memória da histórica viagem ao Iraque, em 2021, em meio a dificuldades logísticas e alarmes de segurança.

Isabella Piro – Vatican News

A “concentração de humanidade” experimentada nas villas miserias de Buenos Aires e a “ferida no coração” representada pelo Iraque, visitado em 2021: há isso e muito mais nas duas antecipações da autobiografia do Papa Francisco intitulada “Spera”, escrita com Carlo Musso. O livro, editado pela Mondadori, será publicado em 14 de janeiro em mais de cem países ao redor do mundo. Hoje, 17 de dezembro – no dia em que o Pontífice completa 88 anos – os jornais italianos “La Repubblica” e “Il Corriere della Sera” antecipam alguns trechos.

Infância no bairro Flores

“Quando alguém me diz que sou um Papa villero (camponês), só rezo para que eu seja digno disso”, diz Francisco, repassando com sua memória aquele “microcosmo complexo, multiétnico, multirreligioso e multicultural” representado pelo barrio Flores, o bairro de Buenos Aires onde viveu sua infância. Aqui “as diferenças eram normais e nós nos respeitávamos”, lembra Bergoglio, recordando grupos de amigos católicos, judeus e muçulmanos, sem distinção.

O Papa e Nossa Senhora de Lujan, padroeira da Argentina, em 8 de maio deste ano, na Praça São Pedro
O Papa e Nossa Senhora de Lujan, padroeira da Argentina, em 8 de maio deste ano, na Praça São Pedro

As “Madalenas contemporâneas

O Papa relembra seu encontro com prostitutas, uma imagem do “lado mais sombrio e cansativo da existência” que ele conheceu desde a infância nos subúrbios argentinos. Quando se tornou bispo, Bergoglio celebrou uma missa para algumas dessas mulheres que, nesse meio tempo, haviam mudado de vida. “Fui prostituta em todos os lugares”, uma delas, chamada Porota, confessa a ele, “até mesmo nos Estados Unidos. Eu ganhava dinheiro, depois me apaixonei por um homem mais velho, ele era meu amante e, quando ele morreu, mudei minha vida. Agora tenho uma pensão. E vou dar banho em homens e mulheres idosos em lares de idosos que não têm ninguém para cuidar deles. Eu não ia muito à missa e fazia tudo com meu corpo, mas agora quero cuidar dos corpos com os quais ninguém se importa”. “Uma Madalena contemporânea”, Francisco a chama. La Porota o chamou uma última vez, do hospital, pouco antes de morrer, para receber a Unção dos Enfermos e a Comunhão. “Ela foi bem , escreve o Papa, como “os publicanos e as prostitutas” que nos “passam avente no reino de Deus” (Mt 21,31). E eu gostava muito dela. Também agora, no dia de sua morte, não me esqueço de rezar por ela”.

Amizade com o “padre Pepe

Não faltam lembranças dos prisioneiros, que faziam escovas para roupas, bem como a história do nascimento da amizade com padre José de Paola, conhecido como “padre Pepe”, pároco da Virgen de Caacupé, na Villa 21, e apoiado com escuta e proximidade pelo futuro Papa em um momento de crise vocacional. Naquelas áreas à margem da cidade, onde “o Estado está ausente há quarenta anos” e onde a drogadição é “um flagelo que multiplica o desespero”, ali mesmo – reitera o Pontífice – “naquelas periferias que para a Igreja devem ser sempre o novo centro, um grupo de leigos e sacerdotes como o Pepe vivem e testemunham o Evangelho todos os dias, entre os descartados de uma economia que mata”.

A religião não é o ópio dos povos, a fé é um encontro

Uma realidade difícil da qual emerge claramente que a religião não é de modo algum, como dizem alguns, “o ópio dos povos, uma história tranquilizadora para alienar as pessoas”, reitera o Papa. Pelo contrário: é precisamente “graças à fé e a esse compromisso pastoral e civil” que as villas “progrediram de maneira impensável, apesar das enormes dificuldades”. E “assim como a fé, todo serviço é sempre um encontro, e somos nós, acima de tudo, que podemos aprender muito com os pobres”.

A viagem ao Iraque e “a ferida no coração” de Mosul

Do drama das periferias urbanas ao drama do Iraque devastado pelo conflito, o olhar de Francisco não muda, mas permanece sempre um olhar cheio de atenção e cuidado por uma humanidade ferida. Daquela histórica visita realizada de 5 a 8 de março de 2021 – a primeira de um Pontífice no país – Francisco recorda “a ferida no coração” representada por Mosul: Uma das cidades mais antigas do mundo”, disse ele, ‘transbordante de história e tradições, que testemunhou a alternância de diferentes civilizações ao longo do tempo e foi um emblema da coexistência pacífica de diferentes culturas no mesmo país – árabes, curdos, armênios, turcomanos, cristãos, siríacos -, apresentou-se aos meus olhos como uma extensão de escombros, após três anos de ocupação pelo Estado Islâmico, que a escolheu como sua fortaleza’. E sobrevoado com um helicóptero, o território apareceu como “o raio X do ódio, um dos sentimentos mais eficientes de nosso tempo”.

O Papa em Mosul, Iraque, em março de 2021
O Papa em Mosul, Iraque, em março de 2021

Os frutos envenenados da guerra

Sobre essa viagem, Francisco relembra o difícil contexto organizacional, devido tanto à persistência da pandemia de Covid-19 quanto à questão da segurança. “Fui desaconselhado por quase todo mundo… mas”, escreve ele, ‘senti que tinha de’ ir à terra de Abraão, ‘o ancestral comum de judeus, cristãos e muçulmanos’. Bergoglio não esconde as informações recebidas dos serviços secretos britânicos sobre dois atentados a bomba em preparação durante sua visita a Mosul. Um dos homens-bomba era uma mulher, carregada de explosivos, e outro estava em uma van. Ambos foram interceptados e mortos pela polícia iraquiana antes de serem bem-sucedidos. “Isso também me impressionou muito”, enfatizou Francisco. ‘Esse também era o fruto envenenado da guerra’.

A exortação para dar prioridade à razão, não ao conflito

Em meio a todo esse ódio, porém, o Papa vislumbrou uma luz de esperança no encontro com o Grande Aiatolá Ali al-Sistani, no dia 6 de março de três anos atrás, em Najaf: um encontro que “a Santa Sé vinha preparando há décadas”, que aconteceu em uma atmosfera fraterna na casa de al-Sistani: “Um gesto que no Oriente é ainda mais eloquente do que as declarações, do que os documentos, porque significa amizade, pertencer à mesma família – explica -. Fez bem à minha alma e me fez sentir honrado”. Do aiatolá, o Pontífice recorda em particular “a exortação comum às grandes potências para que renunciem à linguagem das guerras, dando prioridade à razão e à sabedoria”. E depois uma frase, levada com ele “como um presente precioso: ‘Os seres humanos ou são irmãos pela religião ou são iguais pela criação’”.

Além do livro “Spera”, a vida do Papa Francisco também será contada em um filme baseado em Life. La mia storia nella Storia, uma autobiografia escrita com Fabio Marchese Ragona e publicada em março passado pela editora HaperCollins.

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