Por Antonio Staglianò*
Assim acontece com a luz do sol. É sua refração na matéria que produz as cores. Há o vermelho, o verde, o amarelo, o violáceo e, quando há luminosidade, “o céu é sempre mais azul” (R. Gaetano). É uma diversidade sinfônica de beleza imensurável. A realidade não é preto e branco. É claro que “na noite todas as vacas são pretas” (F. Hegel). Há apenas escuridão. A noite escura, entretanto, pode se tornar o pano de fundo de um espetáculo majestoso, se as estrelas brilharem. Quem sabe quais são as profundezas que o universo em expansão esconde de nossa visão! O James Web Telescope nos fornece imagens de tirar o fôlego. Há algo sem precedentes na realidade a ser descoberto. Especialmente quando se trata do humano do homem, criado à imagem de Deus, Cristo Jesus: N’Ele, por Ele e d’Ele vêm todas as coisas. Isso é uma verdade-evento, não um ensinamento doutrinário. Na pessoa de Jesus, manifesta-se uma experiência de amor que vem da eternidade: no princípio há a misericórdia. Há uma bela frase sobre o “pecado original” ser tão original: antes do pecado há a misericórdia de Deus para a eternidade. O significado é inequívoco: não existe nada que esteja “fora” da graça, que não entre no horizonte do amor em Cristo Jesus. Na transmissão da fé, na ação pastoral da Igreja, no discernimento dos pastores, a beleza que salva o mundo permanece inabalável: é a misericórdia de Deus-agape que é “desde o Princípio”.
Pensando nisso (teologicamente), Fiducia supplicans pede isso: em cada situação humana, não se deve esquecer o testemunho de Jesus que ama a todos, com um olhar “preferencial” para os pobres, os abandonados, os imersos e aqueles que sofrem o desconforto existencial de “irregularidades” insuperáveis, muitas vezes impostas sem culpa pela vida, tão impregnada de insensatez e injustiça. O desafio é “pastoral”, porque a chamada “pastoral” nada mais é do que o cuidado com as relações humanas em todas as suas infinitas manifestações e condições, vistas à luz do Evangelho e, portanto, à luz da misericórdia de Deus. Todos estão incluídos nessa misericórdia.
Em um mundo cada vez mais líquido (Z. Bauman), resta a rocha do amor de Deus, da qual ninguém pode ser excluído: nem os “casais irregulares” e nem mesmo os casais de pessoas homossexuais. Em culturas “espumosas” (P. Sloterdijk) – que impedem de ver além do próprio nariz -, é profético poder anunciar o projeto do Reino de Deus, o Evangelho que restaura a dignidade de filhos de Deus na plenitude da boa e bela humanidade de Jesus: nesse horizonte é possível imaginar uma “bênção pastoral” e “criá-la” (pelo poder do ministério do amor do sucessor de Pedro) para declarar que todos estão incluídos no raio do olhar do Deus misericordioso. Deus está próximo de todos.
Apurada e mantida, portanto, a doutrina imutável da tradição da Igreja, que vê na relação homem-mulher o original insuperável do dom recíproco do amor no matrimônio indissolúvel, o desafio pastoral é entender se é possível um gesto, uma atitude, uma palavra, alguma forma de relação em que se possa “colapsar” a misericórdia de Deus, que desde a eternidade decidiu não excluir ninguém da sua benevolência.
Extra ecclesia nulla salus (fora da Igreja não há salvação) continua sendo uma verdade essencial: antes, porém, excluía da salvação todos os não católicos; depois o Concílio – em círculos concêntricos – convocou a todos, porque se entendeu que “a Igreja passa pela alma das pessoas” (R. Guardini) e não pela rigidez de estruturas e regras. Da Fiducia supplicans aceitamos o convite para olhar a realidade humana – complexa e contraditória – sempre abençoada por Deus, porque a realidade humana é sempre pessoal. E a pessoa – como recorda a Tradição teológica da Igreja – é relatio ad, isto é, uma “rede de relações”, que constitui a identidade de cada um. A pessoa é uma “relação de amor” (A. Rosmini): por isso, quando se abençoa a pessoa, não se pode fazê-lo em abstrato, mas em concreto. “Essa” pessoa é abençoada: abençoa-se o conjunto de relacionamentos de amor dentro (e com) os quais a pessoa espera, ama, fracassa, chora e se alegra, pede perdão e o obtém, por meio dos caminhos misteriosos do Espírito que não olha para as aparências, mas para os corações.
O Papa Francisco inventou uma “bênção pastoral” que, ao ampliar o significado da bênção litúrgica e sacramental, torna possível abençoar “pessoas homossexuais em um casal” e não tanto a “união de casais homossexuais”, para a paz daqueles que catolicamente acreditam que isso é errado ou até mesmo blasfemo. Isso pode ser feito? Sim, absolutamente. Nenhum argumento teológico poderia refutar catolicamente essa possibilidade. Então, ele fez isso! Decidindo pelo bem de toda a Igreja, trazendo-a de volta – também deste lado – ao Evangelho da misericórdia. Tornando os pastores “livres” para discernir em cada contexto cultural.
Agora começa, porém, para todos os pastores, a preciosa tarefa do “discernimento teológico” (continua-se a chamá-la de “catequese”, para se fazer entender; mas é “teologia sapiencial”). Aqui podemos desfrutar de uma possível “profecia doutrinária”: no futuro, a ação pastoral da Igreja deverá atuar a partir da misericórdia de Deus (que inclui e cura) e não a partir do pecado (que necessariamente exclui e separa). E não é essa a doutrina cristã da predestinação em Cristo? E não é esse o ensinamento escatológico sobre a entrada no Paraíso por ter amado verdadeiramente, somente por meio da misericórdia de Deus?
A “bênção pastoral” das pessoas em “casais irregulares” e “em casais homossexuais” nos fará pedir perdão por termos, em outros tempos, “abençoado armas e exércitos”, abençoando a violência e as guerras (o que é absurdo!). Isso nos disporá, então, com toda a humildade, a pedir a bênção da misericórdia também para as pessoas casadas com o sacramento do matrimônio indissolúvel (portanto, “casais regulares”), para que se amem “segundo Deus” e não “segundo o mundo”, na mútua doação e não na mútua exploração: uma catequese para o exercício evangélico da sexualidade humana é sempre esperada para uma pastoral que não seja negligente. Para além de toda hipocrisia e máscara (Pirandello). O amor, de fato, não deixa de ser a justiça do amor: e “como o amor deve ser para ser como deve”? A educação pastoral terá de responder a essa pergunta de forma concreta, se o pastor realmente amar seu rebanho.
*Bispo italiano e presidente da Pontifícia Academia de Teologia
Fonte: Avvenire, diário da Conferência Episcopal Italiana (CEI)